Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4279/10.1TBVFX.L1-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: REPETIÇÃO DO INDEVIDO
CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O executado pode defender-se em acção declarativa, visando a restituição do indevido prevista no artigo 476º do Código Civil, mediante a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição.
II - Só as decisões transitadas que incidam sobre o mérito da causa, ou seja, que apreciem a relação material controvertida que se discute na acção adquirem a força de caso julgado material e têm a virtualidade de poder ter força obrigatória fora do processo em que foram proferidas.
III- o despacho que pôs termo à oposição, julgando extinta a instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide derivada da extinção da execução, circunscreve-se à apreciação de questão processual, pelo que, por força do caso julgado formal, apenas vincula dentro do respectivo processo.
IV- Sobre a decisão que julga extinta a execução forma-se apenas caso julgado formal, não se estendendo a sua eficácia para além do âmbito do processo em que foi proferida.
V - Demonstrados os três requisitos exigidos pelo artigo 476º do Código Civil para a repetição do indevido, assiste o direito a reaver o que foi depositado, por indicação do solicitador de execução com o propósito de obstar à penhora, por ser essa a medida da deslocação patrimonial indevida e do enriquecimento da recorrida à custa da recorrente (artigo 479º do Código Civil).
(FISP)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório:

M - Catering, S. A., intentou, em 9 de Setembro de 2010, no Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra L. (…) Importação e Exportação, Lda., pedindo a condenação da ré a restituir-lhe a quantia de € 4.789,83, com fundamento em enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a condenação até integral e efectivo pagamento.

Alegou, para tanto, que no âmbito da acção executiva que a ré lhe moveu, em 13.11.2006, destinada a obter o pagamento coercivo da quantia de € 4.354,39, informou o solicitador de execução de que não era devedora daquela quantia e pretendia deduzir oposição à execução, tendo-lhe este referido que só procederia à sua citação após a penhora com remoção dos bens e que só deixaria de realizar tal diligência em caso de depósito da quantia exequenda, pelo que, perante a iminência da realização da penhora, procedeu ao depósito da quantia exequenda e deduziu posteriormente oposição à execução, a qual não foi apreciada por ter sido entendido que procedera ao pagamento voluntário da quantia exequenda e com tal fundamento julgada extinta a execução. Mais alegou que aquela execução teve por base requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória sem que a autora tivesse ali sido citada e que a quantia exequenda respeita a fornecimentos que lhe foram feitos em 2004, directamente contratados entre a autora e Ana (…), à qual pagou o respectivo preço, não tendo assumido qualquer obrigação para com a ré, pelo que o pagamento efectuado naquela execução consubstancia repetição do indevido enquadrável no instituto do enriquecimento sem causa face à inexistência de qualquer direito de crédito por parte da ré.

Na sua contestação a ré deduziu impugnação motivada, alegando, em suma, que a ré foi devidamente citada para os termos da injunção e que o montante em cauda respeita a fornecimentos que fez à autora, sendo-lhe devido o seu pagamento, pelo que concluiu pela improcedência da acção.

Realizado o julgamento, sem prévia elaboração da base instrutória, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

Apelou a autora, aduzindo na sua alegação as seguintes conclusões:

«A) Em sede de execução e oposição à execução, nunca foi apreciado o mérito da causa;

B) Tal situação é reconhecida pelo Tribunal a quo que refere expressamente na sua sentença que “tal distinção assume relevância no caso que ora nos ocupa porquanto, por outro lado, não chegaram a ser alvo de uma apreciação de mérito na oposição à execução os demais fatos invocados, e que são também invocados na presente acção”;

C) Para o tribunal a quo a decisão que julgou extinta a execução com fundamento em pagamento voluntário faz caso julgado material, não podendo o executado que pagou (mal) reaver a quantia paga com excepção de factos novos que não poderia invocar em sede de oposição;

D) Salvo o devido respeito por opinião contrária, não se afigura correcta a posição do Tribunal a quo;

E) A sentença de extinção de execução pelo pagamento da quantia exequenda, proferida no âmbito do art. 919.º do CPC, não é dotada de eficácia de caso julgado material, mas apenas de caso julgado formal;

F) A simples extinção da acção executiva não dá lugar à formação de caso julgado material, nada impedindo, por isso, que a obrigação exequenda venha a ser discutida noutra acção, agora declarativa;

G) Conforme decidido doutamente pelo Tribunal da Relação do Porto, a não dedução de oposição à execução apenas preclude, no âmbito de tal execução, o exercício do direito processual (em que a oposição se traduz), não impedindo a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição, noutro processo, visando a restituição do indevido.” - Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 2842/06.4TBVLG.P1 – 3ª Sec, 20-04-2009, www.dgsi.pt;

H) O pagamento efectuado (voluntário ou não) no âmbito da execução em causa, não impede a Recorrente de propor a presente acção para repetição do indevido;

I) O Tribunal pode proceder à apreciação do mérito da causa, nomeadamente decidindo da inexistência da obrigação de pagamento e da repetição do indevido;

J) Considera que a Recorrente que os factos dados como provados são suficientes para considerar procedente a presente acção, porquanto o pagamento efectuado não era devido;

L) Resultou provado que os produtos em causa foram solicitados pela Recorrente à Sra. Ana (…), sua fornecedora;

M) Mais ficou provado que a Recorrente efectuou o pagamento à Sra. Ana (…) dos referidos produtos encomendados;

N) Entre a Recorrente à Sra. Ana (…) foi celebrado um contrato de compra e venda, tendo ambas as partes cumprido as suas prestações: a Ana (…) forneceu os bens e a Recorrente pagou o respectivo preço;

O) A recorrida decidiu facturar directamente à Recorrente o fornecimento em causa (certamente por falta de solvabilidade de Ana (…)) quando entre as partes não foi celebrado qualquer contrato. A recorrida apenas poderia ter facturado à sua cliente Ana (…) e nunca à recorrente;

P) A Recorrente nunca reconheceu ser devedora da quantia em causa, porquanto na diligência de penhora afirmou logo que nada devia e que o depósito efectuado na conta do Solicitador de Execução foi efectuado com o único propósito de obstar à penhora;

R) O título executivo que permitiu instaurar a execução não foi constituído de acordo com os requisitos legais;

S) No requerimento de injunção foi feito constar que o domicílio da A. era convencionado e correspondente à Avenida General Norton de Matos, (…), em Lisboa, mas esta não foi notificada do requerimento de injunção, nem a morada referida corresponde à sede da Recorrente;

T) Embora não tenha existido qualquer relação comercial directa entre as partes, a Recorrida fez constar no requerimento de injunção que o domicílio da recorrente era convencionado, permitindo assim que se formasse um título executivo mesmo sem esta ser citada (o que aconteceu);

U) A presente acção é configurável como uma acção de repetição do indevido, fundando-se nas regras do enriquecimento sem causa – 473.º e seguintes do Código Civil. Estamos perante o cumprimento de obrigação inexistente (objectivamente indevido) – art. 476º do Código Civil;

V) O art. 476º do Código Civil, exige o cumprimento de três requisitos para que se possa exigir a repetição do indevido: 1) Que haja um acto de cumprimento, ou seja, uma prestação efectuada com a intenção de cumprir uma obrigação; 2) Que a obrigação não exista; 3) Que não haja sequer, por detrás do cumprimento, um dever de ordem moral ou social, sancionada pela justiça que dê lugar a uma obrigação. Nos presentes autos, verificam-se, inequivocamente, os três requisitos;

X) No caso dos autos, também se encontram cumpridos todos os requisitos gerais do instituto do enriquecimento sem causa: a) Existiu um enriquecimento da recorrida; b) O enriquecimento, contra o qual se reage, carece de causa justificativa; c) O enriquecimento foi obtido à custa de quem requerer a restituição - Recorrente;

Z) Nos termos dos artigos 473.º e seguintes, a Recorrente tem direito à restituição à quantia que pagou indevidamente na execução instaurada pela Recorrida, no montante de € 4.789,83.

Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida julgar totalmente procedente a acção».

Não houve contra-alegação.

Sem precedência de vistos, cumpre decidir.

2.Fundamentos:

2.1.De facto: 

Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:

1 – Em 13.11.2006 a R. instaurou contra a A. acção executiva para cobrança coerciva da quantia de € 4.354,39, a qual foi distribuída sob o nº 52446/06.4YYLSB à 1ª seção do 3º Juízo de Execução de Lisboa.

2 – No âmbito da referida execução, no dia 10.09.2007, o solicitador de execução nomeado, Sr. João (…), deslocou-se às instalações da A. a fim de realizar a penhora de móveis e proceder à sua citação.

3 – Na ocasião anteriormente referida a A. disse ao solicitador de execução que não devia a quantia exequenda, tendo pago à D. Cristina (…).

4 – O Sr. Solicitador informou então a A. de que só não procederia à penhora após depósito da quantia exequenda e acréscimos legais na sua conta, falando-se então em caução.

5 – A A. depositou em 11.09.2007, na conta que lhe foi indicada pelo Sr. Solicitador, a quantia de € 4.789,83, com o propósito de obstar à penhora.

6 – O Sr. Solicitador de Execução citou a A. em 10.09.2007 para pagar ou opor-se à execução, entregando-lhe a respectiva nota de citação pessoal.

7 – No dia 25.09.2007 a A. deduziu oposição à execução com os fundamentos constantes de fls. 89-96 que se dão aqui por inteiramente reproduzidos.

8 – Em 03.09.2009 foi proferido o seguinte despacho no âmbito da oposição à execução anteriormente referida:

Não obstante a opoente ter vindo informar que o pagamento efectuado não implicou um pagamento voluntário, tendo pretendido, tão só, obviar à penhora de seus bens, tal facto para além de não ter sido referido no auto de penhora, nem posteriormente, também é certo que o pagamento da quantia exequenda não é o meio idóneo para obstar à penhora de bens, mas sim um dos modos legais da extinção da execução, cfr. art. 916º e 919º do CPC.

Caso pretendesse a suspensão da execução deveria ter deduzido um incidente de prestação de caução conforme estipula o art. 818º do CPC, pois só através desse se poderia, eventualmente, obter a suspensão da execução e desse modo obstar à penhora de bens.

Assim sendo, e uma vez que a execução se encontra extinta pelo pagamento, verifica-se a inutilidade superveniente da lide nestes autos de oposição, nos termos do disposto no art. 287º, e), do Código de Processo Civil.

Pelo exposto, declaro extinta a presente instância de oposição.”

9 – Em 30.06.2009 foi proferido o seguinte despacho na execução referida em 1.:

“Não obstante o referido pela opoente, resulta dos autos de execução que a quantia exequenda foi integralmente paga e de forma voluntária.

Assim sendo, antes de mais, proceda-se à extinção da execução.”

10 – Do despacho anteriormente referido foi interposto recurso pela A. que não foi admitido por despacho proferido em 03.09.2009, transitado em julgado em 22.09.2009.

11 – Do despacho referido em 8. foi interposto recurso pela A., o qual foi admitido, tendo sido julgado deserto por despacho proferido em 02.02.2010, transitado em julgado.

12 – A extinção da execução referida em 1. foi notificada às partes em 01.07.2009.

13 – A execução referida em 1. foi instaurada com base no requerimento de injunção nº 152949/204 da Secretaria Geral de Injunção de Lisboa, na qual foi aposta fórmula executória.

14 – Nesse requerimento foi feito constar que o domicílio da A. era convencionado e correspondente à Avenida General Norton de Matos, (…), em Lisboa.

15 – A A. não foi notificada do requerimento de injunção referido em 13.

16 – A morada referida em 14. não corresponde à sede da A.

17 – A A. desenvolve a sua actividade e tem um estabelecimento na morada referida em 14., embora corresponda a outro número de polícia.

18 – O requerimento de injunção referido em 14. referia-se a um fornecimento de marisco e produtos alimentares efectuado pela R. à A. em 10.03.2004 e 18.03.2004, os quais foram solicitados por esta à Sra. Ana (…), sua fornecedora.

19 – Relativamente ao fornecimento anteriormente referido foi emitida pela R., em nome da A., a factura nº 426/20041, com data de 31.03.2004 e vencimento em 30.04.2004.

20 – A A. efectuou o pagamento à D. Ana (…) de produtos encomendados a esta e fornecidos nas datas referidas em 18.

2.2. De direito:

Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação da recorrente (artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), destas emerge como questão essencial a apreciar saber se a oposição à execução constituía o único meio de defesa da recorrente, precludindo o exercício do direito pela via da acção declarativa, ou se esta pode defender-se em acção declarativa, visando a restituição do indevido prevista no artigo 476º do Código Civil, mediante a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição. 

Esta questão da compatibilidade, ou não, da oposição à acção executiva com a acção de restituição do indevido não é nova.

Defende o Prof. Anselmo de Castro[1] que a acção de restituição do indevido deve ter-se sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu oposição, “por em nada contrariar a execução e os seus fins, nem poder considerar-se excluída pelo meio da oposição, dados os fins próprios e distintos desta. A acção executiva existe para realizar o direito, com tanto se bastando, e não para o declarar; logo, também esse fim não pode ser assinado à oposição, nem impor-se ao executado o ónus de a deduzir. A oposição está instituída, na e para a execução, tão-só para os fins que a lei lhe fixa, quando o executado a queira deduzir, de suspender ou anular a execução e não para que em todo o caso seja tornado ou fique certo o direito do credor”.

Acrescentado ainda que “para se ter como excluída a acção de restituição do indevido na falta de oposição seria preciso ver-se na acção executiva uma acção declarativa do direito a ela acoplada, de que a oposição à execução funcionasse como contestação, e não o pode ser, por nenhum pedido de declaração do direito comportar o pedido de execução. Ou ver na acção executiva uma provocatio ad agendum para declaração negativa do direito do credor, isto é, o exercício de uma acção declarativa provocada”. Qualquer dessas configurações da oposição não correspondem aos quadros legais e são mesmo afastadas pela “não existência na lei de cominação imposta ao executado, sempre exigida para a declaração do direito”.

Também para o Prof. Lebre de Freitas[2] a ausência de oposição à execução não acarreta uma cominação, mas tão-só a preclusão dum direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso, não impedindo a invocação de um fundamento “não deduzido (que não respeite à configuração da relação processual executiva) em outro processo. A decisão neste subsequentemente proferida não tem eficácia no processo executivo, mas pode conduzir à restituição ao executado da quantia conseguida na execução, pelo mecanismo da restituição do indevido”.

Estas posições, expressas antes das alterações introduzidas pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março, e pelo DL nº 226/2008, de 20 de Novembro, e que se acolhem, não perderam actualidade pelo facto de o legislador ter substituído os embargos de executado pela oposição à execução, uma vez que nesta se mantém a autonomia estrutural, continuando a oposição à execução a ter o carácter de uma contra-acção, tendente a obstar à produção dos efeitos do título e (ou) da acção executiva que nele se baseia.[3]

Conclui-se, assim, como no Acórdão da RP, de 20.04.2009,[4] citado pela recorrente na sua alegação de recurso, que a não dedução de oposição à execução apenas preclude, no âmbito de tal execução, o exercício do direito processual (em que a oposição se traduz), não impedindo a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição, noutro processo.

Esta conclusão confronta-nos, porém, com a problemática da eficácia do caso julgado formado com as decisões finais proferidas na acção executiva e na oposição à execução, se tiver sido deduzida.

E foi com base no entendimento de que a decisão que julgou extinta a execução transitou em julgado e de que a decisão que julgou extinta a oposição à execução, por inútil, face ao depósito da quantia exequenda considerado como pagamento voluntário na execução transitou, igualmente, em julgado que na sentença recorrida, fazendo apelo ao disposto no artigo 489º do Código de Processo Civil, se escreveu que, “tal como acontece no âmbito da acção declarativa, ficam precludidos e abrangidos pelo caso julgado formado pela sentença que julga a oposição de mérito os fundamentos de oposição que foram invocados e aqueles que o poderiam ter sido, não sendo admissível que o executado intente uma nova acção contra o exequente, com o objectivo de reaver o que pagou, na execução, com fundamento em factos que podia ter invocado na oposição à execução”.

Concluindo a mesma sentença recorrida que “atenta a preclusão dos meios de defesa da A. nos termos estabelecidos pelo citado artº 489º do C.P.Civil, que se deve considerar aplicável à oposição à execução, não pode a A. pretender vir discutir na presente acção o que lhe foi vedado na referida oposição, nem pode o presente tribunal, por força da autoridade do caso julgado, proceder a essa apreciação, sob pena de anulação do efeito do caso julgado material da decisão anteriormente referida”.

Importa aqui distinguir o caso julgado formal do caso julgado material, assentando o critério da sua distinção no âmbito da sua eficácia.

As decisões proferidas numa acção pendente podem recair sobre questões processuais - decisões de forma - ou apreciar, no todo ou em algum dos seus elementos, a procedência ou improcedência da acção - decisão de mérito -. Qualquer destas decisões, uma vez transitada, se torna vinculativa dentro do processo quer para as partes, quer para o tribunal, formando, por conseguinte, caso julgado. Porém, enquanto a obrigatoriedade das decisões transitadas que formam caso julgado formal se restringe ao processo em que foram proferidas (artigo 672º do Código de Processo Civil), as decisões que constituem caso julgado material, quando transitadas, podem ser vinculativas num outro processo (artigo 671º nº 1 do mesmo compêndio adjectivo).[5]

Assim, só as decisões transitadas que incidam sobre o mérito da causa, ou seja, que apreciem a relação material controvertida que se discute na acção adquirem a força de caso julgado material e têm a virtualidade de poder ter força obrigatória fora do processo em que foram proferidas.

No caso em apreço, os factos provados mostram que correu termos um processo de execução instaurado, em 13.11.2006, pela recorrida contra a recorrente com base num requerimento de injunção, no qual foi aposta fórmula executória, para cobrança coerciva da quantia de € 4.354,39, execução essa que foi distribuída sob o nº 52446/06.4YYLSB à 1ª seção do 3º Juízo de Execução de Lisboa.

Em 11.09.2007 a recorrente, ali executada, depositou o valor da quantia exequenda na conta que lhe foi indicada pelo solicitador de execução com o propósito de obstar à penhora, o qual procedeu à sua citação para pagar ou opor-se à execução, entregando-lhe a respectiva nota de citação pessoal. Nessa sequência a mesma recorrente deduziu, em 25.9.2007, oposição à execução, alegando facticidade destinada a demonstrar a inexistência de título executivo por não ter sido notificada do requerimento de injunção e a inexistência da dívida exequenda por não ter contratado com a recorrida, ali exequente, o fornecimento dos produtos a que se refere a quantia exequenda, mas com Ana (…), à qual fez, oportunamente, o respectivo pagamento.

Em 30.06.2009 foi proferido decisão na acção executiva com o seguinte teor:

“Não obstante o referido pela opoente, resulta dos autos de execução que a quantia exequenda foi integralmente paga e de forma voluntária.

Assim sendo, antes de mais, proceda-se à extinção da execução.”

E no dia 03.09.2009 foi proferido despacho da oposição à execução anteriormente referida com o seguinte teor:

Não obstante a opoente ter vindo informar que o pagamento efectuado não implicou um pagamento voluntário, tendo pretendido, tão só, obviar à penhora de seus bens, tal facto para além de não ter sido referido no auto de penhora, nem posteriormente, também é certo que o pagamento da quantia exequenda não é o meio idóneo para obstar à penhora de bens, mas sim um dos modos legais da extinção da execução, cfr. art. 916º e 919º do CPC.

Caso pretendesse a suspensão da execução deveria ter deduzido um incidente de prestação de caução conforme estipula o art. 818º do CPC, pois só através desse se poderia, eventualmente, obter a suspensão da execução e desse modo obstar à penhora de bens.

Assim sendo, e uma vez que a execução se encontra extinta pelo pagamento, verifica-se a inutilidade superveniente da lide nestes autos de oposição, nos termos do disposto no art. 287º, e), do Código de Processo Civil.

Pelo exposto, declaro extinta a presente instância de oposição.”

Analisadas estas decisões, verifica-se que nenhuma decidiu questão de mérito susceptível de constituir caso julgado material.

Com efeito, o despacho que pôs termo à oposição à execução não entrou, manifestamente, na apreciação de qualquer das questões de mérito nela suscitadas, limitando-se a julgar extinta a instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide derivada da extinção da execução, circunscrevendo-se, assim, à apreciação de questão meramente processual traduzida no facto de, estando a execução já extinta, não haver utilidade ou interesse no prosseguimento e conhecimento da oposição que tinha por objectivo precisamente a extinção da execução.

Tendo incidido sobre um aspecto processual, constituiu-se sobre este despacho apenas caso julgado formal, tornando-se o mesmo obrigatório unicamente dentro do processo executivo em que foi proferido.

No que concerne à sentença de extinção da execução, a questão da sua natureza não é pacífica. Para o Prof. Lebre de Freitas, esta sentença apenas verifica “o termo da acção executiva e, mesmo quando tal ocorre por extinção da obrigação exequenda, a sua estrutura continua a ser a duma providência da esfera executiva, cuja característica de definitividade se coloca tão-só no plano da relação processual, por ela extinta com a mera eficácia de caso julgado formal, não estendendo a sua eficácia para além do processo executivo em que foi proferida. O efeito extintivo do facto (pagamento ou outro) invocado como causa de pedir na acção executiva “não deixará, contudo, de produzir efeitos, obstando ao êxito de uma nova acção executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma acção de restituição do indevido”.[6]

Acolhe-se por inteiro este entendimento, pelo que sobre a decisão que julgou extinta a execução se formou também e apenas caso julgado formal, não se estendendo a sua eficácia para além do âmbito do processo em que foi proferida.

Ora, não tendo qualquer das duas decisões - a que pôs termo à execução e a que pôs termo à oposição à execução - envolvido apreciação de mérito e constituído, por conseguinte, caso julgado material, nenhum obstáculo existia à propositura da presente acção pela ali executada com a finalidade de, ao abrigo do instituo do enriquecimento sem causa, reaver da ali exequente o que pagou, nos termos do disposto no artigo 476º do Código Civil.

2.2. O pagamento do indevido, que consiste no pagamento do que se não deve ou a quem se não deve, é tratado como uma modalidade do enriquecimento sem causa.

Encontra-se expressamente previsto nos artigos 473º nº 2 e 476º do Código Civil, nele distinguindo a lei, entre outras hipóteses, o cumprimento de obrigação inexistente (pagamento objectivamente indevido).

Do estabelecido no citado artigo 476º do Código Civil deriva, relativamente a esta hipótese, que é a que ao caso interessa, que, para que se possa exigir nesse caso a repetição ou restituição do indevido, são necessários tês requisitos, a saber:

- que haja um acto de cumprimento, ou seja, uma prestação efectuada com a intenção de cumprir uma obrigação;

- que a obrigação não exista;

- que não haja sequer, por detrás do cumprimento, um dever de ordem moral ou social, sancionado pela justiça, que dê lugar a uma obrigação natural.

O que releva é a satisfação da obrigação com a intenção de cumprir, não obstando à restituição do indevido o facto de o autor do cumprimento ter dúvidas sobre a existência da obrigação ou estar seguro da sua inexistência. “O autor do cumprimento pode ter efectuado a prestação apenas à cautela, com receio das consequências da mora, mas na intenção de se esclarecer mais adiante sobre a existência da obrigação; ou pode tê-lo feito somente para evitar os incómodos e despesas de um litígio com o credor, ou até a simples discussão com este acerca da existência do débito, por não lhe ser possível exibir o documento de quitação que o credor lhe dera, ou por não o ter pedido na altura própria, etc.[7]

Volvendo ao caso vertente, verifica-se que tais requisitos estão presentes.

Com efeito, provou-se nos autos que o solicitador de execução nomeado se deslocou no dia 10.09.2007 às instalações da recorrente, a fim de realizar a penhora de móveis e proceder à sua citação. Nessa ocasião foi-lhe referido pela recorrente que havia já pago a Ana (…), à qual tinha feito a encomenda dos produtos, e não devia a quantia exequenda, tendo o solicitador de execução informado, na altura, a recorrente de que só não realizaria à penhora se a mesma procedesse ao depósito da quantia exequenda e acréscimos legais na sua conta.

Nessa sequência a recorrente depositou, em 11.09.2007, a quantia de € 4.789,83 na conta que lhe foi indicada pelo solicitador de execução com o propósito de obstar à penhora, o qual procedeu à sua citação, entregando-lhe a respectiva nota de citação pessoal.

Mais resultou provado que a execução referida foi instaurada com base no requerimento de injunção nº 152949/204 da Secretaria Geral de Injunção de Lisboa, no qual foi aposta fórmula executória e que nesse requerimento se tinha feito constar que o domicílio da recorrente era convencionado e correspondia à Avenida General Norton de Matos, (…), em Lisboa, morada que não coincide com a da sua sede, não tendo, por isso, a mesma sido notificada do requerimento de injunção referido.

Provado ficou ainda que a recorrente desenvolve a sua actividade e tem um estabelecimento na morada referida, embora corresponda a outro número de polícia, que o requerimento de injunção, a que foi aposta a fórmula executória que lhe conferiu a força de título executivo, se referia a um fornecimento de marisco e produtos alimentares efectuado pela recorrida à recorrente em 10.03.2004 e 18.03.2004, os quais foram solicitados por esta a Ana (…), sua fornecedora, e à qual a recorrente efectuou o pagamento dos produtos que lhe encomendou, fornecidos nas datas referidas no requerimento de injunção.

Esta facticidade evidencia que a recorrente contratou com a sua fornecedora Ana (…) a aquisição dos produtos, que lhe encomendou directamente, e cujo pagamento a recorrida veio reclamar através de requerimento de injunção e, posteriormente, na acção executiva que instaurou.

Satisfeita a obrigação de pagamento do preço à vendedora Ana (…) (artigos 874º, 879º al. c) e 762º do Código Civil), nenhuma outra obrigação recaía sobre a recorrente relativamente aos mesmos produtos, pelo que inexistia objectivamente a obrigação que a mesma cumpriu através do depósito da quantia exequenda, o qual foi realizado à cautela com o propósito de obviar à penhora e sem que existisse qualquer dever moral ou social subjacente a tal cumprimento.

Aqui chegados e demonstrados que estão os três requisitos exigidos pelo artigo 476º do Código Civil para a repetição do indevido, tem de concluir-se que assiste à recorrente o direito a reaver o que desembolsou, isto é, a quantia de € 4.789,83, por ser esta a medida da deslocação patrimonial indevida e do enriquecimento da recorrida à custa da recorrente (artigo 479º do Código Civil).

A esta quantia acrescem, a título de indemnização pela mora, juros à taxa legal desde a data da condenação até efectivo pagamento, como peticionado (artigos 804º, 806º e 559º do Código Civil).

Procedem, assim, as conclusões da alegação da recorrente.

2. Decisão:

Termos em que acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e, revogando a sentença recorrida, julgar a acção procedente e condenar a recorrida L (…) Importação e Exportação, Lda., a pagar à recorrente M (…) – Catering, S.A., a quantia de € 4.789,83, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da condenação até efectivo pagamento.

Custas nas duas instâncias pela recorrida.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2013

(Fernanda Isabel Pereira)

(Maria Manuela Gomes)

(Olindo dos Santos Geraldes)


[1] A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., 1977, Coimbra Editora, págs. 304 e 305.
[2] A Acção Executiva À Luz do Código Revisto, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 158 e 159.
[3] Cfr. Profs. Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, vol.3º, Coimbra Editora, pág. 323.
[4] Proferido no Processo: 2842/06.4TBVLG.P1-3ª Sec., acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, 1977, págs. 569 e 570.
[6] A Acção Executiva À Luz do Código Revisto, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 294.

[7] Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª ed., Almedina, págs. 400 e 401.