Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3088/19.7YRLSB-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) A privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa.
II) A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação.
III) A privação do uso de um veículo automóvel, desde que resulte provado que era efectivamente utilizado, constitui só por si, um dano patrimonial indemnizável, devendo recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º, nº 3 do C.Civil para fixar o valor da respectiva indemnização
IV) O dano ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto e o mesmo não se anula pela utilização de um outro veículo, o qual apenas proporciona a utilidade inerente à deslocação que, nele, é correspondentemente efectuada.
V) Se é certo que tal utilização não erradica o dano consistente na impossibilidade de utilização do veículo sinistrado, ainda assim, tal utilização deverá, ser atendida na fixação do quantum indemnizatório, chegando-se à conclusão que tal montante será inferior face aos casos em que o sinistrado não tenha outro veículo com o qual possa suprir a utilidade decorrente da realização de viagens.
VI) À míngua de outros elementos, com recurso à equidade, afigura-se ser razoável atribuir ao autor o quantitativo de € 9,00 (nove euros) diário, desde a data do acidente, devendo a ré assumir a responsabilidade por esse dano que o autor sofreu, de privação do uso do veículo sinistrado, não integralmente compensado pela utilização de um outro veículo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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1. Relatório:
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O recorrente MS…, identificado nos autos, deduziu reclamação contra a recorrida ZURICH INSURANCE PLA- SUCURSAL EM PORTUGAL, também identificada nos autos, instaurando acção declarativa de condenação arbitral, que correu termos no CIMPAS – CENTRO DE INFORMAÇÃO, MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM DE SEGUROS.
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Pediu a condenação da requerida no pagamento das seguintes quantias, a título de indemnização para satisfação dos danos decorrentes do acidente de viação ocorrido em 29-12-2018, pelas 13h45m, no cruzamento da Rua Domingos Sequeira com a Rua Infante D. Henrique, em São Pedro do Estoril, concelho de Cascais e onde foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca Peugeot, matrícula …-OM-…, propriedade de MJ…, conduzido pelo seu proprietário, e o veículo ligeiro de passageiros, marca Smart, matrícula …-VM-…, conduzido pelo seu possuidor, ora Autor, com reserva de propriedade a favor de Mercedes Benz Financial Services Portugal - Sociedade Financeira de Crédito, SA.:
a) € 3.437,10 (três mil quatrocentos e trinta e sete euros e dez cêntimos), pela reparação da viatura com a matrícula …-VM-…;
b) € 4.625,00 (quatro mil e seiscentos e vinte cinco euros) por todos os restantes danos sofridos (desvalorização comercial do veículo, por ter ficado embatido, no montante de € 1.500,00 e € 3.125,00 – 125 dias de paralisação à razão de € 25,00/dia - devidos pela privação de uso decorrente da imobilização contados desde o dia do acidente até à data da instauração da acção; e
c) Os juros legais, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
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Invocou, nomeadamente, que a colisão entre os veículos ocorreu porque o condutor do Peugeot circulava de forma desatenta, não tendo respeitado a sinalização de paragem obrigatória (sinal de STOP) e não cedeu a passagem ao Autor, que se encontrava pela direita, sendo que, o sinistro foi participado às companhias de seguros do Autor e do condutor do Peugeot, estando a responsabilidade civil emergente de acidente de viação da viatura …-OM-… transferida para a Ré, através de contrato de seguro válido e eficaz, titulado pela Apólice n.° ….
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A ré deduziu contestação concluindo pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.
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Produzida prova documental e testemunhal, em 11-09-2019, o Tribunal arbitral proferiu decisão de onde consta, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O condutor do veículo seguro na Reclamada não viu o veículo do Reclamante quando entrou no entroncamento. Isso mesmo consta da quadrícula para esse efeito na Declaração Amigável que está assinada por ambos os contraentes.
Por outro lado, apesar de existir uma marca rodoviária de cedência de prioridade não ficou provado que existisse sinalização vertical no mesmo sentido o que torna a marca vertical irrelevante para a situação dos autos (art.° 61° do Regulamento de Sinalização de Trânsito). Não tendo visto o veículo do Reclamante, o condutor do veículo seguro na Reclamada não cedeu a prioridade a que estava obrigado (art.° 21° do Regulamento de Sinalização de Trânsito e art.° 29° n.° 1 do Código da Estrada) cabendo-lhe, por isso, a exclusiva responsabilidade pela ocorrência do sinistro.
No que diz respeito aos danos relativos à privação de uso do veículo sinistrado ficou provado não só que o veículo do Reclamante não podia circular como este o utilizava nas suas deslocações quotidianas, no entanto, ficou também provado que o Reclamante tem outro veículo que passou a utilizar desde essa altura. Assim, não foram provados danos pela privação de uso, pelo que, nessa parte, vai a reclamação indeferida.
Relativamente aos danos relativos à desvalorização do veículo por ter sofrido um acidente não logrou o Reclamante provar tal desvalorização pelo que, nessa parte, vai a Reclamação indeferida.
Pelo exposto, considera-se a presente reclamação parcialmente procedente por provada e, em consequência, condena-se a Reclamada a pagar ao Reclamante a quantia de €2.794,39 (acrescida do valor do IVA à taxa legal desde que o Reclamante apresente a respetiva fatura/recibo) acrescendo os juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Notifique (…).”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela apela o autor, formulando, em suma, as seguintes conclusões:
“a) No dia 11 de setembro de 2019 foi proferida sentença arbitral, tendo sido dados como provados os factos constantes na sentença recorrida que se dão por integralmente reproduzidos, e que se encontram transcritos na alegação que antecede;
b) Dos factos em causa destacam-se que o veículo do Recorrido ficou impossibilitado de circular, desde o dia do acidente, e que o utilizava nas suas deslocações diárias;
c) O Douto Tribunal a quo entendeu não se verificarem os danos por privação de uso, uma vez o Recorrente tem outro veículo que passou a utilizar desde essa altura;
d) Assim sendo, o presente recurso tem como objeto os danos relativos à privação do uso do veículo sinistrado, uma vez que, independentemente de ter outro veículo, certo é que o Recorrente deixou de poder usar o veículo sinistrado nas suas deslocações diárias, como fazia anteriormente;
e) Tendo de recorrer a uma alternativa, através dos seus próprios meios, uma vez que não lhe foi facultado um veículo de substituição pela Recorrida, que sempre recusou qualquer responsabilidade pelo sinistro;
f) Estando em causa o dano de privação de uso, estamos perante um dano patrimonial autónomo, suscetível de avaliação pecuniária, e que decorre do direito de propriedade que compreende o uso e a fruição da coisa (art. 1305.° do Código Civil);
g) Conforme defende Abrantes Geraldes, a privação do uso de um veículo, quando não é atribuído um veículo de substituição ou uma indemnização, como foi o caso, “reflete o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia” dos poderes inerentes ao proprietário." (Temas da Responsabilidade Civil - Indemnização do Dano da Privação de Uso, 3.a Edição, Coímbra-Almedina, 2007, página 71);
h) Na verdade, ficou provado que o condutor do veículo seguro pela Recorrida não cedeu a prioridade a que estava obrigado (art. 21° do Regulamento de Sinalização de Trânsito e art. 29.° n.° 1 do Código da Estrada) cabendo-lhe, por isso, a exclusiva responsabilidade pela ocorrência do sinistro (cfr. 1,° parágrafo da página 3 da sentença);
i) Nos termos do art. 562.° do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga a reparação;
j) Segundo a jurisprudência dominante, o lesado não tem de provar o dano em concreto, sendo a privação do uso um dano em si mesmo, mais concretamente um dano autónomo de natureza patrimonial;
k) A jurisprudência dos Tribunais superiores tem entendido, de forma generalizada, que a privação do uso do veículo durante um determinado período que tenha originado a perda de utilidades que o mesmo era suscetível de proporcionar, e caso essa perda não tenha sido reparada mediante a forma natural de reconstituição, dá origem a que o responsável pelo sinistro compense o lesado na medida equivalente;
l) A medida da indemnização, segundo a mesma jurisprudência, terá que ser encontrada com recurso à equidade (566.° n.° 3 do Código Civil), pois uma vez que o dano se traduziu na impossibilidade do lesado utilizar o veículo sinistrado nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, determina-se, em termos quantitativos, um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias;
m) Assim sendo, deve procurar-se uma reconstituição efetiva, por equivalente valor em dinheiro, que corresponda ao montante dos danos, tendo-se em consideração, enquanto elemento objetivo, o valor médio que as empresas de aluguer de automóveis cobram pela disponibilização de um veículo com idênticas características, por ser o critério que corresponde, no fundo, ao custo da substituição da viatura que deveria ter sido proporcionada e não foi;
n) Ora, foi o que o Recorrente peticionou perante o Tribunal Arbitrai, conforme decorre dos artigos 50.° a 59.° da petição inicial e do documento 16 junto com a mesma;
o) Face ao exposto, a privação de uso é, por si só, geradora de dano ou prejuízo, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos genericamente consentidos pelo art° 1305.° do Código Civil;
p) Uma vez verificados os seus pressupostos, e porque a privação de uso constituiu um dano em si mesmo, deverá haver lugar à indemnização, nos termos reclamados pelo Recorrente na petição inicial;
q) O que não foi atendido pelo Tribunal Arbitral, ao indeferir essa pretensão.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exas., deverá a douta decisão arbitrai a quo ser parcialmente revogada, e em consequência, ser a Recorrida condenada a pagar ao Recorrente uma indemnização pela privação do uso do veículo, nos termos peticionados (…)”.
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A ré apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
“1. Resultou provado em sede de douta sentença a quo que "No que respeita aos danos relativos à privação de uso do veículo sinistrado ficou provado não só que o veículo do Reclamante não podia circular como este o utilizava nas suas deslocações quotidianas, no entanto, ficou também provado que o Reclamante tem outro veículo que passou a utilizar desde essa altura. Assim, não foram provados danos pela privação de uso pelo que, nessa parte, vai a reclamação indeferida.".
2. A matéria de facto não é impugnada em sede de recurso por parte do Apelante.
3. O Apelante em sede de P.I. - artigos 50 a 55 - alega que o seu "prejuízo sério" se baseava na utilização do veículo dado que " (...) ê médico de saúde pública, exerce funções no Centro de Saúde de …, para o qual tem de se deslocar diariamente, realizando também Juntas Médicas noutros locais, nomeadamente em Lisboa.", e "Ademais, o Autor carece do seu veículo para o seu normal dia a dia, designadamente, para fazer compras e em lazer."
4. Nos presentes autos, o Apelante alegou que utilizava o veículo sinistrado para as suas deslocações e que, não as podendo fazer, tal constituía um prejuízo!
5. Não alegou e fundamentou o seu pedido de privação de uso, como pretende em sede de recurso, na mera utilização daquele veículo em concreto.
6. Deste modo, se o Apelante utilizou outro veículo nas suas deslocações, sendo o prejuízo a impossibilidade de as realizar, não existe um qualquer dano!
7. Pelo artigo 562.° do CC a Apelada está obrigada a restituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga a reparação, e é evidente que para o Apelante, ao contrário do ora invocado, não resultou qualquer dano ou prejuízo da imobilização do veículo sinistrado, e muito menos da privação da sua utilização enquanto proprietário, que aliás nem tão pouco alegou em sede de P.I.!
8. Sublinhe-se que, ao contrário do alegado exclusivamente em sede de Alegações de Recurso, o Apelante nunca alegou - e muito menos provou - que "teve de recorrer a um outro veículo mais antigo, com outras características, perante a privação do seu veiculo habitual."!!!!
9. Em sede de P.I. nunca reconheceu que utilizou outro veículo nas suas deslocações!
10. Somente em sede de produção de prova foi provado que o mesmo utilizou outro veículo!
11. Sem dano não há dever de indemnizar!
12. Pelo que pugna-se pela manutenção integral da douta Sentença!”.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , a única questão a decidir no recurso interposto é a de saber:
1) Se a decisão recorrida deveria ter condenado a ré ao pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo do autor?
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3. Enquadramento de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. No dia 29/11/2018, pelas 13h45, no cruzamento da Rua Domingos Sequeira com a Rua Infante D. Henrique, em São Pedro do Estoril, ocorreu um acidente entre o veículo matrícula …-VM-…, propriedade do Reclamante e o veículo matrícula ..-OM-…, propriedade de MJ…, cuja responsabilidade se encontrava transferida para a Reclamada, pela apólice de seguros de responsabilidade civil automóvel n° ….
2. O veículo do Reclamante circulava na Rua Infante D. Henrique e pretendia mudar de direção à esquerda para a Rua Domingos Sequeira.
3. Na via onde circulava o veículo do Reclamante existe uma marca rodoviária de cedência de prioridade.
4. O veículo seguro na Reclamada circulava na Rua Domingos Sequeira e pretendia mudar de direção à esquerda para a Rua Infante D. Henrique.
5. Na via onde circulava o veículo seguro na Reclamada existe sinalização vertical de paragem obrigatória (STOP).
6. O condutor do veículo seguro na Reclamada não parou no sinal de STOR
7. O embate deu-se no interior do cruzamento, entre a frente do veículo seguro na Reclamada e a lateral esquerda do veículo do Reclamante.
8. Na data do acidente chovia e o piso estava molhado.
9. A Declaração Amigável de Acidente Automóvel encontra-se assinada por ambos os condutores.
10. O veículo do Reclamante ficou impossibilitado de circular, desde o dia do acidente.
11. A reparação do veículo do Reclamante ascende a €2.794,39 (IVA não incluído).
12. O Reclamante utilizava o veículo sinistrado nas suas deslocações diárias.
13. O Reclamante tem outro veículo que passou a utilizar para substituir o sinistrado.
Nada mais se apurou de relevante.
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4. Enquadramento jurídico:
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1) Se a decisão recorrida deveria ter condenado a ré ao pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo do autor?
Como se disse, a única questão a apreciar é a de saber se ocorreu erro de julgamento por a decisão recorrida não ter condenado a ré no pagamento da indemnização peticionada pela privação de uso do veículo do autor, ou se, tal não sucedeu.
Como refere a ré, não foi colocada em crise a matéria de facto apurada em sede arbitral.
Relembrando a factualidade apurada, verifica-se que, nas condições temporais e espaciais acima mencionadas, e circulando o veículo do autor na Rua Infante D. Henrique, (pretendendo o seu condutor mudar de direção à esquerda para a Rua Domingos Sequeira) e circulando o veículo seguro na ré na Rua Domingos Sequeira (pretendendo o seu condutor mudar de direção à esquerda para a Rua Infante D. Henrique), o condutor do veículo seguro na ré não parou no sinal de STOP existente na via por onde circulava.
O embate deu-se no interior do cruzamento, entre a frente do veículo seguro na Reclamada e a lateral esquerda do veículo do Reclamante.
Conforme se refere na decisão recorrida, que nessa parte não foi impugnada, o condutor do veículo seguro na Reclamada não viu o veículo da ré, quando entrou no entroncamento, o que foi assinalado na quadrícula para esse efeito na Declaração Amigável que está assinada por ambos os contraentes.
Apesar de existir uma marca rodoviária de cedência de prioridade na via por onde seguia o autor, não ficou provado que existisse sinalização vertical no mesmo sentido o que torna a marca vertical irrelevante para a situação dos autos (art.° 61° do Regulamento de Sinalização de Trânsito) e, nessa medida, não tendo visto o veículo do autor, o condutor do veículo seguro na ré não cedeu a prioridade a que estava obrigado (art.° 21° do Regulamento de Sinalização de Trânsito e art.° 29° n.° 1 do Código da Estrada) cabendo-lhe, por isso, a exclusiva responsabilidade pela ocorrência do sinistro.
O único diferendo entre autor e ré prende-se com a questão do dano da privação do uso, que aquele considera existir e é negado por esta.
A respeito do pedido de indemnização em questão, a decisão recorrida refere o seguinte:
“No que diz respeito aos danos relativos à privação de uso do veículo sinistrado ficou provado não só que o veículo do Reclamante não podia circular como este o utilizava nas suas deslocações quotidianas, no entanto, ficou também provado que o Reclamante tem outro veículo que passou a utilizar desde essa altura. Assim, não foram provados danos pela privação de uso, pelo que, nessa parte, vai a reclamação indeferida.”.
Apreciando:
O artigo 483º do Código Civil estabelece que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação”.
Depois, o artº 563.º do mesmo Código refere que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
E, do artigo 562.º do Código Civil decorre que o obrigado deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Assim, o montante da indemnização deve corresponder aos danos causados, sendo que essa indemnização visa, em primeira linha, a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o resultado que obriga à reparação (reconstituição natural) ou, não sendo isso possível (não levar à reparação integral dos danos, ou tornar a reparação excessivamente onerosa), a indemnização deverá ser fixada em dinheiro (artº 566º nº 1, do Código Civil).
Em caso de indemnização em dinheiro, deverá atender-se à medida que o artigo 566º, nº 2, do Código Civil estabelece: a da diferença entre a situação do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data, se não existissem danos, considerando, ainda, os demais critérios que os artigos 564º a 566º do Código Civil estabelecem.
O dano indemnizável compreende, nos termos do artº 564.º do Código Civil, quer os danos emergentes (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado) quer os lucros cessantes (acréscimo patrimonial que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que, ainda não tinha direito à data da lesão – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 8ª ed., 1994, p. 610).
Igualmente, são de atender quer os danos presentes quer os danos futuros (aqueles que ainda não existem à data da fixação da indemnização), mas estes, apenas se forem previsíveis; contudo se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (cfr. nº 2, do mencionado artigo 564.º do Código Civil).
Como refere Rui Manuel de Freitas Rangel (A Reparação Judicial dos Danos na Responsabilidade Civil, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 27), “quanto aos danos futuros, o exemplo mais comum é o da situação do lesado que perde ou vê diminuída a sua capacidade laboral em consequência do facto lesivo. Este facto origina a perda de um rendimento que se vai reflectir em prejuízos sofridos e a sofrer pelo lesado ou por aquelas que viviam na sua dependência económica. Para resolver estes casos há duas formas de estabelecer a indemnização: ou pela entrega de um capital ao lesado ou, total ou parcialmente, sob a forma de renda vitalícia ou temporária”.
Por outro lado, são também de atender, quer os danos patrimoniais (os que reflectem interesses económicos), quer os danos não patrimoniais ou morais (que reflectem interesses morais, espirituais ou ideais).
Desde já se diga que, em “caso de acidente causado pelo veículo seguro, deve a seguradora indemnizar o lesado pela paralização de privação do uso do seu veículo, mesmo que ocorra perda total do mesmo. A paralização do veículo e a sua não reparação, ou a não entrega ao lesado do montante correspondente ao valor do dano, nada tem a ver com a excessiva onerosidade da reparação” (assim, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-1996, in BMJ, 459º, p. 600).
Por outro lado, deve-se ter em linha de conta que “para ressarcir os prejuízos sofridos por um veículo em acidente de viação deve, antes de mais, repor-se em substância a utilização perdida pelo lesado. É ao lesante que cabe fazer ou mandar fazer esse trabalho” (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-02-1987, in C.J., t. 1, p. 300).
De todo o modo, “(...) apesar de a obrigação de reparação recair sobre a seguradora, à qual cabe dar a ordem para a reparação do veículo, o dono deste tem, em princípio, a faculdade de escolha da oficina onde se deve proceder a tal reparação” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-03-1999, in BMJ 485º, p. 484).
E, como se decidiu no acórdão do S.T.J. de 08-11-1984 (in BMJ 341º, p. 418) “é ao lesante que incumbe providenciar pela reparação do veículo danificado, desde que o seu dono se não oponha, a menos que ela não seja possível ou se mostre excessivamente onerosa, de conformidade com os artigos 566º, nº 1 e 562º do Código Civil. Se o lesante não é pronto nesse providenciamento e a demora, por desleixo seu, avoluma o prejuízo relativo a gastos com o aluguer de um automóvel para substituir, no seu uso, o que ficou paralisado por força do acidente, será o mesmo lesante que haverá de suportar as consequências daí decorrente, e não o lesado. Se para agravamento de tais danos tiver contribuído o lesado, então terá a situação de ser encarada face ao estatuído no nº 1 do artigo 570º do Código Civil, com base no qual caberá ao tribunal, em atenção à culpa de ambas as partes e as consequências dela resultantes, decidir se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida, mesmo excluída”.
António dos Santos Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso; Almedina, Coimbra, 2ª Ed., 2005, p. 27 e ss.) aborda exaustivamente a questão do dano da privação do uso, em particular decorrente de acidentes de viação, enunciando as diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais que sobre a temática têm sido consideradas:
1) A orientação que nega a autonomia do dano decorrente da privação do uso (integrando-o no âmbito dos danos de natureza não patrimonial – vd., v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2000, in BMJ 494.º, p. 396);
2) A orientação que reconhece a autonomia do dano da privação do uso, mas que exige a prova efectiva da existência de prejuízos de ordem patrimonial (vd., neste sentido, o Acórdão do STJ de 18.11.2008, Pº 08B2732, relator PEREIRA DA SILVA; o Acórdão do STJ de 16-03-2011, Pº 3922/07.2TBVCT.G1.S1, relator MOREIRA ALVES; o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 03-05-2011, Pº 2618/08.6TBOVR.P1; o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2012, Processo 132/04.6TBRMR.L1-6, relatora ANABELA CALAFATE; o Ac. do TRP de 25-02-2014, relator RUI MOREIRA; o Ac. do TRP de 19-12-2012, relator IGREJA MATOS; o Acórdão do STJ de 12-01-2012, relator FERNANDO BENTO; o Acórdão do STJ de 04-05-2010, relator SEBASTIÃO PÓVOAS; o Acórdão do TRC de 02-02-2010, relator GONÇALVES FERREIRA; o Acórdão do STJ de 19-11-2009, relator HÉLDER ROQUE; o Acórdão do TRC de 08-09-2009, relator ARTUR DIAS; e o Acórdão do STJ de 06-11-2008, relator SALVADOR DA COSTA); e
3) A orientação que reconhece o direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem.
O referido Autor (ob. Cit., pp. 72-73), depois da análise que efectua, elenca as proposições que refere extrair de tal análise, nos seguintes termos:
“a) Provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo, designadamente por causa de actividades que deixaram de ser exercidas, de receitas que deixaram de ser auferidas ou de despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os danos emergentes como ainda os lucros cessantes.
b) Tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva;
c) Mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado;
d) Em qualquer das situações, sem prejuízo do recurso à equidade ou mesmo à condenação genérica, a quantificação tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor ou a utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado ou aumento das despesas ou a redução das receitas;
e) Em todos os casos serão sempre ponderados os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso”.
Efectivamente, não custa compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, que possa servir de base à determinação da indemnização.
Como propõe o referido Autor (ob. Cit., p. 57), nos casos em que a utilização de um veículo constitua um simples meio de transporte, para a efectivação de quaisquer deslocações, mesmo de lazer, não está afastada, à partida, a ressarcibilidade do dano emergente da privação do uso do veículo, havendo, quanto aos lucros cessantes que apurar se a paralisação determinou algum ou nenhum prejuízo, pela existência de alternativas menos onerosas ou com semelhante comodidade ou caso se demonstre que o veículo – danificado – não era habitualmente utilizado.
Com efeito, “(…) o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização” (Aut. Cit.; ob. Cit., pp. 57-58).
Em igual sentido, Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, p. 317) refere que “o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”.
Isso mesmo foi afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-12-2017 (processo 1817/16.0T8LSB.L1-2, relatora ONDINA CARMO ALVES): “A privação do uso de um veículo sinistrado constitui um dano patrimonial indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao seu proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado no artigo 62.º da CRP e que pode ser economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade”.
Também, no acórdão do STJ de 12-01-2010 (Pº 314/06.6TBCSC.S1) se decidiu que: “O proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa.  A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art. 62.º da CRP)
De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2014 (Processo 889/11.8 TBSSB.L1-6, relator CARLOS MARINHO) se concluiu que:
“O dano pela privação de uso de veículo é indemnizável no caso de perda total do mesmo, tal como acontece quando há lugar à reparação. A simples privação do uso do veículo automóvel é suficiente para fundar o direito a indemnizar, pois trata-se de um dano autónomo com valor pecuniário, que priva o respectivo titular da disponibilização do mesmo, não sendo assim necessária a prova de quaisquer outros factos (nomeadamente a ocorrência de danos concretos ou o destino dado habitualmente ao veículo) e sendo, nesse caso, o montante indemnizatório fixado com recurso à equidade”.
Entende-se, na realidade, que a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa.
A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação.
A jurisprudência, embora não unânime, como se viu, tem alinhado neste sentido. Vejam-se, exemplificativamente:
- Ac. STJ de 08-05-2013, relatora MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA;
- Ac. STJ de 12-01-2010, relator PAULO SÁ;
- Ac. STJ de 06-05-2008, relator URBANO DIAS;
- Ac. STJ de 05-07-2007, relator SANTOS BERNARDINO;
- Ac. STJ de 25-09-2018, Processo 2172/14.8TBBRG.G1.S1, relator ROQUE NOGUEIRA;
-Ac. TRL de 12-10-2006, Pº 6600/2006-6, relator OLINDO GERALDES;
- Ac. TRL de 21-05-2009, Pº 1252/08.3TBFUN.L1;
- Ac. TRL de 15-12-2011, Pº 1470/09.4TCNT-L1-8;
- Ac. TRL de 11-10-2012, Pº 3525/09.9TBCSC.L1;
- Ac. TRL de 29-09-2016, Processo 1108/08.0TBMTJ.L1.-2, relator JORGE LEAL;
-Ac. TRL de 13-10-2016, Pº 640/13.8TCLRS.L1-2;
- Ac. TRL de 11-05-2017, Pº 350/12.3TVLSB.L1-2;
- Ac. TRL 25-05-2017, Pº 12795/15.2T8ALM.L1-2;
- Ac. TRL de 27-02-2014, relator CARLOS MARINHO;
- Ac. TRL de 27-02-2014, relator TIBÉRIO SILVA;
- Ac. TRL de 06-12-2012, relatora MARIA DE DEUS CORREIA;
- Ac. TRL de 12-07-2018, processo 3.664/15.T8VFX.L1-6, relator MANUEL RODRIGUES
-Ac. TRC de 11-03-2008, relator VIRGÍLIO MATEUS;
-Ac. TRC de 24-06-2014, relator ARILINDO OLIVEIRA;
-Ac. TRC de 23-02-2010, relator CARLOS QUERIDO;
-Ac. TRP de 17-03-2011, relator FREITAS VIEIRA;
- Ac. TRP de 13-10-2009, Pº 3570/05.3TBVNG.P1;
-Ac. TRP de 30-06-2014, relator MANUEL DOMINGOS FERNANDES;
-Ac. TRP de 26-09-2013, relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA;
- Ac. TRP de 21-02-2018, Pº 1069/16.1T8PVZ.P1, relator FILIPE CAROÇO;
- Ac TRP de 14-05-2013, relatora ANABELA DIAS DA SILVA;
- Ac. TRG de 17-01-2013, relator ANTÓNIO SOBRINHO;
- Ac. TRG de 11-07-2013, relatora ROSA TCHING;
- Ac. TRG de 14-09-2010, relatora ISABEL FONSECA;
- Ac. TRE de 22-03-2018, pº 1234/17.4T8STB.E1, relatora ANA MARGARIDA LEITEÃO;
-Ac. TRE de 20-01-2010, relator ACÁCIO NEVES;
-Ac. TRE de 25-09-2008, relator PIRES ROBALO; e
- Ac. TRE de 21-06-2011, relator JOÃO GOMES DE SOUSA.
No caso vertente, provado ficou que, em consequência do acidente aqui em causa:
- O veículo do Reclamante ficou impossibilitado de circular, desde o dia do acidente (29-12-2018); e
- O Reclamante utilizava o veículo sinistrado nas suas deslocações diárias.
Ora, decorre do artigo 42.º do Regime Jurídico do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, que: “Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores”(n.º 1). No caso de perda total do veículo, essa obrigação cessa no momento em que a seguradora coloque à disposição do lesado a indemnização devida (n.º 2).
E, nos termos do n.º 3 do aludido artigo 42.º, “a empresa de seguros responsável comunica ao lesado a identificação do local onde o veículo de substituição deve ser levantado e a descrição das condições da sua utilização.” O n.º 5 do mesmo artigo ressalva que “o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transportes em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição.”
Muito embora tais preceitos se reportem a uma fase pré-jurisdicional, de regulação dos sinistros, não vinculando os tribunais na definição dos danos ressarcíveis, facto é que, sintomaticamente, não condicionam a atribuição de viatura de substituição à demonstração da necessidade da mesma.
Paralisado que se encontra o veículo, aguardando reparação, a ré deveria satisfazer o dano inerente.
Mas, estará o dano indemnizável excluído pelo facto de também se ter apurado que o autor tem um outro veículo, que passou a utilizar para substituir o sinistrado?
Ora, parece-nos que, “quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-04-2014, relator FONTE RAMOS).
Na realidade, a privação do uso de um veículo automóvel, desde que resulte provado que era efectivamente utilizado, constitui só por si, um dano patrimonial indemnizável, devendo recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º, nº 3 do C.Civil para fixar o valor da respectiva indemnização (assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-05-2013, relator AVELINO GONÇALVES e, em igual sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 22-01-2013, relator LUÍS CRAVO).
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-05-2012, “o dano pela privação do uso do veículo é indemnizável com recurso à equidade, desde que esteja demonstrado que era normalmente utilizado pelo proprietário na sua vida corrente, o que se deduz da utilização de veículos de familiares, logo após o acidente.”.
Assim, “seja o veículo mais recente ou mais antigo, desde que o seu proprietário o usasse normalmente, e não se mostre que a vetustez, a quilometragem percorrida ou outros factores teriam impedido ou alterado a continuação desse uso normal, a privação do uso deverá ser compensada atendendo exclusivamente à desvantagem económica decorrente da privação dessa utilização normal, desconsiderando aqueles factores, apenas relevantes quando esteja em causa indemnização pelo valor da coisa (perda ou substituição). A indemnização por privação do uso, deve corresponder, regra geral, ao custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, mesmo que o lesado não tenha recorrido ao aluguer de um veículo de substituição, uma vez que bem pode acontecer que não tenha possibilidades económicas, operando-se o ressarcimento, em última análise, segundo critérios de equidade – art. 566.º, n.º 3, do CC.” (cfr. ac. do STJ de 23-11-2002, relator ALVES VELHO e, no mesmo sentido, o ac. do STJ de 15-11-2011, relator MOREIRA ALVES).
Citem-se ainda os seguintes arestos:
- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-2018 (Processo 176/13.7T2AVR.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES) concluindo que: “Independentemente da resposta à questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso como dano autónomo de natureza patrimonial, o facto de o veículo sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano profissional e na sua vida particular não pode deixar de determinar a atribuição daquela indemnização respeitante ao período em que perdurou a privação do uso da viatura (…). Na determinação do valor dessa indemnização, por forma a obter uma aproximação relativamente ao objetivo da restauração natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo ou se acaso a Seguradora tivesse entregue ao lesado um veículo de substituição, cabe a ponderação do valor que esta suportaria com o aluguer de um veículo que desempenhasse uma funcionalidade semelhante àquela que desempenhava o veículo sinistrado, com recurso à equidade em face das demais circunstâncias”;
- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-05-2019 (Processo 43/18.8T8TBU.C1, relator ISAÍAS PÁDUA) concluindo que: “I- Da imobilização de um veículo em consequência de acidente de viação pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor, gozar e fruir, nos termos que se encontram plasmados no artº. 1305º do CC. II- Ocorrendo a última situação referida em c), a privação do uso de veículo constitui em si mesmo um dano autónomo, de expressão patrimonial, que deverá ser ressarcido, bastando para tal tão só que o seu proprietário afetado demonstre a utilização que dele vinha fazendo à data do acidente (independentemente do seu fim, que tanto pode ser de trabalho, de lazer, ou outro qualquer) e que por força dessa privação, causada pelos danos nele provocados, deixou de o poder fazer, isto é, de dele livremente poder dispor, gozar e fruir por certo período de tempo. III- Em tais situações, o valor desse dano, como equivalente económico (compensatório), deve ser determinado/estimado com o recurso à equidade, num julgamento ex aequo et bono, com uma ponderação das circunstâncias concretas que o motivaram e das realidades da vida”;
- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-02-2018 (Processo 189/16.7T8CDN.C1, relator FALCÃO DE MAGALHÃES) decidindo que:
“I -Na reparação do dano consistente na privação do uso do veículo por parte do lesado, em consequência de um sinistro rodoviário, podem equacionar-se duas distintas situações:
 - uma delas em que se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, como será por exemplo o caso mais comum em que o lesado se socorre do aluguer de veículo de substituição, contratando esse aluguer junto de empresas do ramo;
- uma outra situação em que não se apuram gastos alguns mas apenas que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações habituais (para fins profissionais ou de lazer) e que não lhe foi facultada pelo lesante viatura de substituição, tendo o mesmo ficado, por isso, impedido de fazer essas deslocações ou tendo o mesmo continuado a fazê-las socorrendo-se para o efeito de veículos de terceiros familiares e amigos que, a título de favor, lhe cederam por empréstimo tais veículos.
II. Na primeira das apontadas situações, o lesado tem direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação.
III. Na segunda, a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias.
IV. No que concerne aos danos decorrentes da privação de uso do veículo cumpre ter presente que se provou que a autora ficou privada do seu uso, pelo menos, durante 20 dias úteis, cumprindo ainda atender ao facto de que a simples privação do uso do seu veículo traduziu-se numa diminuição patrimonial que cumpre reparar.
V. Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil.
VI. Para este efeito pode tomar-se como ponto de referência, por exemplo, a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes, devendo realizar-se em abstracto uma ponderação global das várias situações por forma a chegar-se a um valor concreto, nomeadamente que tal valor deve ser sempre tomado como simples referência e não em termos absolutos, que deve do mesmo ser excluída a normal taxa de lucro obtida por estas entidades por forma a evitar-se um benefício injustificado por parte do lesado, tendo-se sempre presente o uso concreto que o lesado fazia do veículo em causa”.
Assim, no caso, o dano imediatamente ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto e o mesmo não se anula pela utilização de um outro veículo, o qual apenas proporciona a utilidade inerente à deslocação que, nele, é correspondentemente efectuada.
Todavia, se é certo que tal utilização não erradica o dano consistente na impossibilidade de utilização do veículo sinistrado, ainda assim, tal utilização deverá, ser atendida na fixação do quantum indemnizatório, chegando-se à conclusão que tal montante será inferior face aos casos em que o sinistrado não tenha outro veículo com o qual possa suprir a utilidade decorrente da realização de viagens.
Ora, tem sido considerado que o padrão de referência será o do custo do aluguer de viatura semelhante, muito embora seja ponderado que, como se viu, o autor continuou a dispor de outro veículo.
Assim, e à míngua de outros elementos, com recurso à equidade, afigura-se ser razoável atribuir ao autor o quantitativo de € 9,00 (nove euros) diário, desde a data do acidente, devendo a ré assumir a responsabilidade por esse dano que o autor sofreu, de privação do uso do veículo sinistrado, não integralmente compensado pela utilização de um outro veículo.
Esse montante liquidado até à data da instauração da acção (sendo esse o pedido formulado pelo autor) perfazia o montante de € 1.125,00 (€ 9,00 x 125 dias).
Destarte, procede a apelação, razão pela qual, nesta parte, se revoga a decisão recorrida, substituindo-se por outra em que se condena a ré a pagar ao autor, a quantia de € 1.125,00, mantendo-se, evidentemente, a demais condenação constante da decisão proferida.
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação (assim, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, publicado no D.R. n.º 146/2002, Série I-A, de 27-06-2002 e, igualmente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2014, Processo 889/11.8 TBSSB.L1-6, relator CARLOS MARINHO).
Assim, sobre tal montante acrescem os juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a presente data e até efectivo e integral pagamento.
A apelada será responsável pelas custas respectivas, nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo.
*
5. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida na parte em que absolveu a ré do pedido de condenação no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, que se substitui por esta outra, de condenação da ré a pagar ao autor, a quantia de € 1.125,00 (mil cento e vinte e cinco euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da presente data, mantendo-se, em tudo o mais, a decisão antes proferida.
Custas pela ré.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 11 de Dezembro de 2019.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes