Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6403/2007-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. A competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva e não alternativa.
II. Se a competência fosse meramente alternativa, por se tratar de um desvio à regra, justificava-se que o legislador tivesse prevenido da inexistência de obrigatoriedade de recorrer à jurisdição dos Julgados de Paz.
III. E tanto é uma competência exclusiva que o legislador estabeleceu uma norma transitória a determinar que as acções pendentes à data da criação e instalação dos Julgados de Paz prosseguissem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
IV. Esta norma não faria o menor sentido se a competência dos Julgados de Paz fosse meramente alternativa da dos Tribunais Judiciais, pois que então não haveria qualquer justificação ou fundamento para o desaforamento destas acções, para as quais eram, e continuariam a ser, competentes aqueles tribunais.
V. Não se ignora que no douto acórdão do STJ de 24.05.2007 se uniformizou a jurisprudência nos termos seguintes: “no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no art. 9º, n.º 1 da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente”.
VI. Todavia, a interpretação que foi produzida no douto Acórdão uniformizador de jurisprudência, no sentido de que a competência dos julgados de paz é meramente facultativa, viola o princípio da igualdade no acesso à justiça na medida em que coloca apenas nas mãos do autor a opção pelo recurso ao tribunal ou ao julgado de paz, como lhe aprouver, ficando o réu, afinal sem alternativa nenhuma, mesmo quando entenda, quando demandado no julgado de paz, que o tribunal é que lhe oferecia as garantias de defesa de que carecia.
VII. A faculdade de opção alternativa entendida apenas em favor de uma das partes, no caso o autor, viola esta exigência de igualdade de faculdades e de meios de acção e de defesa que a lei estabelece.
VIII. A interpretação feita no mesmo aresto viola o princípio, ou regra, do processo equitativo, que é assegurado, nomeadamente, através da igualdade de armas, que impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses e que exige a identidade de faculdades e meios de defesa processuais.
P.R.
Decisão Texto Integral: I. OBJECTO DO RECURSO.

Z, Seguradora, S. A. intentou, nos Juízos de Pequena Instância Cível de Lisboa, a presente acção declarativa, com processo sumaríssimo, contra T, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 2.562,63, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Os autos configuram uma acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, decorrente de acidente de viação.
O Réu não contestou.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, veio a ser proferido douto despacho a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento da presente acção e, em consequência, a absolver a ré da instância.

Inconformado com a decisão, veio o Ministério Público interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1.º - A lei que define o regime de competência, organização e funcionamento dos julgados de paz (Lei n.° 78/2001, de 13/7) não contempla qualquer norma que consagre inequivocamente a sua competência exclusiva ou alternativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial competente, ao contrário dos projectos de lei que foram discutidos nos trabalhos preparatórios.
2° - Com a entrada em vigor da Lei n.° 78/2001, de 13/7, ou posteriormente, não foram adoptadas quaisquer alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.° 3/99, de 13/1) relativamente aos julgados de paz;
3° - Os julgados de paz foram criados com carácter experimental e circunscritos inicialmente a algumas comarcas;
4° - Os julgados de paz foram criados como um meio alternativo à via dos tribunais judiciais, para resolver pequenos diferendos da vida quotidiana e com vista a aliviar a sobrecarga destes últimos e não para os substituir;
5° - A competência material dos julgados de paz é optativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial concorrente, cabendo ao demandante escolher entre um ou outro tribunal onde pretende ver apreciado e decidido o seu litígio;
6° - Tendo o A. escolhido intentar acção no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, deverá este ser considerado materialmente competente;
7° - A sentença impugnada violou as disposições constantes do art. ° 211.°, da Constituição da República Portuguesa, do art.° 66.° do Código de Processo Civil, do art.° 101.° da Lei n.° 3/99, de 13/1.
Não houve contra-alegação.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do agravo, cumpre decidir e, desde já, nos termos do art. 705º, dada a sua simplicidade.
A questão a resolver é a de saber se o tribunal competente para a acção é a Pequena Instância Cível, onde a acção foi proposta, ou se o Julgado de Paz.
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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.
Os factos a tomar em consideração para conhecimento do agravo são os que decorrem do relatório acima inscrito.
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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Nos termos do n.º 1 do art. 18º da LOTJ (1) e do art. 66º do CPC “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Os citados preceitos, cuja formulação vem já do CPC de 1939, enunciam uma regra genérica, ou um critério geral, de orientação para solucionar o problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria e que consiste em colocar no âmbito da competência dos tribunais comuns todas as causas que por lei não estejam, concretamente, afectas à apreciação dos tribunais especiais ou de alguma jurisdição especial. É a indagação da competência por exclusão.
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “todas as causas que por lei não são da competência dalgum tribunal especial pertencem ao foro comum. De modo que a competência dos tribunais especiais determina-se por investigação directa: vai-se ver qual é, segundo a lei orgânica do tribunal, a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento.
Pelo contrário, a competência do foro comum determina-se por exclusão: apurado que a causa de que se trata não entra na competência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal ou juízo comum.
Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segu­rança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais espe­ciais e de se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial»(2).
Obviamente que o que se diz dos tribunais especiais vale igualmente quanto a outras jurisdições especializadas, hoje bastante em voga.
Porém, saber se um determinado tribunal ou entidade jurisdicional de competência especializada é competente, ou não, para conhecer de determinada acção nem sempre é de evidência apodíctica, tornando-se necessário, não raras vezes, proceder a laboriosas indagações, para, através de vários elementos indiciadores, se ensaiar uma resposta convincente.
Para o Prof. Manuel de Andrade, «são vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito, para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes). A competência do tribunal - ensina Redenti (vol. I, pág. 265), afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes» (3).
Também a jurisprudência tem propendido para o entendimento de que a competência em razão da matéria tem de ser averiguada em função dos termos em que a acção é configurada pelo autor, quanto ao pedido e seus fundamentos (4).
Ora, no caso dos autos pretende o A que a R seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 3.329,00 acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Entendeu-se no despacho recorrido que para conhecer da presente acção era competente o Julgado de Paz de Lisboa.
A organização, competência e funcionamento dos Julgados de Paz, encontra-se regulada no DL 78/2001, de 13/7, nele se consagrando como princípios gerais, o da participação cívica dos interessados e da justa composição do litígio por acordo das partes e ainda o de os procedimentos estarem concebidos e orientados por regras de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (art. 2º)
No que concerne à competência, depois de se determinar que, em razão do objecto, a mesma se restringe às acções cíveis (art. 6º/1), estabelece-se que, em razão do valor, os julgados de paz têm competência para questões cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância (art. 8º), descriminando-se depois as matérias para as quais são competentes (art. 9º) e os factores determinantes da competência territorial (art.s 11º a 14º).
A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se a competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva, como se defendeu no despacho recorrido, ou se uma competência meramente alternativa, como defende o Ministério Público na sua douta alegação.
A lei reguladora dos Julgados de Paz nada diz de expresso sobre esta matéria e também não se vê que algo tivesse que dizer. Como nada diz, só se pode entender que a sua competência é uma competência exclusiva, porque assim acontece sempre que o legislador atribui a outras entidades competência específica para o conhecimento de determinadas matérias, subtraindo-as à alçada dos tribunais judiciais.
Se a competência fosse meramente alternativa, por se tratar então de um desvio à regra, é que se justificava que o legislador tivesse prevenido da inexistência de obrigatoriedade de recorrer à jurisdição dos Julgados de Paz. Mas não foi, seguramente, essa a intenção do legislador, atentos os princípios em que assenta esta instância jurisdicional e os efeitos a prosseguir com a mesma, a que também não é alheia a intenção de aligeirar os tribunais judiciais das acções de parco valor e de grande simplicidade.
E tanto é assim que o legislador estabeleceu no art. 67º uma norma transitória a determinar que as acções pendentes à data da criação e instalação dos Julgados de Paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
Esta norma não faria o menor sentido se a competência dos Julgados de Paz fosse meramente alternativa da dos tribunais judiciais, pois que então não haveria qualquer justificação ou fundamento para o desaforamento destas acções, para as quais eram, e continuariam a ser, competentes.
Para quem defenda que a competência dos Julgados de Paz é alternativa, terá, ao menos, de aceitar que a norma do art. 67º do DL 78/2001, é uma norma totalmente inútil e até descabida, sendo que não é suposto que o legislador seja de tal modo descuidado que não curasse de arredar da lei norma com tal carácter.
O facto de o território nacional não se encontrar coberto pela instalação de Julgados de Paz, não releva no sentido de que esta jurisdição não possa conhecer, em exclusivo, de matérias que em outras circunscrições territoriais são da competência dos tribunais comuns, por aí não se encontrarem instalados Julgados de Paz. Com efeito, como é sabido, a competência dos tribunais judiciais, como competência residual, é mais ou menos abrangente, nas diversas circunscrições territoriais, de acordo com a existência, ou não, de tribunais especializados ou de outras entidades jurisdicionais.
No sentido de uma competência alternativa dos Julgados de Paz, também não parece que se possa invocar o princípio da reserva de jurisdição, pretensamente adstrita aos tribunais judiciais, na medida em que os Julgados de Paz partilham daquela jurisdição, por as suas decisões terem o valor de sentenças proferidas por tribunal de 1.ª instância (art. 61º) e poderem ser impugnadas por meio de recurso, desde que o valor o faculte (art. 62º).
Igualmente não parece relevar que a previsão da competência exclusiva expressa nos projectos de lei, que antecederam a aprovação da Lei nº 78/2001, de 13/7, não tenha obtido consagração no texto da lei vigente, porque, certamente, como acima se viu, se considerou desnecessário. O que se justificava, se fosse o caso, é que se dissesse que a competência era alternativa, por se estar, então, em face de uma competência sui generis, para cuja especialidade se tornava necessário chamar a atenção.
Nem parece que favorecem a tese da competência alternativa as disposições dos artigos 41º e 59º, nº 3, ao preverem a remessa do processo ao tribunal judicial quando seja suscitado um incidente processual ou quando seja requerida a produção de prova pericial, pois que não constitui qualquer incongruência que o tribunal judicial apenas passe a ser competente a partir do momento em que se suscite o incidente ou se requeira a prova pericial. O mesmo se passa com processos afectos à competência de outras entidades, v. g. com o processo de justificação de direitos previsto nos artigos 116º e seguintes do Código do Registo Predial, e dos procedimentos perante o Conservador do Registo Civil, previstos no DL 272/2001, de 13/10, que são da competência das respectivas Conservatórias, mas que passam para a competência do Tribunal Judicial no caso de ser deduzida oposição.
Deste modo, não se entende o que já tem sido argumentado de que “não faz sentido que os Tribunais Judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos Julgados de Paz ou seja requerida prova pericial”.
É que faz todo o sentido desde que a lei o preveja, e tal sucede nas situações acima descritas.
A atribuição de idêntica competência a um Tribunal Judicial e um Julgado de Paz, ainda que teoricamente conjecturável, quase como uma adopção de “medicinas alternativas”, não parece, todavia, combinar bem com o princípio geral da separação das ordens jurisdicionais, de que fazem eco as disposições dos artigos 211º da Constituição da República e 66º do CPC.
É verdade, como também já se tem argumentado, que não existe na lei nenhuma norma a prescrever que, atribuída competência em razão da matéria a determinados tribunais, fique imediatamente afastada a possibilidade de outros tribunais julgarem essa matéria. Mas isso por uma razão simples, é que tal norma não parece fazer sentido, na medida em que se tem de admitir que nada deverá impedir que o legislador possa fixar uma competência alternativa, desde que assim o queira estabelecer e o exprima com clareza.
Também se tem argumentado que os princípios gerais consagrados no art. 2º do DL 78/2001, de 13/7 - o da participação cívica dos interessados e da justa composição do litígio por acordo das partes e ainda o de os procedimentos estarem concebidos e orientados por regras de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual - seriam a favor da competência alternativa, para que apenas os conflitos de pequena importância e de grande simplicidade sejam dirigidos aos Julgados de Paz.
Mas o argumento não parece convencer, porque, a ser a competência alternativa e não estando estabelecido qualquer critério legal, ninguém pode garantir que processos mais complexos não vão parar aos Julgados de Paz e que outros mais simples não sejam instaurados nos Juízos de Pequena Instância Cível.
Também não parece relevante o argumento tirado do facto de haver Julgados de Paz de agrupamentos de concelhos limítrofes no sentido de que seria uma violência obrigar os cidadãos a recorrer obrigatoriamente aos Julgados de Paz, sem o poderem fazer nos Tribunais Judiciais da sua comarca, com os inconvenientes daí decorrentes pelas distâncias a percorrer, porque também na hipótese de a competência ser alternativa nada pode impedir o autor de recorrer aos Julgados de Paz com os mesmos inconvenientes, agora só para uma das partes, o réu.
De resto, os Julgados de Paz estão ainda a ser criados, sendo de supor que à medida das necessidades irão cada vez estar mais próximos das populações que a eles possam recorrer.
Diga-se ainda que a ser alternativa a competência dos Julgados de Paz ficaria colocada apenas nas mãos de uma das partes (o autor) a opção de recorrer a uma ou a outra das jurisdições, pelo que as eventuais virtudes da tese da competência alternativa, afinal até só existiriam a favor do proponente da acção, o que não parece abonar grandemente a teoria. Não acontece assim no recurso à arbitragem voluntária que, entre o mais, exige que ambas as partes tenham formulado uma convenção de arbitragem (art. 1º da Lei 31/86, de 29/8).
A ser alternativa a competência dos Julgados de Paz faria então todo o sentido que a opção pudesse ser tomada por acordo de ambas as partes, o que a lei não contempla.
Daí que se entenda que a competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva e não alternativa.
Contudo, a doutrina e a jurisprudência tem-se mostrado dividida sobre a questão em apreço, o que conduziu a que por douto acórdão do STJ de 24.05.2007 se uniformizou a jurisprudência nos termos seguintes:
“No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no art. 9º, n.º 1 da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente”.
Sucede que, em nosso entender e com o máximo respeito para com a doutrina fixada no douto aresto, a norma em apreço na interpretação que foi feita pelo STJ é inconstitucional.
Com efeito, nos termos do artigo 20º, nº 1 e 4 da CRP a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. E todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Como assinala Carlos Lopes do Rego (5) “a garantia da via judiciária – ínsita no artigo 20.º da Constituição e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos – envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de acção judicial (...), mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”.
O referido autor salienta ainda o “princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostas pela lei de processo às partes”, o qual, no seu entender, “pode fundarse cumulativamente no princípio da proporcionalidade das restrições (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição) ao direito de acesso à justiça, quer na própria regra do processo equitativo”.
A interpretação que foi produzida no douto Acórdão uniformizador de jurisprudência, no sentido de que a competência dos julgados de paz é meramente facultativa, viola o princípio da igualdade no acesso à justiça na medida em que coloca apenas nas mãos do autor a opção pelo recurso ao tribunal ou ao julgado de paz, como lhe aprouver, ficando o réu, afinal sem alternativa nenhuma, mesmo quando entenda, quando demandado no julgado de paz, que o tribunal é que lhe oferecia as garantias de defesa de que carecia.
Quando no douto acórdão se sentencia que a competência dos julgados de paz é alternativa, tem de entender-se que é alternativa apenas para o autor, pois que o réu nada pode fazer para contrariar a opção do autor, que até pode ser uma opção para tornar mais difícil a posição do réu, não sendo difícil configurar situações de tal natureza.
A interpretação feita no mesmo aresto viola o princípio, ou regra, do processo equitativo, que é assegurado, nomeadamente, através da igualdade de armas, que impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses e que exige a identidade de faculdades e meios de defesa processuais (6). A faculdade de opção alternativa entendida apenas em favor de uma das partes, no caso o autor, viola esta exigência de igualdade de faculdades e de meios de acção e de defesa que a lei estabelece.
Com razão exara a Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, na declaração de voto no Acórdão em referência, o seguinte:
“O que de todo não posso aceitar é que, dentro da perspectiva de que a intervenção dos julgados de paz é facultativa, se admita que a mesma fique dependente da vontade exclusiva do autor, não se exigindo acordo do réu, por violação do princípio da igualdade no acesso à justiça”.
Assim, por se entender que a interpretação que no douto acórdão se faz da norma viola o disposto no Artigo 20º, nº 1 e 4 da CRP se defende que não é de aplicar a doutrina do mesmo e se continua a sustentar que a competência atribuída aos julgados de paz é uma competência exclusiva, fundamentada nas razões que acima se deixam expressas.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.
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IV. DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao agravo e confirma-se a decisão recorrida.

Sem Custas.

Lisboa, 12 de Julho de 2007.
FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
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1 Aprovada pela Lei 3/99, de 13/1.
2 in CPC anot., I, 201.
3 Noções Elementares de Processo Civil, I. pg. 88.
4 Vd., por todos, Acs do STJ de 9.2.94 (in BMJ 434/564) e de 12.1.94 (in CJ/STJ, 1994, I, 38).
5 “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 835859.
6 Vd. Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, pg. 105.