Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
719/16.4TELSB-B.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: PERDA DE OBJECTO OU BEM RELACIONADO COM O CRIME
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIMENTO
Sumário: Nos termos do disposto no art.º 178.º, n.º 1 do C.P.P., segundo o qual “são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa (…)”, e, bem assim, ao disposto, também, nos artºs. 1.º, al. j) e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, segundo os quais, em caso de condenação pela prática de crime de associação criminosa, para efeito de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência (art.º 419.º, n.º 3, al. c), do C.P.P.), os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.



Relatório:



1– No Processo de Inquérito n.º 719/16.4TELSB, pendente no Tribunal Central de Instrução Criminal, onde, para além de outros, é arguido/recorrente A…, investigando-se a eventual prática de crimes de “introdução fraudulenta no consumo de produtos tributáveis”, “receptação de mercadorias objecto de crime aduaneiro”,de “fraude fiscal qualificada” e de “associação criminosa”, ps. ps., respectivamente, nos termos dos artºs. 96.º, 97.º, al. b), 100.º, 103.º, 104.º e 89.º, todos do RGIT, foi, na sequência de busca efectuada à sua residência, apreendida ao mesmo arguido a importância de 2.000,00 €uros, face às suspeitas de a mesma ser proveniente da actividade ilícita em investigação, a qual, também, lhe está a ser imputada.

Não conformado com a apreensão em causa, requereu o arguido/recorrente ao tribunal “a quo” que a referida importância lhe fosse restituída, pois que esta, diz, é produto das poupanças por si efectuadas, nada tendo a ver com o exercício de quaisquer actividades ilícitas e é a mesma essencial para a subsistência familiar, pois que vive, com o seu filho, apenas, de uma pensão mensal no montante de 558,86 €uros e paga de renda de casa 250,00 €uros/mês.

Esta pretensão, porém, veio a ser indeferida pelo mesmo tribunal com a prolação do seguinte despacho:   
“(…)Veio o arguido A…, por requerimento dirigido ao JIC, ao abrigo do disposto no art.º 78.º, n.º 6 do CPP, solicitar a revogação da medida cautelar de apreensão da quantia de 2000,00€, apreendido na sequência das buscas realizadas nestes autos, alegando, em resumo, que a quantia em causa é produto das suas poupanças e que o seu único meio de subsistência é pensão mensal de 558,86€.
O M.° P.° veio pronunciar-se no sentido de ser negado dado provimento ao requerido.
Cumpre decidir.
Os presentes autos têm como objecto a investigação de factos susceptíveis de configurar a prática de um crime de fraude fiscal qualificada p e p pelo art.° 103.° e 104.° do RGIT e de introdução fraudulenta no consumo p e p pelo art.° 96.° e 97.° do RGIT.
Por despacho judicial de fls. 1431ss foi ordenada a realização de buscas domiciliárias, entre as quais à casa do arguido.
Nos termos do artigo 178.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, “são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova”.
Daqui decorre, antes de mais, que a apreensão é uma medida de obtenção de prova, que visa, acima de tudo, a guarda e preservação de vestígios do crime.
Para além desta finalidade, a apreensão, visa também finalidades preventivas e conservatórias. É o que acontece quando, com a apreensão, se pretende evitar que objectos que serviram ou estavam destinados para a prática de um crime venham a ser utilizados no cometimento de novos crimes, que por essa via se previnem.
A apreensão pode, ainda, ter um propósito de conservar determinados bens ou objectos que consistem no produto do crime.
Não podemos deixar de ter em conta o disposto no artigo 186.° do CPP, relativo à restituição dos objectos apreendidos, que a apreensão só pode manter-se enquanto persistirem os pressupostos que a determinaram, impondo-se, logo que os mesmos cessem, a restituição dos respectivos objectos.
A este respeito refere Vinício Ribeiro (in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, fls. 374), aponta o princípio da necessidade como regra base da apreensão, no sentido que, como prescreve o citado artigo 186.°, logo no seu n.° 1, “Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito” e, no n.º 2, “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.
Tendo em conta os elementos de prova constantes nos autos indicia-se que a quantia em causa possa ter origem na prática dos factos em investigação. Para além disso, a justificação avançada pelo requerente não se mostra coerente. Na verdade, alega que o seu único rendimento é a pensão de 558,00€ mensais e com esta quantia faz face às suas despesas mensais, entre as quais a renda de casa, no valor de 250€, e os encargos do seu agregado familiar no qual se inclui o seu filho B…, que se mostra desempregado.
Ora, tendo em conta o valor apreendido, 2000,00€, e o valor do rendimento alegado, 558,00€, não se compreende como é que o requerente consegue amealhar cerca de 2000,00€.
Assim sendo, dado que, por agora, estão verificados os requisitos para a manutenção da apreensão cautelar da quantia em causa, indefere-se o requerido. (…)”.

Não conformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, o qual sustentou, essencialmente, no facto de não existir prova da prática, por si, da actividade ilícita que lhe é imputada e, bem assim, de que a importância apreendida é proveniente da mesma actividade.

Da motivação do recurso extraiu as seguintes conclusões:
“(…)”
XI)- O montante apreendido nos autos não é consequência da prática de qualquer ilícito praticado pelo ora Requerente, mas sim fruto das suas poupanças feitas ao longo de mais de cinquenta anos.
XII)- A alegada prática dos ilícitos apontados ao ora Recorrente, carece de ser provada, bem como carece de prova que a proveniência do montante apreendido está relacionado ou é consequência da prática desses ilícitos.
XII)- Ao decidir como decidiu o Meritíssimo Juiz “a quo” em curta fundamentação, olvidou a humanização que deve presidir às decisões judiciais.
XIII)- Fazendo uma interpretação literal das normas, o Douto despacho não interpretou correctamente o seguinte normativo legal: Art.º 178.º, nºs. 1 e 6 e, n.º 1 do art.º 186.º, ambos do Código de Processo Penal, n.º 1 do Art.º 109.º do Código Penal, Art.º 17.º e, n.º 1 do Art.º 18.º e, n.º 1 e 2 do art.º 32.º e, 62.º todos da Constituição da Republica Portuguesa, n.º 2 do art.º 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o mui Douto suprimento de V.Exªs, deve o Douto despacho ora Recorrido ser revogado e substituído por outro que devolva de imediato ao Recorrente o montante de €- 2000,00 (dois mil euros) apreendidos nos autos, (…)”.
*

O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito não suspensivo.
*

Notificado da interposição do recurso, apresentou o Ministério Público a respectiva “resposta”, onde, a final, formulou as seguintes conclusões:
 “(…)
1.Nestes autos investiga-se a actividade criminosa de um grupo de
indivíduos que, associados entre si e de forma concertada e estável, se dedicavam à comercialização e à introdução no consumo público de avultadas quantidades de bebidas alcoólicas que não eram objecto do manifesto exigido pelo art. 10.º do CIEC e, deste modo, não eram tributadas em sede de IABA e de IVA, enriquecendo os respectivos patrimónios à custa das receitas fiscais do Estado

2.Tais factos são susceptíveis de constituir crimes de introdução
fraudulenta no consumo qualificada, crime aduaneiro de receptação de mercadorias objecto de crime aduaneiro, fraude fiscal qualificada e crime de associação criminosa, respectivamente p. e p. pelos art.°s 96.° e 97.°-b), art.° 100.°, art.°s 103° e 104° e art.° 89°, todos do RGIT

3.Indiciam os autos que o arguido A…, integrava
esse grupo criminoso e que distribuía e comercializava bebidas alcoólicas sobre as quais era liquidado o IABA e IVA devidos ao Estado.

4.Dispõe o art. 178.°, n.° 1 do CPP que “são apreendidos os objectos que
tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova” e

5.Por outro lado, conforme o art. 7.° da Lei n° 5/2002, de 11 de Janeiro -
aplicável ao crime de associação criminosa - presume-se constituir vantagens obtidas com a actividade criminosa, devendo ser declarado perdido a favor do Estado, o património do arguido que se mostre desconforme com os seus rendimentos

6.Ante as fortes suspeitas de constituir produto, lucro, preço ou
recompensa da prática do crime sob investigação, a esse arguido foi apreendida a quantia de € 2.000, em numerário, que guardava na sua residência.

7.Não obstante o tenha alegado, o arguido não fez prova de que a
quantia apreendida sejam poupanças da sua pensão de € 558,86 com a qual suporta uma renda de casa de € 250 e os demais encargos do seu agregado familiar que inclui um filho maior desempregado.

8.Não sendo credível a alegada origem da quantia apreendida, e mantendo-se os pressupostos de facto e direito da sua apreensão, atento o disposto nas referidas normas do art. 178.º, n.º 1 do CPP e do art. 7.º da Lei 5/2002, bem decidiu o Mm.º Juiz de Instrução ao indeferir o requerido levantamento da apreensão mento apresentado pela sociedade recorrente, nos termos em que o fez (…)”.
*

Neste Tribunal a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu “parecer” no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido.
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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
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2–  Cumpre apreciar e decidir:
É o objecto do recurso em causa, à luz das respectivas conclusões, a não existência de fundamento bastante para a apreensão do dinheiro que foi feita ao recorrente.

Como foi referido atrás, investiga-se no inquérito aqui em causa a eventual prática de crimes de “introdução fraudulenta no consumo de produtos tributáveis”, “receptação de mercadorias objecto de crime aduaneiro”, de “fraude fiscal qualificada” e de “associação criminosa”.

Por outro lado, foi entendido existirem fortes suspeitas de que o dinheiro apreendido ao arguido/recorrente, no montante de 2.000,00 €uros, encontrado em numerário na gaveta de uma cómoda, era proveniente da atrás referida actividade ilícita, sendo, por isso, susceptível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado.

O recorrente, porém, não se conforma com esta decisão, alegando que a importância em causa é fruto das suas poupanças, numa gestão rigorosa que diz ter feito da sua reforma, com um modo de vida modesto e comedido.
 
Todavia, importa começar por dizer que o recorrente não sustenta probatoriamente a sua alegação.

Depois, a importância em causa, pese embora não seja significativa, não é compreensível ou justificável à luz daquela que o mesmo recorrente diz ser a sua única fonte de rendimento, isto é, a pensão de velhice, no montante de 558,86 €uros, quando desta tem que retirar uma renda mensal de 250,00 €uros e, ainda, tudo aquilo que necessário se torna ao sustento do seu agregado familiar, composto por si e por um filho, que não exerce qualquer actividade laboral regular, pois que, apenas, “nalguns fins de semana faz trabalhos ocasionais”.

Por outro lado, ainda, sendo a importância em causa fruto da invocada contenção nos gastos e de uma “vida modesta”, como alega o recorrente, menos compreensível se torna que tenha guardado em casa, na gaveta de uma cómoda, a referida importância, com todos os riscos daí advindos e sem que dela tenha retirado qualquer proveito, rentabilizando-a.

Nada, por isso, nesta perspectiva, permite conferir a pretendida credibilidade à versão do recorrente, a qual, salvo melhor opinião, atenta contra as mais elementares regras da experiência. O rendimento mensal auferido e o que diz serem as suas despesas, sendo que só a renda de casa absorve metade da sua reforma, são incompatíveis com a possibilidade de poder amealhar a importância que lhe foi apreendida, do mesmo modo que, ninguém, vivendo de tão parcos recursos, se permite guardar dois mil euros em numerário na gaveta de uma cómoda.

Sendo assim e estando aqui em causa, também, a investigação da eventual prática de um crime de “associação criminosa”, não podia o tribunal “a quo” deixar de dar cumprimento ao disposto, desde logo, no art.º 178.º, n.º 1 do C.P.P., segundo o qual “são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa (…)”, e, bem assim, ao disposto, também, nos artºs. 1.º, al. j) e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, segundo os quais, em caso de condenação pela prática de crime de associação criminosa, para efeito de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

Ora, como foi referido atrás, a importância apreendida ao recorrente não é congruente com os proventos advindos da sua única fonte de rendimento, que é a reforma mensalmente auferida, presumindo-se aquela, por isso, proveniente da actividade criminosa que lhe está a ser imputada nos autos.

Assim, sendo perdidos a favor do Estado as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie, mostra-se justificada, por ora, a decretada apreensão cautelar, razão por que não merece censura a decisão recorrida.

Haverá, pois, de desatender-se a pretensão do arguido/recorrente, confirmando-se a decisão recorrida.

3– Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.



Lisboa, 24 de maio de 2018



(Almeida Cabral)
(Fernando Estrela)