Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17046/20.5T8LSB.L1-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DANOS PATRIMONIAIS DE PERSONALIDADE
FACTO DANOSO
LOCAL DA SUA OCORRÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.A determinação do tribunal internacionalmente competente está condicionada à natureza da relação jurídica configurada pelo autor, ou seja, da causa de pedir por este invocada e ao pedido formulado, sendo que a causa de pedir assenta nos fundamentos constituídos por pontos de facto com função instrumentada (factos instrumentais) relativamente ao facto principal e decisivo que consubstancia aquela causa de pedir (facto jurídico).

2.Não estando, é certo, em equação in casu a aplicação do direito comunitário, justifica-se o auxílio dos ensinamentos provindos do TJUE, em contextos litigiosos análogos; e , na jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», contido no artigo 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, reforçado pela jurisprudência do mesmo tribunal ao sugerir a aplicação do critério segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias, verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses.

3.Nos autos, os jogos de vídeo produzidos pela Ré sociedade comercial sediada nos EUA, encontram-se disponíveis em Portugal, através de venda directa ou indirecta, o Autor é português e domiciliado em Lisboa e, reclama da Ré a obrigação de reparar os danos materiais e não patrimoniais causados na sua imagem pessoal e profissional, pelo que é de concluir que o tribunal detém competência internacional para julgar o pleito , concorrendo os factores de atribuição de competência tipificados nas al) a) e b) do artigo 62º do CPC.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.RELATÓRIO:


1.Da Acção[1]

J…., com domicílio em Portugal, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Electronic Arts Inc., com sede em 209, R..... S..... P....., R..... C....., C_____, 9...5, EUA, peticionando que esta seja condenada a pagar ao Autor, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade e pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 240.000,00 (Duzentos e quarenta mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 43.459,07 (Quarenta e três mil e quatrocentos e cinquenta e nove euros e sete cêntimos), tudo no total de € 283.459,07 (Duzentos e oitenta e três mil e quatrocentos e cinquenta e nove euros e sete cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.  Mais deve a Ré ser condenada a pagar o montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.156,16, tudo no total de € 7.156,16 e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

Para o efeito, alegou em síntese, que é futebolista, representando atualmente o clube inglês, R..... Football C____. Por sua vez, que a Ré Electronic Arts Inc., através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo, que vem a utilizar a imagem e o nome do Autor, para divulgar e disseminar a venda dos jogos FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE, sem a devida autorização violando, consequentemente o seu direito de imagem.

Citada, a Ré contestou, arguindo, além do mais, a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar a presente ação.

Em resposta o Autor pugnou pela respetiva improcedência, afirmando em síntese, que (i)- os jogos, propriedade da Ré, são comercializados e distribuídos mundialmente, pelo que também em Portugal (ii)- facto danoso mostra-se consumado em Portugal (iii) ser cidadão português e ter domicílio em Portugal.

Subsequentemente foi proferida decisão que declarou a incompetência absoluta  tribunal por infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses e, consequentemente, absolveu a Ré da instância, nos termos que se transcrevem :«.No caso em apreço estamos perante uma relação jurídica em que são partes o Autor, pessoa singular, cidadão português, e a Ré, pessoa coletiva, com sede na Califórnia, Estados Unidos da América, que, segundo a versão trazida na petição inicial, desenvolve e fornece jogos com fins lucrativos e, para tal, utiliza a imagem e o nome do Autor, sem autorização para o efeito. Daqui resulta que estamos perante uma ação relativa a responsabilidade extracontratual. No caso vertente não se vislumbra a existência de qualquer instrumento internacional sobre a matéria em questão pelo que se impõe recorrer ao disposto no art. 62.º do CPC. Nos termos do normativo citado, “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a)Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b)Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram; c)Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”. A alínea a) do preceito legal citado convoca-nos para a previsão ínsita no n.º 2 do art. 71.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual “se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundado no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu”. Atentos os factos alegados pelo Autor, o facto gerador de responsabilidade civil não ocorreu, sob nenhuma forma, em Portugal, porquanto, alegou que a Ré, através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, vem a utilizar a imagem e o nome do Autor, para divulgar e disseminar a venda dos jogos FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE, sem a devida autorização. Acresce que parece resultar da petição inicial que a comercialização dos jogos é efetuada por terceiros. Assim, afigura-se-nos que facto ilícito imputado à Ré – produção de videojogos com a imagem do Autor – ocorreu no estrangeiro, pelo que não se verifica, desde logo, o fator de atribuição de competência internacional, à luz das regras de competência territorial. No que respeita à al. c), importa aferir se foi praticado em Portugal algum facto em território português constitutivo da causa de pedir. Afigura-se-nos que a produção dos jogos por parte da Ré ocorre nos Estados Unidos da América, não sendo alegado que a Ré vende os jogos que produz em Portugal. Por sua vez, a ocorrência dos danos é invocada de forma genérica e conclusiva, pelo que o nexo entre a atuação da Ré e tais danos ou a culpa da Ré também não têm ligação direta ao território nacional, sendo a nacionalidade um elemento irrelevante em termos de fator atributivo de competência. Por fim, afigura-se-nos que não se verificam os pressupostos a que alude a al. c) do artigo 62. ° do Código de Processo Civil, cuja razão de ser visa prevenir conflitos negativos de jurisdição e evitar situações de denegação de justiça, sendo que a tutela dos direitos de personalidade é transversal ao mundo ocidental. Deste modo, estamos perante a verificação da exceção de incompetência internacional dos Tribunais portugueses para apreciar a presente ação, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do artigo 96. ° do Código de Processo Civil, a qual configura exceção dilatória e tem como consequência a absolvição da Ré da instância, nos termos do n.° 2 do artigo 576.º e da alínea a) do artigo 577. °, ambos do Código de Processo Civil, o que se declara.»

2.Do Recurso    
                                                                       
Inconformada, o Autor interpôs recurso que culmina nas seguintes conclusões:
«a)-A decisão recorrida é salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b)-Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c)-O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do Tribunal a quo para o julgamento do presente litígio.
d)-A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de vídeo contendo a imagem, nome e demais características pessoais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
e)-Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do Autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
f)-O Autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere - substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao Autor (patrimoniais e não patrimoniais), por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562. °, 563. °, 564, n.° 1, 565. °, 566. ° n.°s 1, 2 e 3, todos do Código Civil e ainda artigo 609. ° n.° 2 do Código de Processo Civil).
g)-Ao contrário do que a decisão recorrida refere, esses danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais caraterísticas do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal.
h)-Isso mostra-se devidamente alegado nos artigos 15.°, 18.°, 102.° e 191.°, da petição inicial e reiterado nos artigos 22.° e seguintes do articulado de Resposta às Excepções de fls. ___.
i)-É, pois, absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção.
j)-A obrigação de reparação, no caso concreto do Autor, resulta de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. (negrito e sublinhado nossos).
k)-A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Tal como a decisão recorrida, salvo o devido respeito, ignora ostensivamente!
l)-Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).
m)-Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e e Date Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de exposição, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão do STJ de 25¬10-2005.
n)-Para além disso, o Autor é cidadão português, tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
o)-Sendo irrelevante o facto da distribuição dos jogos ser feita na prática por uma subsidiária da ré, pois é esta a proprietária dos jogos e é só ela que aufere os avultados lucros resultantes da sua comercialização.
p)-O que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
q)-Pelo que, atento o disposto no artigo 71. °, n.° 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62. ° do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
r)-Tanto mais que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
s)-E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.° e72.° do Código Civil, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
t)-Tanto mais que, nos autos é arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.° n.° 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa), cfr. alegado nos artigos 40.° e seguintes da Resposta às Excepções de fls. ___.
u)-Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.°, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
v)-Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
w)-O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
x)-Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
y)-Ora, o Autor toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
z)-Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.
aa)-Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
bb)-Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62. ° do Código de Processo Civil. cc) Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 615°, n.° 1, alínea d), 2.ª parte, 591. °, 592. ° e 593. °, n.° 1, 62. °, alíneas a), b) e c), 71. °, n.° 2 e 80. ° n.° 3, todos do Código de Processo Civil, o artigo 26. ° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70. ° e 72. ° do Código Civil. Termos em que deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgando internacionalmente competentes os tribunais portugueses, prossiga a tramitação dos autos, fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA.»
***  

Nas contra-alegações a Ré rebateu a argumentação do apelante, sustentando, em síntese, que face à alegação da petição inicial, na senda do decidido em outros processos com idêntico objecto, e o recente Acórdão do TRC 3239/20.9T8CBR, de que junta cópia, deverá o recurso improceder, concluindo-se conforme a decisão recorrida, pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.  

O recurso foi regularmente admitido como apelação e com efeito devolutivo.
 
O apelante requereu a junção de cópia de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que se admitiu pela pertinência para a decisão.

Corridos os Vistos, cumpre decidir.

3.O Objecto do recurso

Consabido que a actuação do tribunal de recurso está delimitada pelas conclusões do recorrente, haverá que decidir se, o tribunal português é internacionalmente competente em face da relação jurídica e objecto do litígio configurados na petição inicial.

II.–FUNDAMENTAÇÃO

A.– Os Factos

A matéria factual a apreciar consta do relatório.

B.–Do mérito do recurso

1.Competência internacional; considerações gerais

A atribuição do poder de julgar aos tribunais portugueses apenas se suscitará na situação, em que o caso trazido a juízo manifeste conexão com outra (s) ordem jurídica estrangeira, importando então aferir, se na perspetiva do ordenamento português, apresenta de igual modo uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

Dispõe o artigo 59º do Código de Processo Civil, que respeita à competência internacional concorrente, (a que admite a  possibilidade de ocorrência de atividade jurisdicional paralela à exercida pela jurisdição nacional a respeito da mesma causa, podendo cada país estabelecer os elementos de conexão que considere relevantes para se atribuir a competência para julgar determinados litígios) que sem prejuízo do firmado em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os tribunais são competentes internacionalmente quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos. 62º e 63º do CPC, ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º do mesmo diploma legal. [2]

Seguindo de perto a análise dos sobreditos elementos de conexão na lição de Luís Lima Pinheiro. [3]

O artigo 62º al. a) fixa o critério da coincidência, i. e, a competência internacional atribuída aos tribunais portugueses, ocorre quando a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência internacional estabelecidas na lei portuguesa (artigo 70º e seguintes do CPC), e mesmo que existam elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. [4]

Em aplicação do critério da causalidade contemplado na al. b) do artigo 62 do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando o facto que serve de causa de pedir, ou algum dos factos que a integram, tiver sido praticado em Portugal.

Com carácter de último recurso, tendente a prevenir a denegação de justiça, a al.c) do dispositivo assenta no critério da necessidade, exigindo-se que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real e que, segundo o princípio da necessidade, o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável. [5]

2.–O pedido de indemnização por violação do direito à imagem; litígio plurilocalizado e transnacional  
A determinação do tribunal internacionalmente competente está condicionada à natureza da relação jurídica configurada pelo autor, ou seja, da causa de pedir por este invocada e ao pedido formulado, sendo que a causa de pedir assenta nos fundamentos constituídos por pontos de facto com função instrumentada (factos instrumentais) relativamente ao facto principal e decisivo que consubstancia aquela causa de pedir (facto jurídico).[6]
A situação trazida ao julgamento do tribunal nacional.

O Autor é jogador de futebol internacional, atualmente no Reading Football Club, tem nacionalidade portuguesa e domicílio em Portugal.

A Ré é uma empresa comercial constituída e sediada nos EUA.
No âmbito da sua actividade, a Ré cria, produz e comercializa os jogos de vídeo denominados “FIFA” e “FIFA MANAGER”, e os quais incluem a imagem do Autor enquanto jogador.

O Autor que para o efeito não consentiu ou autorizou, alega danos na sua imagem e pretende efectivar a obrigação de reparação da Ré por actuação ilícita.   
    
Deparamos então com uma causa de pedir complexa, alicerçada em alegação fáctica dos pressupostos da responsabilidade civil (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal entre o facto e o dano), os quais como é sabido, podem não se reduzir a um simples facto material com precisa e única localização espacial e temporal.

Não divergem os litigantes que o facto essencial, a causa de pedir apresentada na petição inicial, entronca na imputada actuação ilícita da Ré, que através da actividade de produção, comercialização e distribuição de jogos de vídeo denominados “FIFA,  “FIFA MANAGER”,  FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE” usou a imagem pessoal e profissional do Autor,  sem o seu consentimento, causando-lhe danos que deverá indemnizar, rectius, pretende com a demanda efectivar a tutela legal conferida àquele direito de personalidade no âmbito da responsabilidade   aquiliana. 
    
A decisão recorrida concluiu pela incompetência territorial do tribunal português, assentando que os invocados danos causados à imagem do Autor se consumaram /ocorreram nos EUA, local onde a Ré tem a sua sede e produz/cria os aludidos jogos de entretenimento, e nessa circunstância não se verificar o factor de conexão de atribuição de competência internacional a que alude a al. b) do artigo 62º do CPC.   

O Autor apelante sustenta em adverso, que a materialização dos danos da sua imagem é feita através da comercialização e distribuição dos jogos, operada pela Ré na Europa e, em especial no território português, os quais são adquiridos e revendidos por empresas nacionais, de par com o critério da necessidade efectiva de tutela jurídica, verificando-se, por conseguinte, o factor de conexão estabelecido na al. b) do artigo 62º do CPC. [7]    
 
Argumenta ainda em sufrágio das conexões prevenidas na al. a) e c), que sendo cidadão nacional e com domicílio em Portugal, deverá atender-se à competência dos órgãos jurisdicionais portugueses, em articulação com o previsto no artigo 71º, nº2, do CPC e 70º do CCivil, estando em causa a violação ilícita de direito de personalidade.

Em suporte da posição contrária, a Ré aditou às anteriormente juntas, diversas decisões proferidas pelos tribunais de primeira e segunda instância, que corroboram a incompetência internacional do tribunal, em alinhamento com o sentido alcançado pela decisão em recurso; também o Autor fez chegar aos autos decisões proferidas em oposição.    

Aproximando.    
  
Em síntese, revisitando o quadro normativo da competência internacional convocado para os autos, temos que: para a aplicação do critério da causalidade, previsto al. b) do artigo 62.º do Cód. Proc. Civil, exige-se que os factos integrantes da causa de pedir tenham sido praticados em território português; para a aplicação do critério da necessidade, previsto na al. c) do artigo 62º do CPC, exige-se a verificação de uma impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas ou uma impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente, isto é, que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de acção proposta em Portugal ou quando a propositura da acção no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável.

Importa também sublinhar que o princípio da coincidência da competência internacional com a competência territorial, segundo o qual os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa, em confronto com as jurisdições estrangeiras, estabelecido pela al. a) do art. 62.º, deve ser entendido como pressupondo a remissão para os arts. 70.º a 84.º, todos do CPC, de acordo com o princípio da dupla funcionalidade. [8]

Por outro lado, não estando, é certo, em equação in casu a aplicação do direito comunitário, justifica-se o auxílio dos ensinamentos provindos do TJUE, em contextos litigiosos análogos, no que se refere à temática da competência dos tribunais nacionais em caso de invocação de danos e do local da sua materialização.  
    
E, na jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», contido no artigo 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares.[9]

Esse critério de interpretação vem sendo sedimentado por aquele tribunal, quando esteja em causa o impacto da violação dos direitos de personalidade, através de meios de exposição globais que lhe conferem conexão com mais do que um ordenamento jurídico e jurisdição nacional e, se verifica predominantemente no Estado onde a vítima alega ter sofrido atentado à sua reputação e tem o seu domicílio e a sede da sua vida pessoal organizada.

Justamente, versando a matéria da competência judiciária, tendo a vítima invocado danos provocados em direitos de personalidade através de vídeos/jogos  na  internet  , o TJUE prolatou o Acórdão «e Date Advertising» , permitindo ao lesado pedir reparação pela totalidade dos danos no tribunal do lugar do centro dos seus interesses, atendendo em especial à acessibilidade universal dos conteúdos colocados em sítio da Internet e à dificuldade de determinação do quantum respondeatur .[10]

Aqui chegados.

Estamos cientes das dúvidas geradas na identificação do lugar da materialização do dano nas situações em que os efeitos da actuação ilícita não se corporizam na pessoa física ou bem patrimonial específico, como o direito à imagem.

Conforme indiciam os autos, os jogos produzidos e comercializados pela Ré encontram-se disponíveis em Portugal, por venda directa ou indirecta, o Autor é português domiciliado em Lisboa e, reclama da Ré a obrigação de reparar os danos materiais e não patrimoniais causados na sua imagem pessoal e profissional; e, alegou de modo suficiente na petição inicial, os factos que integram a causa de pedir.
          
As partes juntaram diversas decisões de primeira instância e de arestos de segunda instância que ilustram a divergência jurisprudencial instalada. [11] 

Cabendo tomar posição na apreciação do tópico à luz dos contornos concretos da lide, concluímos que o tribunal a quo detém competência internacional, concorrendo os factores de atribuição de competência tipificados nas al) a) e b) do artigo 62º do CPC. 
  
Nesse sentido e amparo iluminam os recentes dois Acórdãos do STJ de 7.06.2022, tirados em processos, em que precisamente, a Ré foi demandada por outros futebolistas com a mesma causa de pedir e pedidos.   [12]

Lê-se nos respetivos sumários: 
«1.–São internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da violação de direitos de personalidade através de difusão global e não autorizada do nome, imagem e características pessoais e profissionais do autor em videojogos e jogos para computador, os Tribunais do país onde teve lugar essa difusão e o lesado se encontrava domiciliado e/ou tinha o seu centro de interesses pessoais e profissionais, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados. 2. Os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º alínea b) do Código de Processo Civil, para o julgamento de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos alegando o autor que a violação do seu direito aconteceu em Portugal, por ali terem sido, como em todo o mundo, distribuídos e estarem disponíveis aos consumidores interessados os jogos produzidos pela ré em que era abusivamente utilizado o seu nome e imagem. 3. Nessas circunstâncias, apesar de parte dos factos ofensivos do alegado direito do autor terem sido praticados no estrangeiro, surpreende-se entre a causa baseada na acção violadora do direito alheio promovida pela ré e o Estado Português um elemento de conexão suficientemente forte e que permite que, no eventual confronto com outros ordenamentos jurídicos e jurisdições nacionais, sejam os Tribunais portugueses aqueles que se encontram em melhor posição para avaliar e decidir da gravidade e extensão da alegada violação do direito de personalidade dos autor.»[13]

E, «I- A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida. II-Para aplicação do regime previsto no Regulamento (EU) n.° 1215/2012, de 12 de Dezembro, é necessário que a ré tenha o seu domicílio num Estado-Membro da União Europeia ou que se verifique algum dos elementos de conexão especiais previstos no Regulamento na sua Secção 2 a 7 (sendo que o domicílio do demandado no território dos Estados-Membros da União Europeia desempenha a função não só de critério geral de competência, mas também de condição para aplicar as regras de competência directa previstas no próprio Regulamento, nos termos do artigo 4.°, n° 1).III- Os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses são os contidos no art° 62°, do Código de Processo Civil: citério da coincidência (al. a)), critério da causalidade (al. b)) e critério da necessidade (al. c)), bastando se verifique uni de tais critérios para ter lugar a competência internacional dos tribunais portugueses. IV- Invocando o Autor que a sua imagem, nome e características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados pela Ré (sociedade com sede nos EUA), designadamente em Portugal, sem a sua autorização, nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2012, 2013, 2016, 2017 e 2018; FIFA MANAGER na edição de 2012; FIFA Ultimate Team-FUT nas edições de 2012, 2013, 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019, todos propriedade da Ré (épocas em que o Autor residiu e actuou em território nacional ao serviço de clubes portugueses), os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para dirimirem o litígio visando o ressarcimento da violação de tais direitos de personalidade. V.- Com efeito, a competência internacional, in casu, decorre, do estatuído em qualquer das alíneas a) e b) daquele normativo: al. b) - princípio da causalidade - , por, pelo menos, alguns dos factos que integram a causa de pedir na acção terem sido praticado em território português (o Autor, como jogador profissional de futebol, jogou em clubes portugueses durante 7 dos 10 anos em que invoca a aludida violação do direito ao seu nome e imagem); al. a) - princípio da coincidência - , por aplicação do n.° 2 do artigo 71° do CPC (responsabilidade civil por facto ilícito). VI.- O que vem sendo reforçado pela jurisprudência do TJUE, ao sugerir a aplicação do critério segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias, verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos, satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.»[14]

Em suma, no acompanhamento da doutrina do STJ, bem como o anteriormente exposto sobre os pomos do litígio em apreciação e, a interpretação do artigo 62º do CPC, mostram-se preenchidos os critérios da coincidência al. a) e da causalidade al) b), a justificarem a competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a demanda.  

III.–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes em conceder provimento ao recurso, e em consequência, revogando a decisão, declaram o tribunal competente internacionalmente, prosseguindo a instância os demais trâmites. 
Custas a cargo da Ré.


Lisboa, 21.06.2022



ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA
CRISTINA COELHO



[1]Com aproveitamento do relatório da sentença.
[2]A par de outros casos estabelecidos no artigo 63º do CC em que a autoridade judiciária portuguesa é a competente de forma absoluta, excluindo-se a competência de outra autoridade judiciária estrangeira. Isso significa que, para os processos indicados no referido dispositivo legal, a lex fori reconhece como internacionalmente competente apenas os seus juízes e tribunais, impedindo o reconhecimento da decisão estrangeira.
[3]In Direito Internacional Privado, vol. III, t. I, AAFDL Ed., 2019, pág. 337.
[4]É o caso, por exemplo das acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis que devem ser propostas no tribunal da situação dos bens, ou seja, se o elemento de conexão utilizado na norma de competência territorial apontar para um lugar situado no território português os tribunais portugueses competentes são internacionalmente competentes. -
[5]Alcançando, não só a impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas com as quais ele apresenta uma conexão relevante, como também a impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente.
[6]Cfr. a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2021, no proc 20526/18.9T8LSB.L1. S1, in www.dgsi.pt.
[7]O Autor juntou com a petição prova documental de- factura de aquisição em Portugal dos jogos FIFA, doc. 15, o doc. 21 e o doc. 22.
[8]Cfr. Acórdão do STJ de 11-07-2017, proc 531/15.8T8LRA.C1. S2, in www.dgsi.pt.
[9]Cfr.  Acórdão de 31 de maio de 2018, Nothartová, C-306/17[10], nº 18 e Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18[11], nº 23 e jurisprudência aí referida, apud, Acórdão do STJ de 14.10.2021 -proc. 26412/16.0T8LSB.L1-A. S1, in www.dgsi.pt.
[10]Decisão do TJUE (Regulamento Bruxelas I Bis), também citada pelo apelante; E, a qual reiterou a jurisprudência estabelecida por referência à Convenção de Bruxelas, nos termos da qual, a regra de competência especial prevista no artigo 5º/3; em análise detalhada do aresto, cfr. Alexandre Dias Pereira in Revista Jurídica Portucalense / Portucalense Law Journal N.º 16 | 2014, disponível em open space.
[11]V. ex. o Acórdão do TRC de 26.10.2021 proc. 3239/20 e Acórdão do TRL de 13.01.2022 proc24974/19.9., in www.dgsi.pt. 
[12]Sufragando a doutrina do antecedente Acórdão do STJ de 24.05.20224 proferido na revista 3853/20.2T8BRG.G12, nesta data ainda não publicado na página IGFEJ.
[13]No proc 4157/20.6T8STB.E1. S1, sendo Relator Exmo Conselheiro Aguiar Pereira, ainda não publicado, junto aos autos pelo apelante.
[14]No proc 24974/19.9T8LSR.L1. S1, sendo Relator o Exmo. Conselheiro Fernando Baptista de Oliveira; ainda não publicado e
junto aos autos pelo apelante.