Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
141/16.2PAAMD.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. A imputação do erro sobre a ilicitude ao agente é fundamentalmente decidida em função de um juízo sobre as características da atitude pessoal do agente, isto é, no apuramento de uma atitude de fidelidade ou de contradição ou indiferença ao Direito.
II. A conduta do agente que conduz um veículo automóvel em Portugal, erroneamente convencido de que o podia fazer por ter diligenciado pela troca da sua carta num outro país da EU, constitui um erro da consciência psicológica e não um erro da consciência ética, não existindo nesta situação qualquer embotamento da personalidade, qualquer obstáculo à “apreensão das decisões axiológicas da ordem jurídica”, mas antes uma errada representação de um elemento normativo do tipo – estar habilitado a conduzir nos termos da legislação estradal -, pelo que estamos no campo de aplicação do artigo 16.º, n.º 1 e 3, do Código Penal.(Sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo abreviado n.º 141/16.2PAAMD, foi deduzida acusação contra A …, melhor identificado nos autos, pela imputada prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Atento o exposto, tudo visto e ponderado, o Tribunal decide:
1) Condenar A … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.°, n.º 1 e 2 do Decreto-lei n." 2/98, de 3 de Janeiro, e do artigo 17.°, n." 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de 300,00 € (trezentos euros).
2) Fixar em 32 (trinta e dois) dias a prisão subsidiária que o arguido cumprirá caso a pena de multa a que foi condenado não seja paga, voluntária ou coercivamente, nos termos do disposto no artigo 49.° do Código Penal.
(…)»

2. O arguido recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I. A discordância, do recorrente quanto à Sentença, é precisamente o facto de, ao longo de toda a sentença o Tribunal considerar que o Recorrente conduziu o veículo, plenamente convicto de o poderia fazer, porém, entende que não se está perante um caso de negligência do agente, mas antes um erro sobre a ilicitude e, considerando o Tribunal esse erro censurável, é, portanto, punido a título de dolo - Art. 17.º n.º 2 CP.
II. Foi dado como provado que o arguido sabia que tinha de ser portador de carta de condução para poder conduzir, e que o arguido conduziu em Portugal convencido de que o título que tinha lhe permitia essa mesma condução, atento o facto de poder fazê-lo em Itália.
III. A censura feita pelo Tribunal - nos termos do Art. 17.º n.º 2 CP - reporta-se a uma apreciação "segundo o homem médio".
IV. Ora, a apreciação segundo o homem médio, corresponde a um juízo feito na óptica de um sujeito, normal, comum, nem analfabeto, nem excessivamente informado especial ignorância, mas também sem especial conhecimento.
V. E nesse prisma, o homem médio parece-nos, parte do pressuposto que, se pode conduzir, num dado país da União Europeia, pode conduzir em qualquer país da união Europeia, atenta a própria homogeneidade normativa entre todos os países.
VI. Por este motivo, entende-se que de facto, o recorrente sabia que tinha de ser detentor de título de condução, e que de facto o arguido agiu com a consciência plena de que, podia conduzir em Portugal, em virtude da troca da carta de condução Guineense para Italiana - e que o habilitava a conduzir em Itália.
VII. Não se pode porém concordar com o entendimento do Tribunal, no ponto em que o Tribunal entende, que o Arguido, ao saber que essa mesma carta de condução tinha de ser emitida pelo organismo competente, reconduz aqui, a uma acepção de organismo competente, em Portugal.
VIII. Nessa parte tem de se discordar, necessariamente.
IX. Pois que, se o arguido soubesse que a transcrição da carta guineense para italiana, não o habilitava a conduzir em Portugal, assim como meses mais tarde para evitar problemas, foi tirar a Carta em Portugal, teria logo, e de imediato feito isso mesmo, evitando qualquer contratempo.
X. E assim, concorda-se com o Tribunal a quo, quando na Sentença afirma " tendo ficado convicto que o mesmo pensava, genuinamente, estar habilitado a conduzir em qualquer país da União Europeia."
XI. [sem texto]
XII. Ora, significa tal convicção do Tribunal que o dolo se encontra peremptoriamente afastado. Aliás tal resulta da própria Sentença.
XIII. Por outro lado o Tribunal a quo dá como assente que o elemento subjectivo não se mostra preenchido ("verifica-se que o elemento subjectivo não se mostra preenchido. (...) provou-se que o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente. No entanto fê-lo na convicção de que tal comportamento lhe era permitido, ou seja convencido de que podia exercer a condução daquele veículo ( ... ) " )
XIV. Considerando de seguida, no entanto, que há um erro sobre a ilicitude e que, nos termos do Art. 17.º n.º 2 CP esse mesmo erro é censurável, e portanto punível em equiparação ao dolo.
XV. Com o devido respeito, há uma contradição entre a fundamentação da sentença, e a condenação, já que, se se aceita que o individuo tem noção e consciência de que necessita de um título para conduzir, então não há erro sobre a ilicitude, mas no máximo uma negligência.
XVI. Com o devido respeito e salvo melhor entendimento, há erro sobre a ilicitude quando, um determinado sujeito actua convicto que a sua acção é lícita e legal.
XVII. Ora, o Recorrente sabe que necessita de um título para conduzir, e portanto, não há qualquer erro sobre a ilicitude, há sim, no máximo, uma violação de um dever de cuidado, de cautela, em garantir que o título que tinha era válido em outros países da UE.
XVIII. Por outro lado, se um sujeito, que conduz em Itália, sabendo que necessita de título para o fazer, garante que tem esse título, porém, falhou para com o dever de diligência e não confirmou se o mesmo era válido em Portugal, salvo melhor opinião, esse sujeito não actua em erro sobre a ilicitude, mas antes a titulo negligente, pois que, ele sabe que há uma conduta que é proibida, que é a condução sem título, e garante que ela não se verifica, apenas não garantiu que o titulo que possui é valido e bastante.
XIX. Assim, discorda-se do Tribunal a quo, quando este Tribunal entende que se verifica um erro sobre a ilicitude.
XX. Porém, mais ainda se discorda, quando, partindo e aceitando até, este erro sobre a ilicitude Tribunal considera que esse erro, é censurável (não saber que um documento emitido pela República da Itália, e que legitima um sujeito a conduzir em Itália não é válido em Portugal).
XXI. Com o devido respeito, parece-nos, há por parte do Tribunal a quo, uma exigência de conhecimento ao homem médio, que, não corresponde à realidade.
XXII. O comum homem médio sabe que Portugal e Itália fazem parte da União europeia, porém não sabe que certos títulos de certos países só são válidos no próprio país.
XXIII. Por esse motivo se entende que, atenta toda a fundamentação da sentença, se deu como provada a negligência da acção do Recorrente e não o erro sobre a ilicitude, e
XXIV. Por outro, aceitando um erro sobre a ilicitude nunca se poderá entender que é um erro censurável e que, de facto, é exigível aos cidadãos da União Europeia saberem onde podem e não podem conduzir, dentro da UE.
(…)
XXVI. O ilícito de condução sem habilitação legal exige por um lado a condução de veículos sem posse de documento válido e que o autorize, e, o conhecimento de que, não o poderia fazer.
XXVII. Este tipo doloso exige que, o agente no momento da prática do crime, represente todos os elementos objectivos, constitutivos do tipo de ilícito e actue ainda assim com vontade de praticá-lo, e bem assim o agente tem de ter consciência dos valores jurídicos penalmente protegidos e tem de ter noção do carácter desvalioso da sua conduta.
XXVIII. Ora não havendo valoração pelo agente da conduta ilícita, nem conhecimento de todos os elementos constitutivos do tipo, e sendo necessária uma correcta orientação da consciência do agente para o ilícito, estamos perante um acto censurável no plano da negligência e não do dolo, nem por equiparação.
XXIX. Assim pode-se censurar uma falta de cuidado e não uma falta de consciência ética para o ilícito, o que é conforme já foi dito, típico da censura negligente.
XXX. Ora nos termos do Art. 16.º n.º 1 e 3 do CP o erro sobre os elementos de facto e de direito do tipo de crime exclui o dolo.
(…)
Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se a este Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decida, pelo provimento do Recurso, com a necessária alteração e revogação da decisão recorrida, sendo o Arguido absolvido, por provada a negligência da conduta.
               
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta no sentido de que a sentença recorrida não merece censura.
           
4. Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), limitou-se a subscrever a posição do Ministério Público na 1.ª instância (em rigor, seria caso para apor apenas o visto).

5. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, realizou-se audiência para debate dos pontos para o efeito especificados pelo recorrente no recurso.

II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que importa decidir é a de saber se a factualidade provada permite concluir que o arguido actuou em erro censurável sobre a ilicitude, nos termos do artigo 17.º, n.º 2, do Código Penal, justificando-se, por isso, a sua condenação pela prática de crime de condução de veículo sem habilitação legal; ou se permite concluir, como alega o recorrente, que o arguido actuou em erro sobre proibição, nos termos do artigo 16.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo Código Penal, impondo-se a sua absolvição, por não ser punível essa condução quando praticada com negligência.
           
2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
Da Acusação
1) No dia 20 de Junho de 2016, pelas 11:05 horas, na Avenida Gago Coutinho, na Amadora, A … conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, sem que fosse titular de documento que legalmente o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo em território nacional.
2) O arguido sabe que para conduzir veículos motorizados na via pública necessita de ser titular e portador de carta de condução válida, emitida pelo organismo competente.
3) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
Mais Se Provou Que:
4) O arguido é titular de carta de condução emitida pelas autoridades competentes da Guiné-Bissau a qual, nas circunstâncias de tempo referidas em 1., se encontrava em fase de legalização em Itália.
5) O arguido agiu da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional, em virtude de ter requerido a troca da sua carta de condução, emitida pelas autoridades da República da Guiné Bissau, por carta de condução Italiana.
6) O arguido é titular de documento válido para a condução de veículos automóveis em território nacional desde 20 de Dezembro de 2016.
Das Condições Pessoais do Arguido:
(…)
Dos Antecedentes Criminais:
11) Não consta dos autos que A … tenha antecedentes criminais.
           
2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Não se provaram todos os demais factos que se não compaginam com a factualidade apurada, sendo certo que aqui não interessa considerar as alegações conclusivas, de direito ou meramente probatórias, as quais deverão ser analisadas e ponderadas em sede própria desta decisão, nem as alegações manifestamente irrelevantes para a decisão. Designadamente, não se provou que:
a) A … sabia que não estava legalmente habilitado a conduzir o veículo em causa em território nacional.
b) A … agiu da forma descrita bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.       

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, atendendo nos dados objectivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal.
Ora, para apurar a factualidade assente não basta enumerar os meios de prova de que se socorreu o Tribunal, antes se impondo a "explicitação do processo de formação da convicção do tribunal" (Acórdão da Relação de Coimbra n.º 680/98 de 2 de Dezembro, disponível em www.dgsi.pt), por forma a permitir uma compreensão "do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º (…) de 12 de Maio, disponível in www.dgsi.pt.).
Esse processo de convicção formar-se-á, não só com os "dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz; (im)parcialidade, serenidade, ( .. .) "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos" (Acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Janeiro de 2005, também disponível in www.dgsi.pt.).
Especificando.
Na prova da factualidade vertida no ponto 1. dos factos provados valoramos, desde logo, o depoimento da testemunha P …, agente da Polícia de Segurança Pública responsável pela abordagem, fiscalização e detenção do arguido o qual, de forma verdadeiramente espontânea, séria, circunstanciada e credível, relatou em tribunal os factos de que teve directo conhecimento no contacto com o arguido, e no âmbito do exercício das suas funções, assim confirmando a isenção que, em face daquele exercício e da ausência prévia de conhecimento do arguido, lhe é conferida. Descreveu-nos, nessa sequência, as circunstâncias de tempo e lugar em que procedeu à fiscalização do arguido o qual, aquando da abordagem, lhe exibiu uma carta de condução emitida pelas autoridades da República da Guiné-Bissau, e bem assim um conjunto de documentos que comprovavam que havia requerido a legalização dessa carta de condução em Itália, país onde, na altura, exercia a sua actividade profissional.
Os esclarecimentos prestados por esta testemunha foram confirmados, de forma segura e coerente, pelo depoimento da testemunha E …, agente da Polícia de Segurança Pública que o acompanhava nas referidas circunstâncias de tempo e lugar.
A corroborar o depoimento das identificadas testemunhas, e no que se refere à prova documental, consideramos o teor dos seguintes documentos: auto de notícia por detenção de fls. 2 e 3 (relativamente às circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, e bem assim à identificação do veículo conduzido pelo arguido), fotocópia da carta de condução do arguido de fls. 8, informação retirada das bases de dados do IMT de fls. 16, da qual consta que, na data da prática dos factos, o arguido não era titular de carta de condução portuguesa ou de qualquer outro documento, reconhecido pelas autoridades portuguesas, e que o habilitasse a conduzir em território nacional, a informação do IMT de fls, 102 (a qual confirma a informação prestada a fls. 16, acrescentando que os condutores habilitados com título de condução emitido pela República da Guiné-Bissau, independentemente de se encontrarem em fase de legalização em qualquer país da União Europeia, não podem conduzir com esse título em Portugal), informação veiculada pelo IMT de fls. 114 (através da qual se atesta que a carta de condução emitida pelas autoridades da Guiné-Bissau não habilita o respectivo titular a conduzir em território nacional, porquanto aquele país não ratificou nem assinou a Convenção Internacional de Genebra nem a Convenção Internacional de Viena, não existindo também-entre a Guiné Bissau e Portugal qualquer acordo de reconhecimento mútuo de títulos de condução, e bem assim que a guia que é emitida aquando da entrega da carta de condução estrangeira em fase de legalização em Portugal só habilita a conduzir em território nacional), a informação do IMT de fls. 140 (que acrescenta à informação anteriormente prestada, e após envio de fotocópia dos documentos italianos exibidos pelo arguido ao agente da Polícia de Segurança Pública, que os mesmos não habilitam à condução de veículos em Portugal), e, finalmente, fotocópia dos documentos de fls. 157 e 158, denominado título de condução que, em conjugação com a informação do IMT de fls. 177 nos atestam que o arguido, na sequência do requerimento de processo para troca de título de condução da Guiné-Bissau, se encontra habilitado a conduzir veículos motorizados em Portugal desde o dia 20 de Dezembro de 2016. O conteúdo dos documentos identificados não foi impugnado, tendo o seu valor probatório saído incólume da audiência de julgamento realizada nos presentes autos.
Ora, conjugando os esclarecimentos prestados pelos agentes da Polícia de Segurança Pública com a realidade atestada pelos documentos que acabamos de identificar e descrever não tivemos qualquer dúvida em dar como provada a malha factual vertida nos pontos 1., 4. e 6. dos factos provados, ou seja, que o arguido efectivamente conduzia o veículo em causa nas circunstâncias de tempo e lugar vertidas no libelo acusatório, sem que fosse titular de documento que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo em território nacional, porquanto a carta de condução emitida pelas autoridades competentes da República da Guiné-Bissau não é reconhecida em Portugal, não sendo os documentos emitidos pelas autoridades competentes de Itália (e que atestam que o arguido aí deu início ao processo de legalização da sua carta para documento válido em Itália) título bastante que o habilite a conduzir nos demais países da União Europeia e, naturalmente, em território nacional.
A factualidade vertida nos pontos 2. e 3. resulta do funcionamento daquelas que são as mais elementares regras da experiência comum quando confrontadas com os dados objectivos dados como provados, porquanto é do conhecimento geral e acessível ao cidadão comum que para conduzir veículos motorizados na via pública é necessário estar munido do respectivo titulo/carta de condução válida, emitida pelo organismo competente. O arguido é, inclusivamente, detentor de carta de condução, razão pela qual temos por certo que, no geral, sabe da necessidade de ser titular de carta de condução para conduzir veículos motorizados, tendo exercido a condução daquele veículo de forma livre, delibera e consciente.
Por sua vez, formamos convicção segura quanto ao facto vertido no ponto 5. com recurso ao depoimento do agente P … que, no contacto directo que manteve com o arguido aquando da sua abordagem, nos descreveu a sua reação quando confrontado com o facto dos documentos que atestavam o processo de regularização da carta de condução de que era titular em Itália não lhe permitirem a condução de veículos motorizados em Portugal. Efectivamente, esta testemunha referiu que o arguido se mostrou surpreendido, tendo ficado convicto que o mesmo pensava, genuinamente, estar habilitado a conduzir em qualquer país da União Europeia. Tal convicção foi-nos ainda atestada pelas testemunhas O …, tia do arguido, e EJ …, primo do arguido, que, pela relação próxima que mantêm com o mesmo, demonstraram directo conhecimento sobre a realidade que nos relataram. Parece-nos verdadeiramente plausível que, exercendo a sua actividade profissional fora do território nacional, e estando em causa a legalização da carta de condução num país da União Europeia, que o arguido estive convencido da legalidade da sua actuação.
As condições pessoais e económicas do arguido, face à sua ausência em audiência de julgamento, resultam assentes com recurso ao teor das informações fornecidas pelas pesquisas efectuadas às bases de dados da Segurança Social e da Direcção de Finanças, de fls. 182 e seguintes. Consideramos, ainda, neste concreto aspecto, os esclarecimentos prestados pelos familiares do arguido, as testemunhas O … e EJ …, as quais, repete-se, demostraram directo conhecimento sobre a sua realidade pessoal e profissional (pontos 7. a 10. dos factos provados).
Por último, na prova da ausência de antecedentes criminais do arguido valoramos o teor do seu Certificado de Registo Criminal, junto aos autos a fls. 165 (ponto 11.).
***
Quanto aos factos não provados, os mesmos assim resultaram porquanto, conforme supra melhor fundamentamos, foi feita prova da realidade contrária, ou seja, que o arguido estava convencido que estava habilitado a conduzir em Portugal e, portanto, que a sua conduta era lícita e criminalmente inócua.
***

3. Apreciando

3.1. Está provado que o arguido, que é titular, desde 20 de Dezembro de 2016, de documento válido para a condução de veículos automóveis em território nacional, no dia 20 de Junho de 2016, pelas 11:05 horas, na Avenida Gago Coutinho, na Amadora, conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros sem que, na altura, fosse titular de documento que legalmente o habilitasse a tal condução em Portugal.
O arguido é titular de carta de condução emitida pelas autoridades competentes da Guiné-Bissau, tendo agido da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional, em virtude de ter requerido a troca da sua carta de condução, emitida pelas autoridades da República da Guiné Bissau, por carta de condução italiana.
            Diz-se na sentença recorrida:
            «Não restam, pois, dúvidas que o arguido preencheu o tipo objectivo de ilícito do crime de condução sem habilitação legal, na medida em que foi encontrado na via pública a conduzir um veículo automóvel sem para tal estar habilitado, uma vez que não era titular ou portador de carta de condução ou qualquer outro documento que validamente o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública em território nacional, tal como consta dos factos provados.
Efectivamente, o arguido conduzia munido de carta de condução emitida pela República da Guiné- Bissau, estando a mesma em fase de legalização em Itália. Ora, relativamente às cartas emitidas pelas autoridades competentes da República da Guiné Bissau ainda não ocorreu o exigível reconhecimento da validade destas cartas de condução por parte da Administração Pública portuguesa, sendo que a legalização das mesmas em país da União Europeia não as toma válidas e operantes em território nacional.
Relativamente ao elemento subjectivo do tipo estamos perante um crime punido apenas a título doloso, tal como preceitua o artigo 13. do Código Penal, nos termos do qual "só é punível o facto praticado a título de dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência".
Quanto ao dolo, o mesmo é constituído pelo elemento intelectual (conhecer os elementos objectivos do tipo de ilícito) e pelo elemento volitivo (que compreende a direcção de uma vontade para um determinado comportamento), e está dividido em três modalidades, a saber: dolo directo, dolo necessário e dolo eventual.
Deve salientar-se que, "para afirmar o dolo, basta a consciência marginal, não é necessária a consciência focal; basta a consciência liminar ou difusa, não é necessária a consciência clara ou de atenção; basta a consciência. Não é preciso que, no momento do facto, a atenção do agente incida clara e precisamente sobre o elemento da situação considerado. É suficiente para o dolo que se possa dizer que o agente dispõe da informação correspondente. Para se poder afirmar o dolo, basta que se prove que, em algum momento anterior, o agente adquiriu a informação relevante" (in Simas Santos/Leal Henriques, Código Penal Anotado, 1° Volume, Editora Rei dos Livros, 2.ª Edição, pág. 182).
Assim, ao nível da sua estrutura subjectiva, exige-se que o agente, apesar de saber que não possui habilitação legal para conduzir veículo com motor na via pública, o tenha querido fazer.
Reportando-nos ao caso dos autos verifica-se que o elemento subjectivo não se mostra preenchido.
Efectivamente, provou-se que o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente. No entanto, fê-lo na convicção de que tal comportamento lhe era permitido, ou seja, convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional, em virtude de ter requerido a troca da sua carta de condução, emitida pelas autoridades da República da Guiné Bissau, por carta de condução italiana.
Efectivamente, o arguido estava ciente que para conduzir veículos na via pública é necessário estar habilitado com documento emitido pelas autoridades competentes mas agiu convicto de que a conduta que levou a cabo lhe era permitida, porquanto havia requerido a troca da sua carta de condução emitida pela República da Guiné Bissau para título italiano, actuando na convicção de que os documentos emitidos nessa decorrência o habilitavam a conduzir em qualquer país da União Europeia.
Desta forma, o arguido actuando e preenchendo os restantes elementos objectivos e subjectivos referentes à liberdade e vontade de actuação, fê-lo com essa vontade viciada, posto que não tomou consciência da ilicitude da sua conduta o que, por si, releva em termos penais, como a seguir demonstraremos.
Com efeito, o artigo 17.º, n.º 1 do Código Penal estabelece que “age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”. O dolo é conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, sendo nesta parte elemento constitutivo do tipo de ilícito. Mas o dolo é ainda expressão de uma atitude pessoal de contrariedade e indiferença perante o dever ser penal.
Revertendo à situação em apreço, resulta que a conduta do arguido deriva da falta de consciência de que conduzir um veículo automóvel em território nacional, munido de documentos que comprovam o desenrolar de um processo de legalização de uma carta de condução guineense num país da União Europeia, integrava a prática de um ilícito típico. Donde, face a isto, se mostra patente que a sua vontade se mostrava enfermada. Há, com efeito, no caso vertente, uma situação de erro sobre a ilicitude, previsto no artigo 17.º do Código Penal, o qual não exclui o dolo.
Nas palavras de Figueiredo Dias "o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o ilícito do facto': Aqui, "o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional […], mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores […], revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger". Neste caso, "estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico de culpa dolosa" (cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, página.503).
Nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do Código Penal, se o erro for censurável ao agente, este é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada. A censura dirige-se, aqui, a uma falta de conhecimento que o agente não obteve por violação de um dever de atenção ou de informação.
Por outro lado, torna-se indispensável à não censurabilidade da falta de consciência do ilícito, que tenha sido propósito do agente de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante.
No presente caso estamos, portanto, perante um erro de valoração que, como vimos, se situa no âmbito do artigo 17.º do Código Penal, importando agora indagar e apurar se tal erro é ou não censurável, sendo certo que, nos termos do n.º 2 do referido preceito, se o erro for censurável o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pose ser especialmente atenuada.
Seguindo os ensinamentos daquele Professor, se a falta de consciência da ilicitude se ficar a dever a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante do arguido, aquela falta de consciência deverá, sem mais, considerar-se censurável.
Tal só não se verificará, ou seja, a falta de consciência da ilicitude só não será censurável: 1) quando a questão da licitude concreta se revele discutível e controvertida, por se tratar de uma questão em que conflituem diversos pontos de vista de estratégia ou oportunidade, juridicamente relevantes; 2) quando a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida; 3) quando tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante, o fundamento da falta de consciência da ilicitude (cfr. O problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, páginas 341-342).
Tendo presente tal entendimento, e revertendo uma vez mais ao caso dos autos, conclui-se que o erro sobre a ilicitude patenteada na conduta do arguido é, em nosso entender, censurável, uma vez que a incriminação em causa não se revela uma questão discutível nem controvertida. Para além do mais, considerando a jovem idade do arguido e, através dela, a sua capacidade de compreensão e de acesso a informação, entendemos que era exigível ao arguido que se tivesse informado sobre se os documentos de que era titular o habilitavam a conduzir em Portugal. Note-se que o arguido é detentor de carta de condução tendo-se, para o efeito, submetido aos competentes exames práticos e teóricos, ao que acresce residir, com habitualidade, fora do território nacional, circunstâncias estas que se revelam mais do que suficientes para que pudesse tomar conhecimento de que a sua carta de condução não o habilitava a conduzir em território nacional.
Conclui-se, assim, que o arguido preencheu com o seu comportamento o crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.°, n.º 1 e 2 do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e artigo 17.°, n." 1 ambos do Código Penal, este último determinando a sua punição com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.»

As questões da existência do dolo e do erro sobre a ilicitude colocam-se, em primeira linha, no plano dos factos.
O tipo de ilícito cumpre a função de dar a conhecer que determinada espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico, sendo constituído por um tipo objectivo de ilícito e um tipo subjectivo de ilícito, seja sob a forma dolosa, seja sob a forma negligente (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., 2007, págs. 285 e 348).
O dolo, enquanto conhecimento (elemento cognitivo ou intelectual) e vontade (elemento volitivo) de realização do tipo objectivo, é elemento constitutivo do tipo de ilícito; o dolo, como expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever ser jurídico-penal, é ainda elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa (um momento emocional, nas palavras de Figueiredo Dias, que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa – ob. cit., p. 350, § 6).
O dolo do tipo não se basta com aquele conhecimento dos elementos típicos, mas exige ainda que a “prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 366).
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu artigo 14.º, cada uma das formas que pode assumir o elemento volitivo: o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual. O dolo directo é aquele em que o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso (n.º1); o dolo necessário existe quando o agente sabe que em consequência de uma sua conduta realizará um facto que preenche um tipo legal de crime e, ainda assim, não se abstém de a praticar (n.º2); por fim, no dolo eventual, o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, mas não se abstém de a empreender, conformando-se com a produção do resultado (n.º3).
Quanto ao elemento intelectual do dolo, torna-se necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. Com a consequência de que sempre que o agente represente erradamente, ou não represente, um qualquer dos elementos típicos objectivos, o dolo terá de ser afastado.
Pretende-se que o agente, ao actuar, “conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o supedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título, com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo, o dolo terá, desde logo, de ser negado” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 351).
O artigo 16.º, n.º 1, do Código Penal, reconhecendo o erro sobre a proibição, afirma que a sua existência exclui o dolo, equiparando-o ao erro sobre a factualidade típica, quando o seu conhecimento “for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.
Salienta Figueiredo Dias (ob. cit., pág. 363) que na esmagadora maioria dos casos não se coloca, à afirmação do dolo do tipo, a questão do conhecimento da proibição legal. Excepcionalmente, porém, torna-se indispensável, à afirmação desse dolo, que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal. “Isto sucede sempre que o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Nestes casos, com efeito, seria contrária à experiência e à realidade da vida a afirmação de que já o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento orientam suficientemente a consciência ética do agente para a o desvalor do ilícito.”
Entre tais casos podem salientar-se, nomeadamente, certos crimes de perigo abstracto, “em que a conduta, em si mesma, divorciada da proibição, não orienta suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor da ilicitude”, ou certas incriminações pertencentes ao direito penal secundário, nomeadamente ao direito penal económico, “em que a relevância axiológica da conduta, se bem que existente, é de tal maneira ténue (…) que também neste âmbito o conhecimento da proibição deve considerar-se razoavelmente indispensável para a orientação do agente para o desvalor da ilicitude” (ob. cit., pág. 364/365).
Nestes casos, para a verificação do dolo do tipo exige-se o conhecimento da proibição legal e o erro respectivo exclui o dolo, devendo o agente ser punido, se isso for possível, a título de negligência.
Seguindo uma linha de pensamento diferente, Manuel Cavaleiro Ferreira (Lições de Direito Penal: I, A Teoria do Crime no Código Penal de 1982, Verbo, 1992, p. 336-337) distingue as situações em que a consciência de ilicitude está implícita no conhecimento do próprio facto das situações em que para tomar consciência da ilicitude o agente deve conhecer a norma proibitiva. Estas situações são as dos crimes predominantemente de “criação política”, nos quais sobreleva a importância de deveres de disciplina social. Trata-se da clássica distinção entre mala in se e mala prohibita.
Porém, partindo da posição que adoptamos - uma concepção bidimensional do dolo -, o dolo é ainda a expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença, perante o dever ser jurídico-penal, sendo, nesta perspectiva, um elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa.
O artigo 29.º do Código Penal de 1886 estipulava que não eximiam de responsabilidade penal nem a ignorância da lei penal (n.º1), nem a ilusão sobre a criminalidade do facto (n.º2), nem o erro sobre a pessoa ou coisa a que se dirige o facto punível (n.º3), nem a persuasão pessoal da legitimidade do fim ou dos motivos que determinaram o facto (n.º4).
A evolução da dogmática jurídico-penal, no entanto, foi no sentido de questionar a relevância do erro sobre a ilicitude ou falta de consciência do ilícito, no sentido de saber se este teria o mesmo efeito do erro sobre a factualidade típica – o da negação do dolo -, ou se, diversamente, ele seria irrelevante para a questão do dolo e só assumiria relevância no sentido de excluir a culpa sempre que não fosse censurável.
No nosso direito penal existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (artigo 16.º, do Código Penal); a outra exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (artigo 17.º, do Código Penal).
Há três situações em que o erro pode excluir o dolo: quando verse sobre elementos de facto ou de direito, de um tipo de crime; quando verse sobre os pressupostos objectivos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa (erro de representação da realidade); ou quando verse sobre proibições (ou imposições, no caso de omissão) cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito (saliente-se que Figueiredo Dias, ob. cit., p. 398, advoga, “em pura perspectiva dogmática e sistémica”, uma solução em que o erro sobre os pressuposto de uma causa de justificação não excluiria o dolo do tipo, mas apenas a culpa dolosa).
Segundo Figueiredo Dias (ob. cit., pág. 544):
(…) o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto. Neste último caso o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger. Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, revela uma atitude interna de descuido ou de leviandade perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico de culpa negligente, Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa. É esta a concepção básica sobre o dolo do tipo, a consciência do ilícito e a culpa dolosa que está mesmo na base do regime constante dos artigos 16.º e 17.º”.
           
Assim, o erro previsto no artigo 16.º, n.º1 e no artigo 17.º, do Código Penal, releva de modo diferente:
- nos casos previstos no artigo 16.º, n.º1 (erro sobre a proibição cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude), o erro afasta o dolo, mesmo que censurável, ressalvando-se a punibilidade da negligência;
- nos casos previstos no artigo 17.º, o erro não censurável afasta a culpa, tendo o efeito de uma causa de exclusão da culpa; se o erro for censurável, há culpa (culpa dolosa) e o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso (diversamente, Taipa de Carvalho, Direito Penal Parte Geral, Vol. II, 330/331, afirmando, por um lado, que a referência ao erro sobre proibições no artigo 16.º, n.º1, é inútil e não permite a responsabilização a título de negligência, pois esse erro conduz à exclusão do dolo (do tipo) e da culpa, mas por outro lado, concluindo haver uma lacuna de punibilidade, por não se prever a punição a título de negligência dos casos em que fosse razoável supor o conhecimento da proibição legal).
No que toca à censurabilidade do erro sobre a ilicitude, o erro será censurável, ou não, “consoante ele próprio seja, ou não, revelador e concretizador de uma personalidade (de uma atitude ético-pessoal jurídica) indiferente perante o dever-ser jurídico-penal, i. é, perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente” (Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 328); a falta não será censurável “sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder” (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 635).

3.2. Alega o recorrente que, depois de proferida a sentença condenatória, foi o seu mandatário notificado do conteúdo de comunicações efectuadas pela Embaixada de Itália, de que decorre, “com clareza e sem margem para qualquer dúvida, que o arguido era titular de um documento emitido pelas autoridades italianas que o habilitava a conduzir viaturas no estado italiano” e que “ocorreu um lapso do tribunal ao proferir sentença sem ter esperado a resposta da Embaixada italiana”.
A sentença recorrida foi proferida em 9 de Maio de 2017. Em 16 de Maio a Embaixada italiana informou nos autos que foi efectivamente emitida a favor do arguido, pelo Município de Cormano, uma “carta d`identità não válida para o estrangeiro”, conforme documentos de fls. 213 e 214.
Na sequência, o arguido veio aos autos, no dia 7 de Junho, requerer a reabertura da audiência ou a revisão do processo “nos termos do artigo 449.º”.
É manifesto o equívoco em que incorre o recorrente.
Em primeiro lugar, proferida a sentença, não podia o tribunal recorrido dar “o dito por não dito” e reabrir a audiência de julgamento, do mesmo modo que, sem que a sentença transitasse em julgado, vedado estava ao recorrente lançar mão do recurso extraordinário de revisão.
Em segundo lugar, a informação prestada pela Embaixada de Itália e o documento que a acompanha referem-se a uma “carta di identità”, que constitui um documento de identificação pessoal emitido pelas autoridades comunais italianas aos “residenti” ou “dimoranti” na área respectiva, ainda que estrangeiros.
Por conseguinte, a informação prestada dá conta, apenas, de que a “Comune de Cormano – Nord Milano” emitiu a favor do arguido uma “carta di identità” – documento de identificação pessoal – e que a mesma não constitui título válido para viajar para o estrangeiro
O recorrente confunde “carta di identità” com “patente di guida”, esta sim correspondente à carta ou licença de condução.
Quer isto dizer que, ao contrário do que alega o recorrente, a referida informação não se refere a qualquer documento que o habilitasse a conduzir veículos automóveis em Itália.
A este propósito, a decisão de facto refere que o arguido é titular de carta de condução emitida pelas autoridades competentes da Guiné-Bissau, a qual, à data dos factos, estava “em fase de legalização em Itália”.
Em sede de fundamentação, diz-se que “a carta de condução emitida pelas autoridades competentes da República da Guiné-Bissau não é reconhecida em Portugal, não sendo os documentos emitidos pelas autoridades competentes de Itália (e que atestam que o arguido aí deu início ao processo de legalização da sua carta para documento válido em Itália) título bastante que o habilite a conduzir nos demais países da União Europeia e, naturalmente, em território nacional”, mais se acrescentando, em sede de fundamentação de direito, que o arguido “agiu convicto de que a conduta que levou a cabo lhe era permitida, porquanto havia requerido a troca da sua carta de condução emitida pela República da Guiné Bissau para título italiano, actuando na convicção de que os documentos emitidos nessa decorrência o habilitavam a conduzir em qualquer país da União Europeia”. Segundo a sentença recorrida, “a conduta do arguido deriva da falta de consciência de que conduzir um veículo automóvel em território nacional, munido de documentos que comprovam o desenrolar de um processo de legalização de uma carta de condução guineense num país da União Europeia, integrava a prática de um ilícito típico”.
É sabido que uma carta de condução emitida num país da União Europeia (UE) ou do espaço económico europeu (EEE - Islândia, Liechtenstein e Noruega) é válida em todo esse território, razão por que é possível conduzir em Portugal com carta estrangeira. Nestes casos, a troca do título de condução é facultativa, mas, ainda assim, a lei determina que os condutores destes países que passem a residir em Portugal devem informar o Serviço Regional ou Distrital do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) da área de residência num prazo máximo de 60 dias (cfr. artigos 125.º, n.º1, b), do Código da Estrada e 13.º e 15.º do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho - Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir -, nas redacções do DL n.º 37/2014, de 14/03, e do DL n.º 40/2016, de 29/07).
No que concerne a títulos emitidos fora da UE, os cidadãos de países com os quais Portugal celebrou acordo bilateral ou mantenha regime de reciprocidade, e bem assim, no caso de países aderentes às Convenções Internacionais de Trânsito Rodoviário, os detentores de títulos de condução emitidos por países estrangeiros, em conformidade com essas Convenções – com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de Setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de Novembro de 1968, sobre circulação rodoviária -, estão autorizados a conduzir veículos a motor, em Portugal, durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes, mas devendo requerer a troca da carta 90 dias após obtenção de residência em território nacional, sem necessidade de realização de qualquer prova de exame de condução (artigos 125.º do Código da Estrada e 14.º do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho).
Atente-se que a circulação em território nacional não é permitida aos condutores com títulos emitidos por países não aderentes às referidas Convenções Internacionais. Nesses casos, a troca de título de condução emitida por esses países estrangeiros depende da realização e aprovação na prova prática de exame de condução, por cada categoria de que o condutor seja titular.
Não temos notícia de que entre Portugal e a Guiné-Bissau exista acordo bilateral de reconhecimento recíproco da validade dos títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada um dos Estados, muito embora se trate de questão que, regularmente, se anuncia estar para acontecer em breve.
Também não temos notícia de que a Guiné-Bissau tenha aderido às Convenções Internacionais de Trânsito Rodoviário.
Finalmente, o titular de uma carta de condução da UE que tenha sido emitida em troca de uma carta de condução de um país que não pertence à EU, querendo mudar-se para outro país da UE com a sua nova carta, não tem garantido o reconhecimento da mesma nesse país, pelo que deve informar-se junto das autoridades locais do seu novo país de residência das condições aplicáveis ao reconhecimento das cartas de condução de países que não fazem parte da UE.
Regressando ao caso concreto, verificamos que independentemente de o arguido estar, eventualmente, habilitado a conduzir em Itália, por via do procedimento de troca da sua carta de condução da Guiné-Bissau – facto que a sentença parece efectivamente pressupor, tendo em vista a fundamentação apresentada e supra transcrita – o de que o arguido/recorrente podia conduzir em Itália - ainda que não conste de forma expressa da factualidade provada -, certo é que não podia conduzir em Portugal com base nos documentos emitidos pelas autoridades italianas.
Diz-se na sentença recorrida que o elemento subjectivo do tipo de crime imputado “não se mostra preenchido”, pois “provou-se que o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente”, mas, no entanto, “fê-lo na convicção de que tal comportamento lhe era permitido, ou seja, convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional, em virtude de ter requerido a troca da sua carta de condução, emitida pelas autoridades da República da Guiné Bissau, por carta de condução italiana”.
Afigura-se contraditório que se afirme o não preenchimento do elemento subjectivo – do dolo do tipo –, para de seguida condenar-se o arguido pela prática de um crime doloso: se, como sustenta o tribunal a quo, estamos perante uma situação de erro sobre a ilicitude enquadrada no artigo 17.º, n.º2, do Código Penal, tal erro não exclui o dolo (do tipo), mas apenas a culpa, se for censurável, pelo que a sentença recorrida teria de afirmar o preenchimento do tipo subjectivo.
Como já se viu, a imputação do erro sobre a ilicitude ao agente é fundamentalmente decidida em função de um juízo sobre as características da atitude pessoal do agente, isto é, no apuramento de uma atitude de fidelidade ou de contradição ou indiferença ao Direito.
Seguindo, adaptado ao caso ora em apreço, o entendimento do acórdão da Relação do Porto, 25/06/2014, processo 270/12.1PAVFR.P1 (in www.dgsi.pt), parece-nos que a consciência da ilicitude da conduta do arguido não está implícita nessa mesma conduta, pois esta é axiologicamente neutra se abstrairmos do específico regime legal aplicável à condução de veículos em Portugal e das condições em que, à luz desse regime, é admitida a condução de veículos automóveis por parte de quem, por via do despoletar do procedimento de troca da sua carta de condução (emitida por um país terceiro) num país da EU, possa nesse país exercer a condução automóvel. Esse regime é, claramente, de «criação política» (varia no tempo e no espaço em função de opções políticas).
Como se assinala no citado aresto, está em causa “um erro por desconhecimento desse regime legal, não um erro de valoração ética, um erro que traduza alguma dissonância entre os critérios de valoração ética do agente e os da ordem jurídica. O desconhecimento desse regime (que pode representar uma falta de cuidado ou negligência - é certo) em nada significa uma menor adesão à pauta de valores éticos em que assenta a ordem jurídica”, pelo que estamos “no campo de aplicação do artigo 16.º, n.º 1 e 3, do Código Penal”.
Quer isto dizer que a convicção do arguido de que agia licitamente era devida a um desconhecimento do regime relativo às condições em que, tendo diligenciado pela troca da sua carta num outro país da EU, podia conduzir em Portugal, e não a qualquer erro de valoração ética.
Por outras palavras, afigura-se-nos tratar-se de um erro da consciência psicológica e não de um erro da consciência ética do arguido, não existindo nesta situação qualquer embotamento da personalidade, qualquer obstáculo à “apreensão das decisões axiológicas da ordem jurídica”, mas antes uma errada representação de um elemento normativo do tipo – o estar habilitado a conduzir nos termos da legislação estradal.
É certo que o arguido deveria ter diligenciado no sentido de se informar sobre a sua situação, mas como o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso (cfr. 13.º do Código Penal), a conduta em apreço não é punível, mesmo que se considere que o desconhecimento em que o arguido actuou traduz um comportamento negligente.
Impõe-se, pois, conceder provimento ao recurso.    
***
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam em audiência os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto por A …, revogando a sentença recorrida e absolvendo-o do crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por que foi acusado nos autos.

Sem tributação.

Lisboa, 24 de Abril de 2018
(o presente acórdão, integrado por vinte e duas páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


Jorge Gonçalves

                               
Maria José Machado 

                       
Filomena Gil – Presidente da Secção