Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2284/2006-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
NEXO DE CAUSALIDADE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
ALCOOLÉMIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- De acordo com o acórdão uniformizador nº 6/2002 cuja doutrina não se deve afastar, ao titular do direito de regresso cumpre o ónus da prova do nexo de causalidade entre o acidente e a condução sob o efeito do álcool (artigo 342º do Código Civil e artigo 19º, alínea c) do Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro)
II- O Tribunal pode socorrer-se de presunções judiciais para provar o nexo de causalidade (artigo 351.º do Código Civil)
III- No caso de o condutor do veículo ter uma elevadíssima TAS, de 1,90g/l, o que o faz incorrer em pena de prisão (artigo 292.º do Código Penal) a presunção judicial de que agiu sob influência os álcool tem todo o cabimento não só porque um tal grau de etilização impõe o entendimento, para além de qualquer dúvida razoável, de que o condutor em tais condições age sob influência os álcool, consolidando-se a presunção quando, pelas condições em que o acidente ocorreu, se verifica que só por causa da influência do álcool se deu despiste do veículo e o violento embate nos veículos estacionados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Companhia […] de Seguros, SA demandou João […] com  fundamento no direito de regresso que lhe assiste por ter o réu, seu segurado, no dia 20-3-2002, pelas 5.10, provocado danos, que a A. indemnizou, em veículos estacionados na Rua Abel Salazar em Lisboa por circular a grande velocidade, entre 100/120 km/h com uma TAS de 1,90g/l.

2. Segundo a A. as causas do acidente foram a velocidade imprimida ao veículo e o estado etilizado do condutor.

3. Os prejuízos  reclamados  são de € 29.184,25.

4. Alegou o réu que a causa do acidente resultou de um despiste considerando vários factores, a saber: o pavimento molhado, o tempo com nevoeiro, a iluminação fraca existente no local, ser noite, descrever a via curva acentuada antes do local do embate, ladeada ao tempo por altos tapumes de obras, o inesperado aparecimento de um camião camarário de recolha do lixo no cruzamento imediatamente anterior ao local do embate com consequente perda do controlo por parte do condutor, a depressão nervosa  de que ele sofria.

5. A acção foi julgada improcedente considerando a decisão recorrida que não basta, para a seguradora preencher o ónus da prova os nexo de causalidade  entre o acidente e a condução sob  a influência os álcool, a mera alegação de que “ é um facto científico e notório  que uma taxa de álcool muito superior ao limite legal ‘tolda’ o espírito, afecta a atenção e diminui  a capacidade dos sentidos e os reflexos” (artigo 18º da petição) por também ser igualmente notório  que as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular variam de pessoa para pessoa”.

6. Não se provou, prossegue a decisão recorrida, que “ o acidente tenha ocorrido porque o réu apresentava uma TAS superior ao legalmente permitido. Tudo o que se sabe acerca do acidente é que o réu se despistou, saiu da sua faixa de rodagem e foi embater em veículos devidamente estacionados. Se o despiste se deu porque o réu se encontrava etilizado, devido à TAS apresentada ,ou a outro motivo, é algo que se desconhece”.

7. A seguradora recorre da decisão apoiando-se em jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (ASTJ n. º1§256/03 de 27 de Junho) segundo o qual  o artigo 19º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro ‘ não impõe a condição , para que haja direito de regresso da seguradora, que a influência  os álcool seja causa única do acidente. Pode haver outra causa’ e não se exige que ‘ a prova da condução sob influência os álcool se faça por forma directa, perceptivelmente, apura-se por presunção na base do conjunto das circunstância concretas […] aliada à taxa de alcoolemia apresentada’”.  Invoca também a seu favor o Ac. n. º 3546 no sentido de que o acórdão uniformizador de jurisprudência  n.º 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que “ as exigência de prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente impostas por aquele acórdão uniformizador não podem ir ao ponto de se ter de provar que o acidente nunca ocorreria se o condutor estivesse sóbrio”.

8. Defende, assim a recorrente que  a prova feita de que o condutor conduzia o veículo com uma TAS de 1,90 g/l permite retirar a ilação de que a condução nessas circunstâncias constitui causa adequada do acidente e dos consequentes danos.

9. Apreciando:

10. Remete-se para os termos da decisão de 1ª instância que decidiu a matéria de facto (artigo 713.º n.º6 do Código de Processo Civil).

11. No que respeita à matéria de facto, a A. não provou que o réu conduzia a 100/120 km/h (quesito 1º não provado) assim como o réu não provou que a iluminação na Rua Abel Salazar era fraca, , que a curva descrita pela via era ladeada por tapumes, por virtude de obras que decorriam no Colégio Planalto que impediam de se visionar o cruzamento imediatamente antes do local do embate, que nesse cruzamento estava parado um camião camarário  que procedia à recolha do lixo com alguns funcionários que recolhiam os contentores a ocupar a faixa de rodagem por onde circulava o réu e que este ao deparar-se com o camião se assustou e que, ao tentar desviar-se, perdeu o controlo da viatura no piso escorregadio e que à data dos factos se encontrava  submetido a acompanhamento psiquiátrico por virtude de sofrer de uma depressão nervosa (respostas negativas aos quesitos 4,5,6,7,8,9,10)

12. Ficaram provados elementos objectivos que rodearam o acidente: que a via por onde o réu circulava descrevia uma curva antes do local do embate (Q3), que o réu conduzia com uma TAS 1,90g/l, que o pavimento estava molhado, que havia nevoeiro e era noite.

13. Desde o Ac. nº n 6/2002,DR,nº164 de 18-7-2002 o Supremo Tribunal de Justiça firmou jurisprudência segundo a qual «a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.»

14. Não se vê razão para nos afastarmos desta jurisprudência uniformizadora, importando relembrar as passagens do acórdão n.º 6/2002 onde se explica a diferença entre o reconhecimento de que o condutor se encontrava sob influência os álcool e o reconhecimento de que “agiu” sob influência do álcool.

15. Lê-se no acórdão a este propósito:

16. “Todavia, pressentimos a dificuldade do legislador em enveredar por tal caminho. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente. Em todo o caso seria sempre o legislador a tomar a opção que entendesse mais adequada.

17.Posto isto, há que concluir que o direito de regresso está limitado no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85 a situações restritas e que vêm aí mencionadas, não funcionando como sanção civil reparadora contra todo e qualquer agente que provoque o dano. Daí que só possa existir quando se verificarem as circunstâncias aí especificadas. No caso em apreço exige-se que haja condução sob influência do álcool a ditar o comportamento do condutor. Não é suficiente que o condutor estivesse sob a influência do álcool, sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente (v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S), vol. V-I, p. 39, e de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 59).

18.A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.o o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool (circunstância que vem ressaltada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325).

19. Há que fazer a separação entre o condicionalismo do trânsito de veículos na via pública, considerados os interesses da circulação automóvel e que ao legislador cabe ponderar, e o caso específico do direito de regresso quando se aja sob a influência do álcool em termos de responsabilidade civil.

20. E tanto assim que o Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro [artigo 19.o, alínea c)], já previa o direito de regresso quando o condutor tivesse agido sob influência do álcool, e só em 1982, com a Lei n.º 3/82, de 29 de Março, se veio a determinar a proibição da condução quando o condutor seguisse sob a influência do álcool com uma taxa superior a 0,8 g/l, taxa que passou pelo Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, para 0,5 g/l e que chegou a ser fixada em 0,2 g/l pelo Decreto-Lei n.º 162/2001, de 22 de Maio, como impedimento para o início de condução, passando a qualificação criminal para o Código Penal (artigos 291.o e 292.o).

21. Todas estas modificações no regime contra-ordenacional e penal não tiveram qualquer eco no regime de seguro obrigatório. E seria, ao menos, arriscado cuidar em fazer a equivalência automática de que o direito de regresso existia sempre que o legislador, por razões ligadas à circulação rodoviária, viesse fazer qualquer alteração àquilo que considera influência de álcool susceptível de responsabilizar automaticamente o condutor segundo tais critérios.

22.Estamos assim com a corrente de jurisprudência (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, e de 19 de Julho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376) que entende que o legislador se quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor conduzisse com álcool.

23. Não nos impressiona o argumento extraído da alínea f) do Decreto-Lei n.º 522/85, onde se estabelece presunção elidível no caso de o veículo não ser apresentado à inspecção periódica. Aqui estabelece a lei uma culpa presumida. Mas não se pode concluir a contrario o efeito automático das circunstâncias indicadas na alínea c) para a existência do direito de regresso só porque a lei não indica aí presunção idêntica, conforme posição seguida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325”

24. Por isso, não se nos afigura que a mera prova de que o condutor conduzia sob a influência do álcool, que é afinal condição sine qua non, para o reconhecimento do direito de regresso, permita, atenta a aludida jurisprudência, considerar-se provado o nexo de causalidade.

25. Se assim fosse, então o resultado seria exactamente o oposto à orientação que promana desse acórdão.

26. No entanto, já não se afasta dessa orientação o reconhecimento de que ocorre nexo de causalidade quando pela forma como ocorreu determinado acidente não se vislumbre outro entendimento possível a não ser o de que o condutor agiu em concreto sob a influência do álcool.

27. A presunção judicial (artigo 351º do Código Civil), nesses casos, é aplicada com toda a legitimidade,  o que já não sucede quando ela serve para explicar o que não conseguiu ser explicado em termos de prova do nexo causal.

28. Por outras palavras: a presunção judicial de que o condutor agiu sob influência do álcool quando obtida a partir da mera prova de que houve um acidente em que um dos condutores se encontrava sob influência os álcool não representa mais do que um meio de inverter o ónus da prova do nexo de causalidade, desrespeitando-se, portanto, o acórdão uniformizador.

29. Importa, no entanto, atentar que determinados graus de alcoolemia, por serem tão elevados, impõem e justificam que se considere preenchido o ónus da prova do nexo de causalidade. A alcoolemia superior a 1,2g/l sujeita o infractor a pena de prisão até um ano (artigo 292.º do Código Penal), constituindo elemento do tipo legal a condução do veículo, por negligência, com essa ou superior TAS

30. Nesses casos TAS é tão elevada que, salvo prova susceptível de criar uma dúvida razoável no julgador, não se pode excluir que o acidente ocorreu por ter o condutor agido sob influência do álcool.

31. No entanto, mesmo nestes casos há-de fazer-se prova de que nenhuma razão explica o acidente a não ser precisamente o elevado estado de alcoolemia.

32. Importa, descendo agora ao caso concreto, atentar que o réu  tinha uma TAS de 1,90 g/l o que o faz incorrer no crime previsto no artigo 292.º do Código Penal.

33. O pavimento molhado, o nevoeiro, a hora tardia em que ocorreu o acidente (cinco horas da manhã), o embate violento sofrido pelos veículos  estacionados no local, eis-nos face a um conjunto de  elementos que concorrem para se considerar que o condutor agia sob influência do álcool.

34. Repare-se que qualquer condutor prudente não deixaria de circular a uma velocidade bem reduzida que se impunha perante condições de risco tão intensas como as que então se verificavam. Essa velocidade reduzida levaria a que o embate noutros veículos, mesmo em caso de despiste, não assumisse as consequências danosas verificadas e que só se explicam porque houve um embate violento.

35. Foi, aliás, o próprio réu a declarar que “ entra em despiste 25 metros antes do prédio nº 33, tendo guinado para a esquerda indo embater com a frente esquerda do seu veículo na traseira esquerda os veículo estacionado, seguindo-se os outros embates”.

36. Este acidente só se compreende precisamente por estar o réu fortemente etilizado.

37. O embate não foi um embate decorrente de um despiste causado por falta de visibilidade e pavimento escorregadio, foi um despiste absoluto e com impacto violento só possível pela grande velocidade que animava o veículo. E um condutor no seu estado normal, ou seja, não etilizado, não poderia deixar de circular lentamente naquele local e naquelas condições de tempo (nevoeiro e piso molhado).

38. Lê-se no auto de participação: “…] entrou em despiste, guinou para a esquerda indo embater com a frente esquerda na traseira do lado esquerdo do veículo nº2 que se encontrava estacionando à esquerda da via em frente do referido prédio com a frente voltada para o mesmo, indo em seguida embater com grande violência, na lateral esquerda, mais sobre a retaguarda do veículo nº3 que se encontrava estacionado à direita do veículo nº2. Prosseguindo a sua marcha em despiste, o veículo nº1 foi ainda embater com a frente, na lateral esquerda os veículo nº4, que se encontrava estacionado a seguir ao veículo nº3, projectando esta viatura de encontro a um caixote de lixo que se encontrava na sua frente. O veiculo nº1 continuou em despiste e foi ainda embater com a frente na lateral esquerda os veículo nº5 que se encontrava estacionado à direita do nº4 empurrando este veículo para a direita, indo este embater com a lateral desse lado, na lateral esquerda do veículo nº6 que se encontrava estacionado à direita do nº5, tendo a viaturanº6 indo embater com a lateral direita numa árvore existente do lado direito os veículo nº6, danificando-a. O veículo nº1 percorreu ainda mais 16 metros para a direita e foi imobilizar-se do lado direito da via em frente ao prédio nº40 […]

39. Assim sendo, consideramos que a matéria de facto adquirida nos presentes autos permite considerar provado o nexo de causalidade entre o acidente dados os termos e condições em que ocorreu e a influência da elevadíssima TAS 1,90g/l que às 5 horas da manhã afectava a condução do réu.

40. Concluindo:

I- De acordo com o acórdão uniformizador nº 6/2002 cuja doutrina não se deve afastar, ao titular do direito de regresso cumpre o ónus da prova do nexo de causalidade entre o acidente e a condução sob o efeito do álcool (artigo 342º do Código Civil e artigo 19º, alínea c) do Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro)
II- O Tribunal pode socorrer-se de presunções judiciais para provar o nexo de causalidade (artigo 351.º do Código Civil)
III- No caso de o condutor do veículo ter uma elevadíssima TAS, de 1,90g/l,  o que o faz incorrer em pena de prisão (artigo 292.º do Código Penal) a presunção judicial de que agiu sob influência os álcool tem todo o cabimento não só porque um tal grau de etilização impõe o entendimento, para além de qualquer dúvida razoável, de que o condutor em tais condições age sob influência os álcool, consolidando-se a presunção quando, pelas condições em que o  acidente ocorreu, se verifica que só por causa da influência do álcool se deu despiste do veículo e o violento embate nos veículos estacionados.

Decisão: concede-se provimento ao recurso ,em consequentemente, condena-se o réu no pedido

Custas pelo Réu em ambas as instâncias

Lisboa,18 de Janeiro de 2007

(Salazar Casanova)
(Caetano Duarte)
(Silva Santos)