Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2523/2008-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
PERDA DA COISA LOCADA
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1 - Só é possível deixar para liquidação a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora provada a sua existência, não existam elementos para fixar o montante, nem sequer recorrendo à equidade.
2 - Provando-se apenas que o autor causou prejuízos ao réu de montante não concretamente apurado, não fornecendo o processo elementos para determinar o objecto ou a quantidade da condenação, a única solução jurídica é proferir condenação ilíquida, não sendo caso de recorrer a juízos de equidade nos termos do artigo 566º nº 3 do Código Civil, pois os factos provados não fornecem os limites legais exigíveis para aplicar esse conceito.
(ISM)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

J… intentou acção de despejo com processo ordinário contra Jos…, pedindo que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento, por perda da coisa locada ou, em alternativa, ser reconhecida a denúncia do contrato de arrendamento para a data indicada, devendo o réu ser condenado a entregar ao autor, livre de pessoas e bens, o locado.

Em síntese, alegou que o réu é o actual arrendatário do armazém com a porta nº…sito na Rua … em…, pelo qual paga a renda mensal de € 0,50.

O prédio onde se situa a referida loja encontra-se em ruínas, sem possibilidade de qualquer tipo de utilização, estando o locado praticamente abandonado pelo réu há mais de três anos, nele se limitando a manter algumas velharias.

O locado já não permite ser utilizado para os fins a que se destinava, pelo que o contrato caducou por perda da coisa locada, nos termos do artigo 1051º alª e) do Código Civil.

Contestou o réu dizendo, em síntese, que o imóvel se encontra em mau estado de conservação, em virtude de os senhorios, ao longo dos anos nunca terem efectuado quaisquer obras de conservação. Do interior do locado e do 1º andar desapareceram ou foram destruídos diversos bens móveis pertencentes ao réu, tendo a porta do arrendado sido arrombada ou mandada arrombar pelo autor.

O réu utilizou ininterruptamente o locado até Junho de 2004, altura em foi vandalizado.

 Em reconvenção, alegou que sofreu prejuízos de montante não inferior a € 15.000.

Pugna pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, com a condenação do autor a pagar ao réu a quantia de 15.000 euros, a título de indemnização pelos prejuízos que lhe causou nos bens que lhe pertencem.

O autor replicou, referindo que apenas procedeu à limpeza de grandes quantidade de entulhos e lixos no interior e na parte exterior do imóvel.

Termina pedindo que o pedido reconvencional seja julgado improcedente.

Foi proferida sentença que julgou a parcialmente procedente a acção e declarou caduco, por morte do arrendatário, o contrato de arrendamento para garagem e arrecadação celebrado entre E… e Jo…, relativo ao prédio sito na Rua…, n°…, loja, da freguesia de …e, em consequência, condenou o réu a entregar o imóvel ao autor, livre de pessoas e bens.

Julgou parcialmente procedente a reconvenção e condenou o autor a pagar ao réu, a quantia de 5.000 euros, acrescidos dos juros moratórios contados às taxas legais que vigoraram e que vierem a vigorar, desde 04/04/2005 até efectivo e integral pagamento.

Não se conformando com a douta sentença, dela recorreu o autor, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - Pelas razões largamente expostas, a douta sentença faz uma errónea interpretação dos factos quando os subsume no preceituado pelo artigo 564° do Código Civil, fixando uma indemnização indevida.

2ª - São vários os elementos a considerar na determinação pela não responsabilidade do A., sendo que reveste particular relevância a não vandalização do imóvel e o valor diminuto ou inexistente dos bens que aí se encontravam (lixo e entulho).

3ª - A ordem jurídica apenas pune actos que estejam «em rebelião» com as leis não censurando, como não podia deixar de ser, o mero exercício de um direito que ela própria confere aos sujeitos.

4ª - «A dúvida sobre o montante da indemnização (...) justifica a sua fixação segundo juízos de equidade tendo em conta os factos relativos ao dano.» (sublinhado nosso!)

(Ac. STJ 12/08/2007)

5ª - «A indemnização, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, (...) deve o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de "compensação ".» (sublinhado nosso!)

(Ac. STJ 12/18/2007)

6ª - São estes dois exemplos jurisprudenciais paradigmáticos para este caso.

7ª - Se é verdade que a sentença careceu de encontrar na indemnização o espelho do «justo grau de compensação» ou o reflexo compensatório da mesma em relação ao dano sofrido.

8ª - Mais verdade é que ficou por apurar o valor patrimonial dos bens que se encontravam no imóvel pelo que se revela imprudente a fixação de uma indemnização ad hoc.

9ª - Constata-se, por fim, ter a douta sentença violado o disposto no artigo 483° e 566° do Código Civil, na medida em que os factos acontecidos não encontram nessa sede correspondência mínima que seja, pelo que, houve manifesta violação do artigo 668° n°1, alínea b) do Código de Processo Civil.

10ª - Face ao exposto, deverá ser julgado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença na parte em causa, que operou a subsunção incorrecta da matéria de facto provada no direito aplicável ao caso sub judice.

Termina pedindo que seja revogada a douta sentença recorrida na parte relativa à procedência, ainda que parcial, do pedido reconvencional.

A parte contrária respondeu, pugnando pela improcedência da reconvenção.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1º - Por documento escrito datado de 03 de Janeiro de 1944, E…, na qualidade de senhorio, declarou ajustar com Jo…, na qualidade de arrendatário, o contrato de arrendamento da loja do prédio sito na Rua …n°…, loja, da freguesia de…, nos seguintes termos e em síntese: o prazo do arrendamento é de seis meses que começa no dia 01 do mês de Janeiro de 1944 presumindo-se sucessivamente renovado por igual período e nas mesmas condições, que se destina ao fim de garagem e arrecadação particular, sendo a renda no valor de 40$00 – (A).

2º - Actualmente o valor da renda é de 0,50 € - (B).

3º - A empena posterior do prédio referido em 1º ruiu – (1º).

4º - Ruiu também grande parte da sua cobertura – (2º).

5º - As escadas interiores do imóvel, tal como muitas paredes, já ruíram ou ameaçam ruir – (3º).

6º - A reparação do imóvel importará quantia não determinada – (4º).

7º - Há mais de 40 anos que o réu detém a chave da loja e do prédio – (5º).

8º - Ainda hoje o réu utiliza parte do imóvel situado no rés-do-chão – (6º).

9º - No interior do prédio o réu guardou até Junho de 2004, um aquário completo, loiças sanitárias, 2 roupeiros, 1 mobília de quarto de espelhos, várias cadeiras antigas, 2 esquentadores Vaillant de 5 litros, 1 máquina de assar frangos (pequena), 1 máquina de assar frangos (grande), apliques de parede, 1 candeeiro de tecto, 1 torno mecânico de ferro (completo), armários de madeira (vários), 3 armários de ferro – estantes (2,75 por 1,5 de altura), livros de contabilidade, dossiers, pastas, folhas de depósitos, folhas de caixa e outros, ferramentas (várias), 6 bancos corridos em madeira, 2 camas de madeira, 2 camas de ferro, 1 lavatório de loiça (antigo), 1 espelho de casa de banho (electrificado), 1 Jeep Perego de 2 lugares (criança), 1 máquina de cortar relva 160 c/c (gasolina), 1 máquina de sulfatar em cobre, 3 mesas de cabeceira, cunhos alfanuméricos (1 conjunto), 2 senhorinhas de canto, vários expositores (Sarou, Zippo e Parker), 3 regadores em zinco, 1 símbolo fálico (1,90 m), discos de vinil (vários tamanhos), 2 colunas em marfinite, 1 máquina de costura (Singer) antiga com móvel (7º).

10º - Tudo com valor não concretamente apurado – (8º).

11º - Em Junho de 2004 terceiros a mando do autor arrombaram a porta e retiraram os objectos referidos em 9º do imóvel (9º).

12º - Depois do facto referido em 11º o réu reparou as portas e aí continuou a guardar objectos (10º).

13º - Jo…, faleceu em 15/04/1984 – documento de fls. 71.

14º - O réu é filho de Jos…– documento de fls. 72..

15º - Pela Ap. …(G-2), encontra-se registada a aquisição a favor do autor, por usucapião, do imóvel identificado em 1º – documento de fls. 80 e 81.

16º - O autor foi notificado do pedido reconvencional por carta expedida a 01/04/2005 – documento de fls. 54.

 B - Fundamentação de direito

A douta sentença declarou a caducidade do contrato de arrendamento, condenando o réu a entregar o imóvel ao autor.

No tocante ao pedido reconvencional, considerou que o autor, ao retirar os bens do réu, dando-lhe destino desconhecido, causou-lhe prejuízos. Considerou equitativo o valor de 5.000 euros a fixar como indemnização pelos bens que o autor subtraiu do imóvel ao dar-lhe destino desconhecido.

Tendo em consideração que, de acordo com os artigos 684º nº 3 e 690º do C.P.Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto do processo e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação deste tribunal foi colocada a questão de saber se se mostra apurado o valor patrimonial dos bens que se encontravam no imóvel e se a indemnização arbitrada é imprudente.

 Importa, pois, saber se, face aos factos provados, o tribunal, com recurso ao princípio da equidade, devia ter fixado a indemnização em 5.000 euros ou relegado o pagamento para liquidação em execução de sentença.

A sentença recorrida considerou que a natureza dos bens enunciados no ponto nº 9º dos factos provados e o seu uso, impunham o recurso à equidade com base no artigo 566º nº 2 do Código Civil, fixando-lhe aquele montante.

Tais bens pertencem ao réu, foram retirados do locado pelo autor e têm valor pecuniário, embora não concretamente apurado – facto provado sob o nº 10º e 11º.

O artigo 661º nº 2 do C.P.Civil estabelece que “ se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que seja líquida”

E o artigo 566º nº 3 do Código Civil preceitua o seguinte:

“ se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

À primeira vista, parece existir colisão de normas entre esta disposição e a do mencionado nº 2 do artigo 661º do C.P.Civil. Mas tal colisão é apenas aparente, porque só depois de esgotadas todas as possibilidades daquele juízo equitativo na própria acção de indemnização é que, sem prejuízo de o mesmo poder vir a ser formulado (com mais elementos) em execução de sentença, se deverá optar por esta[1].

A este propósito escreveu Lopes do Rego[2]:

“ Relativamente ao regime constante do nº 2 deste artigo, constituía entendimento uniforme que a condenação no que se liquidasse em execução de sentença não dependia da circunstância de ter sido formulado pedido genérico, podendo o tribunal emitir tal condenação quando – provando-se os pressupostos da existência ou titularidade do direito invocado – o tribunal não conseguisse alcançar o objecto preciso ou a quantidade, estando consequentemente impossibilitado de proferir decisão condenatória específica ( cfr. Ac.STJ de 29.1.98, in BMJ 473, pág. 445).

Por outro lado – e no domínio das acções indemnizatórias – só seria possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais se provou a sua existência, embora não existam elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo exacto, ainda que com recurso à equidade (cfr Acs STJ de 29.2.00, in CJ I/00, pág. 118 e de 7.10.99, in BMJ 490, pág. 412 e da Rel. in CJ I/00, pág.7).

A figura-se que estas conclusões permanecerão, no essencial, válidas face à actual redacção do preceito, apenas importando notar que a condenação genérica que, naqueles termos, for proferida em acção declarativa será liquidada no âmbito do processo declaratório findo”.

Na sua redacção primitiva[3] estipulava o mesmo art. 661º (2ª parte) que “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, a sentença condenará no que se liquidar em execução”.

Comentando este normativo afirmava Alberto dos Reis:

“O 2º período do artº 661º prevê a hipótese de não haver elementos para se fixar o objecto ou a quantidade da condenação e prescreve que, em tal caso, a sentença condene no que se liquidar em execução.

Era o que se dispunha no artº 282º do Código anterior.

O tribunal encontra-se perante esta situação: verificou que o réu deixou de cumprir determinada obrigação ou praticou certo facto ilícito; quer dizer, reconhece que tem de o condenar; mas o processo não lhe fornece elementos para determinar o objecto ou a quantidade da condenação. Em face destes factos, nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse à toa, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a que o texto consagra: proferir condenação ilíquida. O juiz condenará o réu no que se liquidar em execução da sentença”. E acrescentava que tal condenação “tanto se aplica ao caso de se ter formulado inicialmente pedido genérico e não ter sido possível convertê-lo em pedido específico ... como ao caso de se ter logo formulado pedido específico, mas não se chegarem a coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o objecto ou a quantidade da condenação”[4].

Só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora provada a sua existência, não existam elementos para fixar o montante, nem sequer recorrendo à equidade.

 Ora, partindo da factualidade dada como assente que os bens têm valor pecuniário, embora não concretamente apurado – facto provado sob o nº 10º e 11º -, não é possível recorrer à equidade ao abrigo do nº 3 do artigo 566º do  Código Civil e fixá-los na quantia de 5.000 euros, devendo a determinação do seu valor ser relegada para ulterior liquidação, nos termos do artigo 661º nº 2 do CPC.

Procede, pois, a argumentação do apelante.

Alega ainda o apelante que a sentença, ao decidir pela equidade na atribuição da indemnização violou o disposto no artigo 668º nº 1 alª b) do Código de Processo Civil.

Não é verdade, pois a sentença especificou os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão e só a falta absoluta de motivação de uma decisão constitui a nulidade da alínea b) do nº 1 daquele preceito.

Nesta parte improcedem as conclusões.

Podemos concluir nos seguintes termos:

- Só é possível deixar para liquidação a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora provada a sua existência, não existam elementos para fixar o montante, nem sequer recorrendo à equidade.

- Provando-se apenas que o autor causou prejuízos ao réu de montante não concretamente apurado, não fornecendo o processo elementos para determinar o objecto ou a quantidade da condenação, a única solução jurídica é proferir condenação ilíquida, não sendo caso de recorrer a juízos de equidade nos termos do artigo 566º nº 3 do Código Civil, pois os factos provados não fornecem os limites legais exigíveis para aplicar esse conceito.

III - DECISÃO

Por todo o exposto julga-se procedente a apelação e, consequentemente altera-se a sentença recorrida, condenando-se o autor a pagar ao réu a quantia que vier a ser liquidada, a título de indemnização pelos danos causados.

Custas, nas duas instâncias suportadas pelo autor e réu, na proporção do respectivo decaimento que, provisoriamente se fixa em 50% para cada uma das partes.

Lisboa, 17 de Abril de 2008

Ilídio Sacarrão Martins

Teresa Prazeres Pais

Carla Mendes

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[1] Ac  STJ de 6.3.1980, in BMJ 295º-369.
[2] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol I, 2ª edição, 2004, pág. 553.
[3] Do DL 29637 de 28 de Maio de 1939.
[4] C.P.C. Anotado, vol. V, pág. 70-71.