Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3881/12.1TJLSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES
INCUMPRIMENTO
PRESUNÇÃO DE CULPA
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
II-Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, nos termos do artigo 799.º do Código Civil. Não tendo o devedor feito tal prova, vigora a presunção de culpa do devedor.
III-Provados os prejuízos causados ao credor, em consequência do incumprimento do devedor, cujo valor exacto não seja possível averiguar, poderá o tribunal fixar o valor da indemnização, com recurso à equidade, nos termos do art.º 566.º n.º3 do Código Civil, aplicável à responsabilidade contratual.
(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

                        I-RELATÓRIO

                      Ó… – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., com sede na Rua…., em Lisboa, intentou contra  P…, S.A., com sede no Lugar… , a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, pedindo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização, no valor total de € 7.379,29 acrescida de juros legais vincendos, a título de danos  materiais de € 4.379,29 e por danos morais de € 3.000,00. Mais requer que o contrato celebrado entre Autora a Ré seja declarado resolvido por parte da Autora, por incumprimento definitivo e culposo por parte da Ré, a partir de 4 de Junho de 2012, não  podendo a Ré reclamar qualquer pagamento, a partir desta data, nomeadamente por  invocação da fidelização contratual.

                       Para tanto alegou, em resumo, que entre Autora e Ré foi celebrado um contrato de prestação de serviço de voz e internet, denominado Serviço Clix ADSL 24 megas. Em 4 de Junho de 2012, a Autora ficou privada da utilização do sistema de voz e internet por avaria, da única e exclusiva responsabilidade da Ré. Não tendo sido reparada a avaria técnica, a Autora viu-se forçada a solicitar a desactivação dos serviços prestados e a denunciar o contrato por incumprimento desta.

             Com a avaria, a Autora sofreu danos, no plano das vendas, bem como nas relações comerciais com os clientes, o tempo perdido com as reclamações e o facto de a boa imagem e o prestígio da Autora terem sido afectados junto do mercado, dos clientes e da potencial clientela.

                       Regularmente citada, a Ré O…, S.A. apresentou contestação, na qual impugna a data da avaria, a responsabilidade pela mesma, bem como os prejuízos invocados.

                       Decorridos todos os trâmites legais, foi realizado o julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.

                      Inconformada com tal decisão, a Autora interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões de recurso:

                        Omissis (…)

           

A Ré/Apelada apresentou contra alegações pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

            II-OS FACTOS

           Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 

A - Constantes do factos assentes:  

1 – A Autora Ó…, LDA. é uma empresa que tem por objecto as actividades de elaboração de projectos e estudos e arquitectura paisagista e engenharia agrónoma, consultoria ambiental, assistência técnica e fiscalização de obras e espaços verdes, elaboração de estudos de impacto ambiental e de planeamento urbano, agrícola e silvo pastoril e outras actividades relacionadas com a arquitectura paisagista, assim como o comércio, representação, distribuição, importação e exportação nacional e internacional de sistemas de comunicação informática e desenho assistido por computador (conforme certidão permanente juntas aos autos a fls. 8 a 9, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) – (Facto A)).

2 - No âmbito da sua actividade, a Ré P.., S.A. propôs à

Autora o serviço de voz e internet, denominado Clix ADSL 24 Megas, identificação n.º

2PN_000006412135 e referente à conta Optimus Clix n.º 000, que foi por esta

aceite e que foi activado, em 16 de Fevereiro de 2009, com as características que se encontram descritas a fls. 10, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (Facto B)).

3 - Em Junho de 2012, a Autora ficou privada da utilização do sistema de voz e internet por avaria, o que originou o processo interno da Ré com o n.º SD000 (Facto C)).

4 - A 4 de Julho de 2012, a Autora mudou de operadora de comunicações (Facto D)).

5 - A Autora solicitou a desactivação dos serviços prestados pela Ré e denunciou o contrato, tendo sido aceite pela Ré, em 6 de Julho de 2012, e tendo ocorrido a  desactivação a 2 de Agosto de 2012 (Facto E)).

6 - A Ré emitiu em nome da Autora as seguintes facturas:

- n.º 00195778760512, no valor de € 40,52, com vencimento a 12 de Junho de 2012, referente a mensalidade e comunicações adicionais;

- n.º 00253656770812, no valor de € 156,70, com vencimento a 10 de Setembro de 2012, referente a indemnização por incumprimento contratual (Facto F)).

B – Constantes da resposta aos quesitos:

7 - A avaria referida em C) ocorreu em Junho de 2012 (Resposta ao quesito 1.º)).

8 - O problema técnico ficou resolvido em 29 de Junho de 2012 (Resposta ao quesito 3.º)).

9 - A Autora viu-se privada da utilização dos sistemas de comunicações de Internet e de voz num período não concretamente apurado, mas que iniciou em dia não determinado de Junho até ao dia 29 de Junho (Resposta ao quesito 4.º)).

10 - A avaria referida em C) foi reportada pela Autora à Ré, em 15 de Junho de 2012 (Resposta ao quesito 13.º)).

11 - No dia 15 de Junho de 2012, foi aberto registo de avaria na X…, S.A. (Resposta ao quesito 15.º)).

12 - Foi marcada uma intervenção conjunta que ficou agendada para o dia 28 de Junho de 2012 (Resposta ao quesito 17.º)).

13 - Em 29 de Junho de 2012, a Autora confirmou a operacionalidade dos serviços (Resposta ao quesito 21.º)).

            III-O DIREITO

            Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas, que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa conhecer são as seguintes:

            1-Reapreciação da matéria de facto

            2-Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

           3-Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão

           4-Indeferimento da tomada de declarações do gerente da Autora

            5-Indemnização por incumprimento contratual

            Omissis (…)

                       2-A Apelante invoca a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia dado que não se pronunciou sobre pedido formulado de resolução do contrato celebrado entre Autora e Ré, por incumprimento definitivo e culposo desta.

                        Importa analisar tal invocação de nulidade.

                       Efectivamente, é nula a sentença quando “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar” – art.º 668.º n.º 1 d) do CPC ( actual art.º 615 n.º1d)).

            A ora Apelante, depois de formular pedido no sentido de a Ré ser condenada a pagar-lhe a quantia de €7.379,29 a título de indemnização por danos causados em consequência do incumprimento contratual da Ré, pede que “o contrato celebrado entre Autora e Ré(…) seja declarado resolvido por parte da Autora por incumprimento definitivo e culposo por parte da Ré, a partir de 04/06/2012, não podendo a Ré reclamar qualquer pagamento a partir desta data, nomeadamente por invocação da fidelização contratual.

            Ora, em primeiro lugar, a resolução do contrato não tem de ser declarada pelo tribunal, ela pode fazer-se mediante declaração à outra parte, nos termos do art.º 436.º do Código Civil. Portanto, a intervenção do tribunal para declarar a resolução do contrato é desnecessária. Por outro lado, pretendia a Apelante que o Tribunal declarasse essa resolução com a finalidade de a Ré não poder reclamar qualquer pagamento a partir da data da resolução. Ora, também aqui, não faz sentido pedir a intervenção do tribunal para antecipar a defesa, relativamente a um pedido que ainda não foi formulado. Ou seja, só perante a exigência de pagamento de valores que a Autora considere indevidos é que fará sentido esta defender-se com os fundamentos dos quais decorra que não é devedora, e não antes. Note-se que, no presente processo, não foi deduzido pedido reconvencional. Embora esteja provado que a Ré emitiu facturas por valores que a Autora considera não serem devidos, a verdade é que esses valores não estão peticionados neste processo, pelo que não tem cabimento pedir ao Tribunal que, antecipadamente, decida sobre a não exigibilidade de quantias que ainda não sabemos se vão ser exigidas judicialmente.

           A questão que importava conhecer nos presentes autos e que foi conhecida pela 1.ª instância centrava-se na existência de incumprimento contratual culposo por parte da Ré e consequente dever de indemnizar, por parte desta. O Tribunal concluiu que, embora havendo incumprimento contratual culposo da Ré, não havia lugar ao dever de indemnizar por não terem sido provados danos indemnizáveis.

           Nestes termos, cremos que o pedido relacionado com a resolução do contrato não envolvia questão que devesse ser apreciada pelo Tribunal, pelo que o facto de o Tribunal não se ter pronunciado sobre tal matéria, não constitui a nulidade prevista na lei processual.

            Improcedem as conclusões do apelante a este propósito.

           3-Alega a Apelante que a sentença é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão. E para tanto refere que tal contradição resulta de se considerar que houve incumprimento contratual por parte da Recorrida, mas, por outro lado, deu-se como não provada a matéria constante do artigo 2.º da base instrutória onde se dizia que “ [a avaria] foi da única e exclusiva responsabilidade da Ré”. Ora, a circunstância de este facto estar dado como não provado, daí não resulta qualquer contradição, uma vez que tal não significa que esteja provado o facto contrário. Sucede, tal como se diz na sentença recorrida, que funciona a presunção de culpa do devedor, prevista no art.º 799.º n.º 1 do Código Civil.

            Improcede, a invocada nulidade.

           4-Invoca a Apelante que o indeferimento da tomada de declarações ao gerente da Autora não é aceitável, na medida em que feriu a possibilidade do pleno exercício dos direitos da Recorrente e inviabilizou um processo judicial justo.

           Ora bem, a tomada de declarações do gerente da Autora redundaria num depoimento de parte que só poderia ser requerido pela parte contrária e não pela própria parte, como foi o caso. Assim, não podia deixar de ser indeferido, como foi, no despacho de fls. 79, à luz da lei processual civil vigente à data da decisão. Além do mais, o Apelante não impugna tal despacho.

           Improcede a invocação de que tenham sido postos em causa os direitos do Recorrente ou inviabilizado um processo judicial justo. Nunca este objectivo poderia ser obtido utilizando meios de prova legalmente inadmissíveis.

           5-Por fim, importa apreciar a questão de fundo deste recurso e que consiste em saber se, de acordo com a factualidade apurada, considerando inclusive as alterações introduzidas, existirá obrigação de indemnizar por parte da Ré, a título de responsabilidade contratual.

           Ora, em sede de responsabilidade contratual, importa convocar o disposto no art.º 799.º do Código Civil, segundo o qual incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua. Nos presentes autos, demonstrado ficou que entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços, pelo qual a Autora fornecia serviço de voz e internet, mediante uma retribuição a ser paga pela Autora.

           Nos termos do artigo 39.º, n.º 3, alínea b) da Lei das Comunicações Electrónicas

(aprovado pela Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 51/2011, de 13 de Setembro), constitui direito dos assinantes, nos termos da referida lei, aceder aos serviços contratados de forma contínua, sem interrupções ou suspensões indevidas.

           No caso presente, apurou-se que, pelo menos desde 15 de Junho de 2012 até 29 de Junho de 2012, ou seja, pelo menos durante 15 dias, a Autora ficou privada da utilização do sistema de voz e internet por avaria.

                        Não tendo ficado provada a origem da avaria, sendo que na responsabilidade contratual incumbiria ao devedor – neste caso, a Ré - provar que tal falta não procedeu de culpa sua, impõe-se concluir que não ilidiu a presunção de culpa, devendo considerar-se sujeita à obrigação de indemnizar, por incumprimento contratual.

                       Até aqui concordamos inteiramente com a sentença recorrida.

                       Porém, a acção improcedeu porque, como se diz na sentença “ a Autora não logrou fazer prova dos danos que alegadamente ocorreram na sua esfera jurídica passíveis de indemnização e consequentemente não se verificou demonstrada a relação entre o facto – interrupção do serviço de voz e internet – e as respectivas consequências.

                       Começa aqui a nossa discordância, com todo o respeito, por entendimento contrário. Nos nossos dias, atenta a implantação das tecnologias de informação e da informatização de todos os ramos da actividade económica, é impensável que uma empresa funcione sem telefone e sem acesso à internet, especialmente quando se trata de uma empresa, como é o caso dos autos, que se dedica, entre outras actividades, ao comércio de sistemas de comunicação informática e que tal actividade se desenvolve via internet.

                       Assim, é fácil compreender que “a impossibilidade de a Autora utilizar os serviços de voz provocaram incómodos e transtornos na relação comercial com os seus clientes e fornecedores” e ainda que “pela impossibilidade de utilização dos serviços de internet e voz, a imagem e o prestígio da Autora foram afectados junto do mercado, dos clientes e da potencial clientela”. É um facto notório que, actualmente, quando há uma falha no serviço de internet, por algumas horas, já causa grandes transtornos no desenvolvimento de qualquer serviço ou actividade. Torna-se evidente que esses transtornos serão intoleráveis caso se prolonguem por quinze dias, como foi o caso dos autos. Nesse caso, deixam de ser meros transtornos ou incómodos, traduzem-se em prejuízos, em danos. Como resultou provado, a imagem e prestígio da     Autora foram afectados pela impossibilidade de contacto por parte dos clientes. Este é um dano que é por demais óbvio, mas de difícil quantificação. Será que, por isso, deve deixar de ser indemnizado? Parece-nos também por demais óbvio que assim não poderá ser. A lei confere mecanismos para ultrapassar a dificuldade e conduzir a soluções justas. Estabelece o artigo 566.º n.º3 do Código Civil que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.” Esta disposição legal deve considerar-se aplicável à obrigação de indemnizar por que é responsável o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, como é o caso dos autos[1].

                       Não há dúvida que existiram danos decorrentes da interrupção do serviço de voz e internet, durante pelo menos 15 dias, danos esses muito dificilmente quantificáveis, mas que nem por isso deverá permitir-se que a lesada permaneça prejudicada, sem a devida reparação. O valor da referida reparação deverá ser obtido, com recurso à equidade, nos termos do art.º 566.º n.º3 do Código Civil. Assim, tendo em conta tais parâmetros, julga-se adequado o valor de € 2.500,00 para ressarcir a Autora dos prejuízos supra referidos, relacionados com os reflexos negativos que a impossibilidade de utilizar os serviços de voz provocaram na relação comercial com os seus clientes e fornecedores bem como relacionados com a perda de imagem e prestígio, junto do mercado, dos clientes e da potencial clientela, em consequência da impossibilidade de utilização dos serviços de internet e voz.

            Procedem, nesta parte, as conclusões da Apelante.

            IV-DECISÃO

            Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso e revogando a decisão recorrida, julgar parcialmente procedente a acção e, por consequência, condenar a Ré a pagar à Autora, a título de indemnização por incumprimento contratual, a quantia de € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros).

            Custas pela Apelada.

            Lisboa, 5 de Junho de 2014

            Maria de Deus Correia

            Maria Teresa Pardal

            Carlos de Melo Marinho

           


[1] Neste sentido ver os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça  de 6-12-1978: BMJ, 282.º-166 e de 21-11-1979: BMJ, 291.º-480.


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