Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1266/13.1TBMTJ-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Se a obrigação exequenda resulta da resolução do contrato, o título executivo particular sempre teria que conter a documentação da resolução do contrato; caso contrário, não há título executivo.
II – Para além de que se tem de ter em consideração que “não é exequível, atenta a diversa natureza das obrigações em causa, o documento particular que formalize o contrato objecto de resolução, para o efeito de fazer valer as consequências do incumprimento das obrigações dele derivadas.”
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A 08/05/2013, G-SA, entretanto incorporada por fusão pela S-SA, requereu uma execução contra H, para obter dele o pagamento de um crédito que ela tinha adquirido do B-SA (antes BC-SA), no valor de 10.765,41€, mais 8192,80€ de juros vencidos e vincendos e 5415,15€ de cláusula penal.
Isto com base num documento que disse corporizar um contrato de crédito, documento esse enquadrável no art. 46/1-c do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, pelo qual o executado se comprometeu ao pagamento do valor mutuado em prestações mensais e sucessivas, mas deixou de o fazer desde 21/12/2004, data em que o contrato foi resolvido, tendo ficado em dívida o valor referido, mais juros, mais um acréscimo de 8% sobre o capital em dívida, a título de cláusula penal, no caso de resolução devido ao incumprimento,
Depois de citado, o executado, a 14/11/2017, deduziu embargos contra a execução, onde, entre outras questões, uma delas prévia, da ilegitimidade do exequente e outras relativas à falta da entrega do veículo, falta de comunicação das cláusulas do contrato e prescrições, mas não só, alegou que o alegado título executivo não passava de uma proposta de crédito, ou seja, havia falta de título executivo, pois que não constava do documento em causa: (i) a aceitação da proposta de contrato de crédito pela BC; (ii) a concessão de crédito ao executado; (iii) a disponibilização efectiva de qualquer montante; e (iv) ou os termos e condições para pagamento do mútuo; se tivesse sido cumprido o disposto no art. 812-D/-e do CPC, o tribunal deveria ter indeferido liminarmente o requerimento executivo nos termos do seu art. 812-E/1-a do CPC, sempre na redacção dada pela reforma de 2013; pelo que devem agora os embargos ser julgados procedentes com a consequente extinção da instância executiva e cancelamento de quaisquer penhoras realizadas ao seu abrigo.
A exequente contestou dizendo, entre o mais, que nos termos do documento que já tinha junto [a que agora chama 2], tinha sido concedido um empréstimo de 11.666€, a que corresponde 11.500€ de entrada inicial, 100€ a título de despesas de dossier, acrescida de 66€ a título de imposto selo, para aquisição do veículo 00-11-AA; o capital mutuado foi entregue nesta data ao fornecedor Stand”, conforme doc.3 [novo n.º3 – parenteses deste TRL]; o contrato foi celebrado por 60 prestações mensais, com o valor de cada prestação mensal de 244,69€; após a explicitação e leitura do supra referido contrato, foi aposta a assinatura do executado de livre e espontânea vontade; todos os elementos constantes do contrato foram confrontados e conferidos através da visualização dos documentos de identificação do executado; resulta do contrato de empréstimo já junto aos autos, o pedido de financiamento e a declaração de entrega devidamente assinados pelo executado; dele consta que “o estabelecimento vendedor confirma que o bem referido nas condições particulares do contrato foi entregue ao 1.º titular”, conforme doc.4; acresce ainda que o executado assina a declaração de renúncia ao direito de revogação, que aí consta e menciona que “de acordo com as condições gerais do presente contrato, declaro que, tendo-me sido entregue de imediato o objecto deste contrato, venho renunciar ao período de reflexão e direito de revogação”; o executado e um terceiro (AA) preencheram a declaração para registo de propriedade, na qualidade de comprador e vendedor, conforme doc.5.
Os documentos 3 a 5 referidos só foram juntos com a contestação; o executado foi notificado dela e nada disse contra o que ali constava ao longo de todo o processo.
Depois de variadíssimos despachos e peripécias – numa delas admitiu-se, numa acta de audiência, a requerimento de ambas as partes, a intervenção provocada do terceiro referido supra que se pronunciou sobre a questão [em 18/12/2018; disse ter comprado o veículo em causa em 2002 e que desde então é o dono dele; isto no mesmo requerimento em que disse ter pedido apoio judiciário para se defender]; o tribunal não deu qualquer seguimento a isto -, acabou por se realizar a audiência final a 27/01/2020 (em cuja acta se diz que as partes reduziram o valor da quantia exequenda, por constatarem que havia diferença entre os juros da cláusula penal [sic], que estavam peticionados a 8%, e a taxa da cláusula penal fixada a 6%), com audição de uma testemunha do executado, tendo depois sido proferida sentença, em que, após se considerar que a exequente era parte legítima, se julgou procedente a petição de embargos, por provada a excepção peremptória invocada, de inexistência de título executivo, absolvendo-se o executado do pedido e determinando-se a extinção da execução, com todas as legais consequências daqui decorrentes [sic].
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A exequente recorre desta sentença – para que seja revogada e a execução prossiga.
O executado contra-alegou, no essencial pelas razões constantes da decisão recorrida, concluindo no sentido da improcedência do recurso.
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Os factos que interessam a esta decisão são os seguintes e resultam dos quatro documentos juntos pela exequente, nenhum deles impugnado pelo executado (arts. 607/4 e 663/2 do CPC):
I - Num impresso do ‘Banco BC’, com o titulo de proposta de crédito / condições particulares numa das faces estão preenchidos manualmente os quadros destinados: (i) aos dados do 1.º titular, (ii) à caracterização de um veículo automóvel, com o preço de venda de 22.500€, a entrada inicial de 11.500€, o montante de crédito 11.000€, despesas de dossier de 100€, imposto de selo de 66€ e o n.º de mensalidades, 60, (iii) o valor da mensalidades sem seguro, 244,69€, e com seguro, 249,28€, e o custo total do crédito e do seguro, (iv) assinatura BC, (v) assinatura do 1.º titular, e (vi) a data desta (11/06/2013) [é o doc.3-inicial].
II - Na outra face desse documento consta:
Como cláusula geral 3, o seguinte: celebração do contrato 3.1: Ao subscrever esta proposta de crédito, o titular adere às condições gerais, especiais e particulares do contrato, e demais condições constantes de anexos que dele façam parte integrante, as quais declara conhecer e se obriga a cumprir. 3.2 O contrato só se considera perfeito com a aceitação expressa do BC da proposta subscrita pelo titular, a qual se considera realizada com a entrega dos valores financiados ao titular ou a quem este indicar nas condições particulares.
E como cláusula geral 7, o seguinte: Cessação do contrato, incumprimento e resolução: 7.1. Para além dos demais casos previstos na lei, o BC poderá resolver imediatamente o contrato, considerar vencida a operação e exigir o pagamento imediato de todas as prestações emergentes do contrato e, em geral, de tudo quando constituir o seu crédito, incluindo a penalidade por mora a que se refere a cláusula anterior, sem prejuízo dos juros que se vençam até integral pagamento, sempre que: […].
III - A Stand emitiu uma factura/recibo relativa ao executado, com data de 11/06/2003; constam como condições o pronto pagamento, o veículo em causa é o já referido e o valor é de 22.500€ [doc.3-novo].
IV - O executado assinou um documento que tem o título de pedido de financiamento e declaração de entrega; é um impresso do qual constam, já impressas, entre outras, declarações de que o estabelecimento vendedor confirma que o bem referido nas condições particulares do contrato foi entregue ao 1.º titular; tem uma assinatura e carimbo do vendedor e a seguir à referida do executado, como 1.º titular e depois uma declaração deste de que “de acordo com as condições gerais do presente contrato, declaro que, tendo me sido entregue de imediato o objecto deste contrato, venho renunciar ao período de reflexão e direito de revogação, a que se segue a sua assinatura, com data, e também, com a sua assinatura e data, uma autorização de débito em conta [é o doc.4]
V - O executado assinou, como comprador, um requerimento/ declaração para registo de propriedade (contrato verbal de compra e venda), em impresso da Direcção-geral dos registos e notariado, relativa ao veículo já referido, sendo vendedor o já referido terceiro (AA), estando assinado também por este [é o doc.5].
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A decisão recorrida - que não contém uma discriminação expressa dos factos que considera provados relevantes para a decisão que tomou, contra o que dispõe o art. 607/3 do CPC -, tem a seguinte fundamentação, nas partes que importam:
“O documento [3-inicial – parenteses deste TRL] não constitui título executivo, posto que, não encerra em si uma obrigação certa, líquida e exigível.
Sendo uma mera proposta de crédito que não colheu a definitividade devida, designadamente, a sua aceitação formalizada, a devida disponibilização do valor emprestado ao executado e não ao stand de automóveis, posto que era com o primeiro que a negociação estava a ser realizada e seria ele que munido da verba emprestada e a si disponibilizada faria o que dela entendesse, para que agora pudesse perante a exequente assumir o pagamento do que lhe havia sido efectivamente emprestado.
A exequente disponibilizou a verba ao stand, que por sua vez fez com o dinheiro o que bem quis. E nunca entregou o dinheiro ao executado, que aliás teve a testemunha AJM, por si arrolada, a atestar tudo isto precisamente, e ainda, a declaração junta aos presentes autos de um terceiro, a 18/12/2018 no sentido de que o terceiro comprou o veículo ao stand em 2002 e que desde então é o proprietário do automóvel.
Ora, o executado, não obstante a mera proposta de crédito, e ante o interesse no veículo, aguardou que o veículo estivesse em condições de lhe ser entregue e da formalização da sua compra/venda, o que nunca veio a suceder, e por tal razão, deixou de cumprir com as prestações que iniciou o pagamento, pois que a parte contrária também com ele não cumpriu as suas obrigações.
Na verdade, o título executivo dado à execução, para além de constituir uma mera proposta de crédito, não apresenta um valor concretizado e explicitado como se impõe legalmente para o efeito, veja-se o valor do documento constante, aquele que é declarado no requerimento executivo e ainda aquele que a exequente assume no seu articulado e confessa e acorda no início do julgamento, conforme consignado na respectiva acta.
Mais se diga que o valor nunca foi disponibilizado ao executado, a quem se diz o empréstimo concedido, mas sim ao Stand de automóveis, como se mostra confessado e comprovado nos autos. O que determina a sua inexigibilidade e obrigação para com o exequente, a não ser assim, era fácil emprestar e depois pedir o que não se tinha concedido.
Ante o alegado e a proposta de crédito junta, e atenta as suas partes, porque motivo foi o valor mutuado entregue ao stand directamente!?
É que invoca a exequente, que é instituição de crédito, e que a não entrega do veículo deveria ter sido reclamada junto do Stand. E pergunta-se então, que, tendo a exequente emprestado dinheiro ao executado, a que título faz a entrega do mútuo ao Stand, e não à pessoa que perante si, ficou devedora.
É que apesar de impender sobre o comprador o dever de registar o veículo, não lhe sendo entregue o mesmo e não tendo a sua documentação, nunca o poderia fazer. E assim, e ainda que tendo pedido dinheiro para o dito veículo, ficou sem veículo e sem dinheiro, para poder resolver a sua situação, posto que a exequente emprestou a um, mas decidiu entregar a verba emprestada a outro. Claro que esta situação não estava na alçada e na disponibilidade da exequente, para ser por ele resolvida.
O título apresentado não tem força executiva à luz da lei em vigor, nem está sustentado pelo devido contrato formalizado que se impunha na sequência da proposta em apreço.
Atenta às disposições legais em vigor sobre a matéria, e aos pressupostos e requisitos legais fixados para o efeito, nomeadamente, os constantes da conjugação do preceituado nos artigos 729, 731, 713, 703 e 46 todos do CPC e ainda dos artigos 817 e 818 ambos do CC, o documento apresentado não reúne os requisitos legais exigidos por lei para um título executivo que é extrajudicial.
Desconhece-se de todo, aliás, se esta dívida alguma vez, foi em algum momento anterior, reclamada junto do executado, dado que não há qualquer prova feita nos autos nesse sentido.
Há, em conclusão, manifesta falta de título executivo.
Pelo que, não havendo prova do seu reconhecimento judicial, o mesmo não tem força executiva e não constitui em conformidade, título executivo.”
A exequente diz o seguinte contra isto (transcrevem-se as conclusões na parte minimamente útil, em síntese e com simplificações):
A) Os documentos apresentados à execução titulam um contrato celebrado entre a [sucessora da] exequente e o executado, através do qual aquela concedeu um crédito associado à aquisição de um automóvel e este se obrigou a reembolsá-la da quantia financiada e efectivamente disponibilizada, mediante o pagamento de prestações mensais determinadas no contrato.
B) O contrato constitui documento particular assinado pelo executado, constitutivo de uma obrigação por parte daquele, de restituição da quantia financiada/mutuada nos moldes acordados, a qual é aritmeticamente determinável.
C) Não obstante, interpelado para efectuar o pagamento das prestações em dívida, o executado não pagou as mesmas e, em consequência, incumpriu definitivamente as condições de reembolso e o respectivo contrato, o que implicou o vencimento imediato de todas as prestações em dívida, nos termos do art. 781 do Código Civil.
D) O executado assumiu a obrigação do pagamento dessas quantias pecuniárias mutuadas, ainda que diluídas num dado período temporal, mediante a aposição da sua assinatura no contrato, aceitando, assim, as condições particulares e gerais, aliás conforme declarado expressamente nos contratos.
E) Pelo requerimento pretende-se obter o pagamento das quantias em dívida, atinente ao reembolso do crédito concedido. Tal reembolso constitui obrigação assumida expressa e pessoalmente pelo devedor no contrato que titulam a execução.
F) A propositura de uma acção executiva implica que o exequente disponha de título executivo, por um lado, e que a obrigação exequenda seja certa, líquida e exigível, por outro.
G) Do contrato de concessão de crédito resulta a certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação exequenda.
H) “Ao exequente mais não compete, relativamente à existência da obrigação, do que exibir o título executivo pelo qual ela é constituída ou reconhecida”;
I) “Um contrato em que a entidade bancária concede a alguém um empréstimo, (...), alegando aquela entidade que este não pagou uma prestação vencida e todas as que lhe seguiram, pode servir de título executivo em execução a instaurar contra o devedor”.
I) Pelo que, cumprindo o contrato de concessão de crédito apresentados à execução os três requisitos legais para valer enquanto título executivo nos termos do art. 46/1-c do CPC de 1961: assinatura do devedor, reconhecimento de uma obrigação pecuniária, aritmeticamente determinável, não pode concluir-se pela falta de título executivo na execução subjacente aos presentes autos.
[…]
K) Resulta da clausula 3.1 das condições gerais do contrato de concessão de crédito que “ao subscrever esta proposta de crédito, o titular adere às condições gerais, especiais e particulares do contrato, e demais condições constantes de anexos que dele façam parte integrante, as quais declara conhecer e se obriga a cumprir”.
L) Mais resulta da clausula 3.2 das condições gerais do contrato de concessão de crédito que “o contrato só se considera perfeito com a aceitação expressa do BC da proposta subscrita pelo titular, a qual se considera realizada com a entrega dos valores financiados ao titular ou a quem este indicar nas condições particulares”.
M) Conforme se comprova do recibo - documento número 3 junto com a contestação, a a exequente [ou melhor, a sua antecessora – parenteses deste TRL] concedeu efetivamente um empréstimo no valor de € 11.666, para aquisição de um veículo […], cumprindo integralmente o contrato
N) Tendo sido o referido montante entregue ao fornecedor Stand […] conforme indicado pelo executado e de acordo com a clausula 3.2.
O) Desta forma a proposta acolheu a definitividade devida.
P) Resulta da declaração de entrega devidamente assinada pelo executado, doc.4, que “o estabelecimento vendedor confirma que o bem referido nas condições particulares do contrato foi entregue ao 1º titular”.
Q) O executado assinou a declaração de renúncia ao direito de revogação […].
R) Tendo sido preenchida a declaração para registo de propriedade, conforme doc.5.
S) Da documentação junta resulta que o bem financiado foi entregue ao executado.
T) No entanto, o tribunal a quo dá como provado que o bem financiado não foi entregue ao executado.
U) Desconhece a exequente se a viatura foi entregue ao executado uma vez que a sua obrigação esgotava-se com a entrega do montante acordado.
V) No entanto, não pode deixar de estranhar o facto do recibo, doc.3, ter sido emitido pelo Stand e a declaração para registo de propriedade ter sido assinada por AA, enquanto proprietário da viatura, aliás testemunha indicada pelo próprio executado.
W) Desconhecendo inclusivamente, a exequente, se o mesmo teria alguma relação com o Stand.
X) Assim, a falta de entrega da viatura sempre teria que ser exigida pelo executado ao referido terceiro, o que não aconteceu.
O executado, já se disse, segue, no essencial, a posição da sentença recorrida (e o que dizia nos embargos) e acrescenta que o veículo automóvel é propriedade do tal terceiro que, tendo sido chamado por ambas as partes - exequente e executado - a intervir nos presentes autos, na qualidade de interveniente acidental, veio declarar aquilo que o executado já havia alegado, ou seja, que é o proprietário do veículo desde ‘Setembro de 2002’. E o executado conclui: não recebeu qualquer quantia da exequente, assim como não recebeu o veículo a cuja aquisição o crédito se destinava, pelo que nunca poderia ser responsável pelo pagamento da quantia exequenda.
Decidindo:
Face ao declarado pelo ac. do TC 408/2015, de 23/09/2015 (DRI de 14/10/2015), a apreciação da exequibilidade do título é feita com base no art. 46/1-c do CPC antes da reforma de 2013, que dizia, na parte que importa, que à execução podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, de acordo com as cláusulas dele constantes […].
Posto isto,
A decisão recorrida não tem razão em considerar que o título não é executivo por, segundo ela, não estar provado que o contrato se tenha concluído, ou seja, estar-se-ia perante uma mera proposta contratual.
É que, se esta conclusão estava certa perante apenas o documento inicialmente junto (doc.3-inicial), que era de facto apenas uma proposta contratual que só daria origem a um contrato “com a aceitação expressa do BC da proposta subscrita pelo titular, a qual se considera realizada com a entrega dos valores financiados ao titular ou a quem este indicar nas condições particulares”, a verdade é que, perante a falta de impugnação dos documentos posteriormente juntos, docs.3-novo, 4 e 5, se tem de concluir que o dinheiro acabou por ser entregue a quem o executado tinha indicado, pois é que isso que resulta do facto de ele ter assinado o doc.4, a seguir à assinatura do vendedor do bem, onde este declarava que o tinha entregue ao executado e tudo isto no próprio dia da assinatura da proposta, sendo também do próprio dia da data da factura.
Haveria, pois, título executivo para exigir o cumprimento do contrato, isto é, das prestações a que o executado se tinha obrigado (as prestações mensais).
No entanto, veja-se:
Perante o incumprimento do contrato, o credor pode ter uma de duas vias: ou exige ao devedor que cumpra o contrato, incluindo junto do tribunal (art. 817 do CC), ou, em dadas condições, pode resolver o contrato (arts. 432, 801 e 808 do CC). As duas soluções não se confundem, são alternativas, não se podem cumular, pois que, exigindo o cumprimento (mesmo que seja de todas as prestações, por força da perda do benefício do prazo: art. 781 do CC), o credor quer que o contrato seja cumprido, pelo que não o está a resolver, e, resolvendo o contrato, com o que o extingue (arts. 433, 434 e 289, todos do CC), não pode exigir o cumprimento do mesmo, porque o contrato deixa de existir.
Não há dúvida de que, no caso dos autos, a exequente está a exigir as consequências da resolução do contrato, a que dizia ter procedido, embora agora, no recurso, não diga nada quanto a isso, e coloque as coisas como se estivesse a exigir o cumprimento do contrato, com perda do benefício do prazo (e para o efeito alega agora um facto novo, que também não está documentado, qual seja a interpelação do executado, a exigir-lhe o cumprimento). Mas são dois direitos diferentes, não podendo ser transmutado um no outro no decurso da execução, ainda para mais na fase de recurso.
Por isso, o que está em jogo é antes a falta de título para a exigência das obrigações resultantes da resolução do contrato.
Ora, desde logo se poderia dizer que “não é exequível, atenta a diversa natureza das obrigações em causa, o documento particular que formalize o contrato objecto de resolução, para o efeito de fazer valer as consequências do incumprimento das obrigações dele derivadas.” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 33, citando nesse sentido o ac. do TRL de 27/06/2007, proc. 5194/2007-7:
I- A lei confere hoje força executiva a todos os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805 (artigo 46.º/1, alínea c) do CPC).
II- Do título executivo devem resultar, dada a necessidade de se acautelar a certeza e segurança das obrigações, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias o que não sucede quando estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título, isto é, não estão por ele documentados nos termos exigidos pelo referenciado artigo 46.º/1, alínea c9 do C.P.C
No mesmo sentido, veja-se o ac. do TRG de 08/10/2015, proc. 81/14.0TBMDL.G1:
1. A exequibilidade conferida por lei aos documentos particulares assenta na aparente certeza e segurança quanto à existência e quantificação das obrigações, o que deve emergir do texto do documento.
2. Tal não ocorre com as obrigações emergentes da resolução do contrato que consta do documento que serve de título executivo à execução, o que desde logo se apreende quando se considera que a restituição é exigível não por força do contrato mas da sua resolução;
3. Fundada execução em obrigações que não se encontram contidas no título executivo, deve a mesma ser liminarmente indeferida, nos termos do artigo 726, n.ºs 1 e 2-a do CPC).
Este acórdão do TRG ainda invoca um artigo de “António Santos Abrantes Geraldes, A Reforma da Acção Executiva, TEMIS, Rev. Fac. Direito da UNL, Ano IV, nº 7, 2003, página 46:
‘Implicando a resolução contratual a antecipação da obrigação de restituição, a verificação do respectivo condicionalismo não emerge do próprio documento, exigindo a invocação e a prova de outros factos que terão de ser submetidos à discussão contraditória a realizar em sede da acção declarativa.’”
No mesmo sentido, para uma questão paralela, veja-se ainda o ac. do TRL de 25/02/2003, proc. 664/2003-7, com ampla fundamentação no ponto 5 da respectiva fundamentação, para a qual se remete:
I - O direito de crédito correspondente às prestações do aluguer de longa duração é qualitativamente diverso daquele que emerge do incumprimento do contrato, ainda que decorrente de cláusula penal.
II - Provando-se nos embargos de executado que o exequente declarara a resolução do contrato de aluguer de longa duração, é inviável convolar a execução por forma a que em vez das rendas em dívida, siga para pagamento da indemnização decorrente da referida resolução.
Em suma, uma coisa é a obrigação de pagamento das prestações mensais do empréstimo, que constam do título – lido com boa vontade, já que do doc.3 não decorre que a mensalidade é com seguro ou sem seguro, tendo a exequente escolhido a segunda hipótese sem base para tal; mais, a quantia emprestada também não foi de 11.660€, mas sim 11.160€…, tendo a exequente referido o primeiro valor em discordância com o que consta do contrato (somou outros valores à entrada inicial de 11.500€, em vez de ao valor do crédito de 11.000€) – outra é a obrigação que resulta depois da resolução do contrato, tendo o conteúdo concreto composto pelas consequências dessa resolução que não constam do título (não são certas as consequências da resolução do contrato, ao contrário das mensalidades acordadas).
Independentemente disto, para que a obrigação exequenda resultante da resolução do contrato pudesse ser exigida, seria necessário, desde logo, o pressuposto fundamental para o efeito, qual seja, que o título executivo fizesse a prova da resolução do contrato, ou seja, a comunicação da resolução (art. 436 do CC).
Ou seja, a obrigação exequenda decorreria de uma série de factos constitutivos, entre elas a resolução do contrato, e o título executivo para poder servir da presunção da constituição dessa obrigação, teria de ser suficiente para comprovar tudo isso.
Ora, do título executivo não faz parte, como documento complementar do contrato, qualquer documento que comprove ter sido feita a resolução do contrato, tanto que, repete-se, agora a exequente já nem fala na resolução do contrato.
Assim sendo, não há título executivo que sirva para exigir a obrigação exequenda em causa.
A questão relacionada com a entrega do veículo não tem, no caso, face ao que antecede, qualquer relevo.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida, embora com outra fundamentação.    
Custas, na vertente de custas de parte, pela exequente (que é quem decaiu no recurso).
Lisboa, 05/11/2020
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas