Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MARIA MANUELA GOMES | ||
| Descritores: | DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES RECUSA DE EXIBIÇÃO DE ESCRITA COMERCIAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 04/17/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | I - O disposto no art. 519 nº 1, como enunciação de um princípio geral, que é, está também ele sujeito ao princípio da proporcionalidade. II - Perante uma contraposição de interesses entre o dever de colaboração das partes e a protecção devida à documentação comercial, há que ponderar da indispensabilidade ou não dos documentos em causa para a apreciação do pedido, devendo ter em consideração, para além das normas conflituantes dos arts. 41º a 43º do CCom e art. 519º do CPC, ainda as regras atinentes ao ónus da prova, ao dito princípio da proporcionalidade em sentido restrito. III – Se a parte dispunha de meios probatórios, pelo menos facilitadores da descoberta da verdade dos factos, de que injustificadamente se não serviu, na ponderação dos interesses conflituantes em causa, e tendo em conta os parâmetros limitadores enunciados leva a que se entenda não ser de dar prevalência ao princípio do dever de colaboração da parte contrária para a descoberta da verdade dos factos constante do art. 519º do CPC. FG | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: Relatório. 1. Na acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que H, Lda intentou no Tribunal da Amadora (2º Juízo) contra a ré N, SA, veio esta interpor recurso de agravo do despacho proferido no dia 17.11.2005, que, na sequência de requerimento formulado pela autora em sede de instrução do processo, ordenou a notificação da ré para, “Nos termos do disposto no art. 528º do CPC (…) juntar aos autos cópia das facturas emitidas entre 1/08/01 e 30/07/03”. Alegou e formulou as seguintes conclusões: - A junção das facturas ordenada é ilegal, violadora de direitos e interesses legítimos da Agravante e desnecessária à boa decisão da causa. - O princípio do segredo da escrituração mercantil, que tem tutela legal nos artigos 41° a 43° do Código Comercial, limita a possibilidade de exibição judicial e exame da escrita às situações neles previstas. - As normas dos artigos 42º e 43° do C. Comercial, sendo normas especiais, prevalecem sobre o princípio da colaboração das partes na descoberta da verdade, estabelecido no artigo 519º do CPC. - Não se enquadrando a junção de documentos ordenada nos autos no âmbito do artigo 42° do C. Comercial, apenas seria possível o exame das facturas em causa nos termos previstos no artigo 43º, i.e., exame no escritório da Agravante, na sua presença, e limitada à averiguação e extracção do tocante aos pontos que tivessem relação com a questão. - Acontece que, a Agravada não requereu esse exame no momento processual oportuno, não sendo exigível à Agravante, face o regime legal aplicável (em especial o disposto no artigo 43°, conjugado com o disposto no artigo 42º, do C. Comercial), a junção aos autos das pretendidas facturas. - A junção aos autos das facturas em causa permitiria à Agravada, e mesmo a terceiros, face ao disposto no artigo 167° do CPC, conhecer factos sigilosos relacionados com a actividade da Agravante, designadamente identificação dos seus clientes, respectivos consumos, preços e condições comerciais praticadas, - O que, a acontecer, causaria à Agravante graves prejuízos. Acresce que, - No que concerne à pretendida prova dos quesitos 10 e 17 da Base Instrutória, a junção das facturas só serviria de alguma coisa se estivessem identificados nos autos, e não estão, os "clientes" a que se refere a Agravada. - No que se refere à pretendida contra-prova dos quesitos 35 e 37 da Base Instrutória temos que, em primeiro lugar, se trata de matéria cujo ónus da prova recai sobre a Agravante - Em segundo lugar, se o que está em causa nos supra referidos quesitos são as vendas da Agravante à Agravada nos anos de 1993 a 2002, como é, não faz o menor sentido requerer a junção de facturas emitidas entre 1.08.2001 e 30.07.2003. - Por último, sendo as facturas relevantes para a prova dos quesitos 35 e 37 as emitidas pela Agravante à Agravada, nenhuma necessidade existe de esta requerer a sua junção nos termos do 528º do Código de Processo Civil, já que se trata de documentos que a Agravada tem obrigação de ter na sua escrituração mercantil. - Salvo o devido respeito, que é muito, ao ordenar a junção aos autos de todas as facturas emitidas pela Agravante no período de 1.8.2001 a 30.7.2003, o Tribunal a quo violou o princípio do segredo da escrituração mercantil, e concretamente o disposto nos artigos 42º e 43º do C. Comercial, pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido. Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido, caso o mesmo não viesse a ser reparado. A recorrida contra alegou pugnando pela manutenção do decidido. Invocou, em síntese, que o que os artigos 42º e 43º do C. Comercial proíbem é a exibição dos livros de escrituração, por inteiro, que não há qualquer prejuízo no conhecimento dos elementos pretendidos por respeitarem a um período já muito afastado da actividade da agravante e que apenas a apresentação de todas as facturas emitidas por aquela no referido período permitirá fazer prova e esclarecer plenamente o tribunal sobre a matéria constante dos artigos 10º, 17º, 19º, 35º e 37º da Base Instrutória. O despacho recorrido foi sustentado. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2. Para a apreciação do recurso importa realçar, para além da factualidade constante do relatório que antecede, ainda os seguintes factos: - O despacho ora em recurso recaiu sobre um requerimento formulado pela autora, ora apelada, que justificou a necessidade da junção da cópia das facturas emitidas pela ré, agora apelante, no período que medeia entre 1.08.2001 e 30.07.2003, inclusive, “para prova directa do alegado nos artigos 10, 17º, 19º e contra-prova do alegado nos art. 35º e 37º da Base Instrutória”. - Resulta dos factos dados como assentes na base Instrutória, na parte que agora releva, que: A A. é uma empresa comercial que se dedica ao comércio e distribuição de produtos alimentares, nomeadamente cafés e respectivos sucedâneos; (al. A)); No início do 2º semestre do ano de 1989 passou a distribuir e vender no distrito de Viana do Castelo e depois de 1.05.1990, também no distrito de Braga, cafés da sociedade “V Lda”, comercializados sob a marca “C” (al. B), C, e D)); Em Outubro de 2001 a ré N adquiriu a totalidade do capital da dita sociedade, substituindo aquela sociedade no contrato firmado entre ela e a A. (al. I); Em 25.11.2002, a A. enviou à R. a carta de fls. 26 (…..) na qual dá como resolvido, com efeitos a partir daquela data, o contrato de distribuição exclusiva do Café Chave Douro nos distritos de Braga e Viana do Castelo. 3. Face ao teor das conclusões da agravante a questão a apreciar traduz-se em saber se, no caso concreto, a agravante, comerciante, está obrigada a apresentar todas as facturas por si emitidas, num determinado período dessa sua actividade, para prova de determinados factos alegados pela parte contrária ou se, tal pretensão, formulada por esta última e que mereceu deferimento no despacho recorrido, deveria ter sido desatendida, por dever prevalecer o princípio do segredo da escrituração mercantil, consagrado nos artigos 41° a 43° do Código Comercial, face ao princípio da colaboração das partes na descoberta da verdade, estabelecido no artigo 519º do CPC. Defende, basicamente, a agravante que a ordenada junção aos autos das facturas em causa violaria as disposições do Código Comercial atinentes ao sigilo comercial (artigos 42º e 43º) e permitiria à agravada, e mesmo a terceiros, conhecer factos sigilosos relacionados com a sua actividade, designadamente identificação dos seus clientes, respectivos consumos, preços e condições comerciais praticadas, o que, a acontecer, lhe causaria graves prejuízos. Estabelece o artigo 42º do C. Comercial que “ A exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra “. E acrescenta-se no preceito seguinte que “Fora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida “. A questão atinente ao sigilo comercial e o seu conflito com o dever de colaboração para a descoberta da verdade constante do art. 519º do CPC, por ter gerado ao longo do tempo controvérsia jurisprudencial, acabou por ser objecto de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência, de 22 de Abril de 1997, publicado in BMJ nº 466, págs. 86 a 92 que, para além de concluir que o artigo 43º do Código Comercial não fora revogado pelo artigo 519º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, decidiu que só poderia proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes “…quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida “. Com a revisão operada no CPC pelo DL nº 329-A/95, de 12.12, apesar de ter sido eliminado o primitivo nº 4 do art. 519º do CPC[1], passou a constar do art. 534º do mesmo diploma, tal como já constava do C. Comercial, que “A exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na legislação comercial” Simultaneamente foi suprimida a anterior redacção deste último preceito legal, que se referia às situações de exame ou inspecção limitada, prevista no art. 43º, do Código Comercial, com a seguinte redacção: “O disposto nos artigos anteriores não é aplicável aos livros de escrituração comercial, nem aos documentos relativos a ela“) E embora alguns autores e uma parte da jurisprudência já tenha defendido que, pelas razões expostas, o critério a tomar em consideração, neste particular, é basicamente o do nº 3, alínea c) e do nº 4, do art.º 519º do CPC, não sendo proibido o exame ou inspecção especificada aos livros de documentação comercial e a documentos a ela atinentes, das partes ou de terceiros, ainda que não tenham interesse ou responsabilidade na questão[2], há que não esquecer que o disposto no art. 519 nº 1, como enunciação de um princípio geral, que é, está também ele sujeito ao princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso, o qual se desdobra, por seu turno, em três subprincípios: “a) princípio da adequação, também designado por princípio da idoneidade; b) princípio da exigibilidade (também chamado da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias, porque os fins visados na lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos liberdades e garantias; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins obtidos (cfr. Gomes canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol. I, 4ª ed., p 392/393). Ora não foi o exame ou inspecção especificada aos livros de documentação comercial e a documentos a ela atinentes, que a autora requereu. O que ela pretende e foi deferido foi a junção aos autos de um conjunto de facturas emitidas pela ré, no exercício da sua actividade, referente a um período determinado, mas necessariamente relativo às vendas para todo o país, quando a autora tinha possibilidade de limitar o âmbito dessa documentação e inerente devassa da mesma, legalmente protegida por normas especiais, como se verá adiante. Assim sendo, vejamos. Estando, como estamos, perante uma contraposição de interesses entre o dever de colaboração das partes e a invocada protecção devida à documentação comercial, há que decidir qual desses interesses deve, no caso, prevalecer. E, para tanto, há que ponderar da indispensabilidade ou não dos documentos em causa para a apreciação do pedido, devendo ter em consideração, para além das normas conflituantes acima referidas, ainda as regras atinentes ao ónus da prova, ao dito princípio da proporcionalidade em sentido restrito, na da medida em que ninguém deve ser obrigado a fornecer provas em seu prejuízo e, sobretudo, à possibilidade que a parte onerada com o dever de provar o facto tem, por si mesma, de a fazer ou possibilitar a sua realização pela forma minimamente invasora dos direitos da parte contrária. Ora a matéria controvertida relativamente à qual foi invocada a necessidade de apresentação dos documentos em causa prende-se, essencialmente, com os factos constantes dos artigos 10º e 17º, oriundos de matéria claramente alegada pela autora e constitutiva do direito indemnizatório por ela visado, através da qual se procura apurar se a ré, alguns meses antes da autora resolver o contrato em causa, “tendo tido acesso à lista de clientes desta, passou a vender a tais clientes, directamente, a mercadoria que até aí lhes vendia através da autora”. A autora de posse da sua lista de clientes, podia e devia ter concretizado a identificação dos clientes ditos “perdidos”, o que teria logo como consequência a desnecessidade de requerer a junção aos autos de todos as facturas emitidas pela ré, no período em causa, inclusive para além das áreas geográficas em que ela actuara, já que não é crível que a ré tenha a sua escrita organizada em termos da área dos seus agentes e, portanto, só a junção de todas permitiria extrair a conclusão visada. A autora dispunha, pois, de meios probatórios, pelo menos facilitadores da descoberta da verdade dos factos, de que injustificadamente se não serviu (mesmo na fase da instrução), o que, na ponderação dos interesses conflituantes em causa, e tendo em conta os parâmetros limitadores enunciados leva a que, no caso concreto, se entenda não ser de dar prevalência ao princípio do dever de colaboração da parte contrária para a descoberta da verdade dos factos constante do art. 519º do CPC. Isto, sem prejuízo, todavia, de, em sede de julgamento poder vir a ser oficiosamente determinado o exame dos documentos em causa da escrita da agravante, nos termos do art. 43º do C. Comercial, se tal se vier a revelar indispensável para a descoberta da verdade dos factos. Procede, pelo exposto, o núcleo central da argumentação da recorrente e, como tal, impõe-se revogar o despacho recorrido. 4. Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido. Custas pela agravada. Lisboa, 17 de Abril de 2008. (Maria Manuela B. Santos G. Gomes) (Olindo dos Santos Geraldes) ( Fátima Galante ) _______________________________________ [1] Com o seguinte teor “ Fica salvo o disposto quanto à exibição judicial, por inteiro dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos” [2] Neste sentido, vide acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Março de 2004, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIX, tomo II, págs.. 84 a 86 ; vide José Lebre de Freitas, in “ Código de Processo Civil Anotado, Volume II, págs.. 437 e 438, onde refere “O Decreto-Lei nº 329-A/95 fundiu este preceito com o do anterior 519º, nº 4, circunscrevendo a sua previsão à exibição judicial por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos, deixando de referir a exclusão da aplicação dos preceitos anteriores e remetendo, pura e simplesmente, para a legislação comercial ( … ) A exibição por inteiro dos livros e da escrituração comercial está, em princípio, vedada, mas tal não impede o exame ou inspecção parcial, na parte em que seja necessária à prova, para tanto bastando que se requeira o exame da escrituração que for necessária para apuramento de determinados factos “, todos citados no acórdão deste Tribunal de 2.05.2006, proc. nº 1572/2006-7, in www.dgsi.pt/jtrl, cujo doutrina se tem seguido de perto |