Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
126/25.8PDAMD.L1-9
Relator: MARIA DE FÁTIMA R. MARQUES BESSA
Descritores: INSUFICIÊNCIA DO INQUÉRITO
NULIDADE SANÁVEL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGIME DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade do Relator):
I. A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, constitui nulidade sanável prevista no art.º 120.º, n.ºs, 1 e 2, al. d) do CPP, estando dependente de arguição nos termos do art.º 120.º, n.º 3, al. c) do CPP.
II. No caso concreto a não audição de testemunha que o arguido considera, em sede de motivação e conclusões do recurso, essencial, mas que nunca a identifica completamente, não explica porque não a ofereceu como prova, nem requereu qualquer diligência relativamente a essa testemunha, direito que lhe assistia ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º1 do art.º 61.º, do CPP, nem a arrolou como testemunha ao abrigo do disposto no art.º 311.º, B, do CPP, nem muito menos solicitou, em sede de audiência, que o tribunal ordenasse a inquirição da testemunha que alude nos termos do art.º 340.º, do CPP, não constitui nulidade sanável prevista no art.º 120.º, n.º2, d) por não se reputar essencial à descoberta da verdade, que, de qualquer modo, já se encontrava sanada por não ter sido alegada no prazo legalmente previsto, como decorre do art.º 120.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e n.º 3. al. a) e c) do CPP perante o tribunal recorrido e não perante este Tribunal de recurso.
III. Não se tratando de um novo julgamento mas apenas um remédio jurídico, para ser conhecida, pelo Tribunal de recurso, a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento), uma das formas de impugnação da decisão da matéria de facto, tem o recorrente, nas suas conclusões, o ónus de especificar os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas concretas que impõe decisão diversa da recorrida, sendo caso disso, as provas que devem ser renovadas, bem como, estando a prova gravada, de transcrever ou indicar a passagem ou passagens das declarações/depoimentos da gravação áudio, que suportem entendimento diverso, com indicação do início e termo desses segmentos em cumprimento do previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, sob pena de não pode ser conhecida, por incumprimento das formalidades legalmente prescritas, nos referidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP.
IV. No caso concreto o recorrente não cumpre tais especificações, não indicando de forma expressa, os concretos pontos de facto que impugna, quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa não fazendo a especificação previstas na alínea b) por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, não indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação que impunham decisão diversa. Mais não indica com clareza se se há factos alternativos (apresentando a sua versão) a serem dados como provados ou apenas se os factos deviam passar, para o elenco dos factos não provados, face à sua leitura das provas, não sendo admissível o convite ao aperfeiçoamento, impondo-se a rejeição da impugnação alargada da decisão quanto à matéria de facto provada.
V. O uso do princípio in dubio pro reo (regra de decisão da prova) só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o Julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese.
VI. Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, tendo sido rejeitada a impugnação alargada da decisão sobre a matéria de facto, a sua violação terá que ser tratada em sede de impugnação restrita, como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal) e, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida, do qual resulta que o Tribunal recorrido não manifestou qualquer dúvida razoável a respeito de quaisquer dos factos dados como provados, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum.
VII. O Tribunal de Recurso, em sede de escolha e determinação da pena, não decide como se não existisse uma decisão de primeira instância, não se tratando de um re-julgamento, assistindo ao tribunal de primeira instância uma margem de actuação, componente do acto de julgar, podendo este Tribunal de Recurso alterar a pena, mas apenas quando são detectadas incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido pelo Tribunal de primeira instância; na interpretação e aplicação dos princípios e das normas legais e constitucionais que regem a pena; nas operações de determinação da medida da pena (indicação e consideração dos factores na fixação da pena concreta); quando sejam violadas, na fixação exacta da pena concreta, regras da experiência ou quando a mesma se revelar manifestamente desproporcionada.
VIII. Aludindo o recorrente à sua juventude, pretendendo com isso a diminuição da pena aplicada, não fazendo, porém, alusão ou qualquer referência ao Regime Penal Especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos previsto no DL n.º 401/82 de 23/09, dir-se-á que, mesmo que se equacionasse no caso concreto a aplicação desse regime, sempre a pena concretamente aplicada se deveria manter, face aos contornos da situação em análise, designadamente face à gravidade dos factos e à personalidade demonstrada pelo arguido na respectiva prática.
IX. No caso concreto, o Tribunal deve determinar que a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão (art.º 50.º, do CP) seja acompanhada de regime de prova, porquanto a sua aplicação é obrigatória, atenta a idade do arguido ao tempo do crime, (inferior aos 21 anos) nos termos do n.º 3 do art.º 53.º, do CP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, as Juízas Desembargadoras, em conferência, na 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
1.
Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal-Juiz 11, processo Abreviado nº 126/25.8..., realizado o julgamento, de AA, filho de BB e de CC, natural da ..., nascido a ........2004, solteiro, ..., titular do CC n.º …, residente na ..., em Tribunal singular, foi proferida sentença condenatória oral em .../.../2025, cuja decisão final é a seguinte:
“DISPOSITIVO
Em face do exposto, julgo a acusação procedente, por provada.
Em consequência:
a) Condeno o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, no dia ...-...-2025, pelas 19.45 h, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, nº 1 e 25º, nº 1, al. a) do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-B anexa a este diploma legal, na pena de 1 ( um ) ano e 6 (seis) meses de prisão, que suspendo por igual período, sujeita a regime de prova (artigos 50º e 55º do Código Penal).
b) Condeno o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC (cf. arts. 513º e 514º, n.º 1 todos do Código de Processo Penal, e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III, a este anexa). sem prejuízo de eventual pedido de apoio judiciário que venha a requerer.
c) Declaro perdida a favor do estado a substância apreendida, nos termos do artigo 35º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, a qual deve ser destruída logo que transite a presente decisão. d) Declaro perdida a favor do estado a quantia monetária apreendida nos autos (artigo 110º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal).
e) Declaro perdido a favor do estado o objecto apreendido, melhor id. a fls 7, devendo ser destruído nos termos do artigo do 110º do Código Penal.
*
Cumpra-se o disposto no art. 372º, n.º 5, do Código de Processo Penal.”
*
Após trânsito:
Comunique ao órgão de polícia criminal, para que proceda à destruição da amostra guardada em cofre. Comunique nos termos e para os efeitos consignados no artigo 64º da Lei nº 15/93, de 22/01.
Remeta Boletins à D.S.I.C.. Solicite à DGRSP a elaboração de PIRS.
2.
Inconformado com a sentença condenatória, o arguido veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
a) Face ao exposto, e pelos fundamentos desenvolvidos ao longo deste recurso, impõe-se concluir que a sentença recorrida padece de vícios insanáveis que comprometem a sua validade e legitimidade, justificando a sua integral revogação.
b) A matéria de facto considerada provada pelo Tribunal a quo assenta numa apreciação manifestamente deficiente e contraditória da prova produzida em audiência, tendo sido integralmente desvalorizadas as declarações consistentes e coerentes do arguido, perfeitamente compatíveis com o seu perfil pessoal e social de jovem trabalhador, primário, com emprego estável e sem qualquer envolvimento anterior em atividades ilícitas. A tese acusatória revelou-se fragilizada e inconsistente, evidenciando contradições significativas nos depoimentos dos próprios agentes da autoridade e sendo parcialmente arquivada pelo Ministério Público quanto ao crime de condução perigosa.
c) A grave omissão investigativa consubstanciada na não identificação e audição da acompanhante presente no veículo constitui uma violação frontal dos princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente do direito de defesa, do contraditório, da igualdade de armas e do in dubio pro reo.
d) Esta terceira pessoa, cuja presença foi confirmada pelos próprios agentes policiais e pelo arguido, tinha acesso direto ao local onde foi encontrada a substância estupefaciente, pelo que a sua audição se revelava indispensável para o esclarecimento cabal dos factos e para a descoberta da verdade material.
e) A qualificação jurídica adotada pelo Tribunal a quo é manifestamente incorreta, uma vez que não foi demonstrado de forma inequívoca o elemento subjetivo essencial do crime de tráfico de estupefacientes, designadamente o dolo específico de destinação da substância à venda ou cedência a terceiros.
f) A pena aplicada revela-se manifestamente desproporcional à gravidade dos factos e às circunstâncias pessoais do arguido, desatendendo o seu perfil de jovem primário, trabalhador e socialmente inserido, violando os princípios da proporcionalidade e da culpa que devem nortear a aplicação das penas em processo penal.
g) O conjunto de vícios e irregularidades identificados cria uma dúvida razoável e insuperável sobre a autoria e a intenção do arguido, impondo, por imperativo legal e constitucional, a aplicação do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, a sua absolvição.
Em face do exposto e dos fundamentos supra aduzidos, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se a este Tribunal que se digne julgar o presente recurso procedente, com as seguintes consequências:
A. A título principal, a revogação da douta sentença recorrida e a consequente absolvição do arguido AA, por insuficiência de prova e por violação do princípio in dubio pro reo, determinando a realização das diligências omissas e a consequente baixa dos autos à primeira instância para novo julgamento, por força do princípio da legalidade, da verdade material e da justiça.
B. A título mais subsidiário, a redução da pena de prisão aplicada e a eliminação do regime de prova, por ser a mesma manifestamente desproporcional à gravidade dos factos e às circunstâncias pessoais do arguido, em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da culpa.
3.
O recurso foi admitido por despacho para este Tribunal da Relação de Lisboa, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo (artigos 399º, 401º, nº 1, alínea b), 406º, nº 1, 407º, nº 2, alínea a) e 408º, nº 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal). Notifique, sendo o Ministério Público para, querendo, responder ao recurso (artigo 411º, nº 6 do Código de Processo Penal).
4.
O Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso do arguido dela se extraindo as seguinte conclusões (transcrição).
2. Em questão prévia caberá referir que não resulta nem da motivação, nem das conclusões (estas que delimitam o objecto do recurso) que se tenha observado, minimamente, as exigências previstas no art.º 412.º, do CPP; e, sendo total a omissão quanto às indicações exigidas, deve assim, s.m.o., ser rejeitado formalmente o recurso
Assim não se entendendo,
Em momento algum nas motivações de recurso ou conclusões é mencionado quais os concrectos pontos incorretamente julgados e quais os factos que deveriam ter-se considerados como não provados;
3. Nos autos, ficou demonstrado, sem qualquer dúvida, que o arguido agiu conforme descrito na acusação e que tal prática, fez o mesmo incorrer na prática em autoria material e na forma consumada, no dia ...-...-2025, pelas 19.45 h, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, nº 1 e 25º, nº 1, al. a) do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-B anexa a este diploma legal.
4. Limitado o objecto do recurso às conclusões apresentadas, em súmula e com relevância para a resposta ao recurso apresentado, são as seguintes as questões levantadas pelo recorrente (das conclusões):
- Violação do princípio in dubio pro reo, porquanto não foi determinada a audição da acompanhante do veículo, o que viola os princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente do direito de defesa, do contraditório, da igualdade de armas;
- Errada apreciação da prova, na medida em que o Tribunal não valorou as declarações do arguido e não percebeu as contradições nos depoimentos dos agentes de autoridade; e
- Ser a pena excessiva.
5. O Ministério Público, diverge da opinião do recorrente considerando ser correcta e fundamentada a douta sentença.
6. Os factos considerados provados são todos os constantes da acusação e acrescem os factos relativos à circunstâncias pessoais do arguido, apurados em audiência de julgamento.
7. No que em concreto se refere à apreciação critica da prova e fundamentação da decisão, conforme resulta da sentença oral, o Tribunal teve em atenção o auto de notícia por detenção, os autos de apreensão, as fotografias, o relatório pericial e os depoimentos das testemunhas.
8. Nas suas declarações, em julgamento, o arguido refere que o produto estupefacienteestavanoseuveículoautomóvel,masquenãotinhaconhecimento disso e que tal não lhe pertencia. Sendo que, na sua versão emprestou anteriormente o veículo automóvel a 4 rapazes para aí permanecerem porque estava a chover e veio depois a ser interceptado pelos agentes da PSP quando estava a regressar de umas compras e passou por uma zona conotada com a prática de tráfico de estupefacientes.
9. Ora, talqualmente também resulta da motivação de facto (cfr. sentença oral), as declarações do arguido são incoerentes e não encontram quaisquer pontos em comum com os outros meios de prova.
10. Mais, não é credível que o arguido tenha emprestado o seu carro a outras pessoas sendo que só conhecia uma das pessoas e porque estava a chover e não fazer sequer comparecer uma testemunha que pudesse atestar a sua versão.
11. Ao contrário do alegado pelo recorrente não há qualquer violação do princípio in dubio pro reo, ao não ter sido determinada a audição da acompanhante do veículo.
12. Estava na disponibilidade do arguido arrolar tal acompanhante como testemunha, quer em sede de contestação quer em sede de produção de prova em audiência de julgamento – o que não ocorreu.
13. Também se mostra evidente que não há qualquer violação do principio in dubio pro reo, pois que, não resultou para o julgador qualquer incerteza sobre os factos, conforme se pode perceber pela sentença proferida oralmente.
14. No que se refere à alegada errada apreciação da prova (na medida em que o Tribunal não valorou as declarações do arguido e não percebeu as contradições nos depoimentos dos agentes de autoridade). Tal não corresponde à verdade.
15. Em primeiro nem sequer nos podemos pronunciar quanto às alegadas contradições, pois que, não é mencionado no recurso (nas motivações ou nas conclusões), que contradições são essas ou em que passagem é que se pode evidenciar as mesmas.
16. Atenta a factualidade provada, dúvidas não restam de que os factos provados permitem imputar ao arguido o tipo de ilícito pelo qual foi condenado.
17. E entendemos que foram observados todos os critérios para a determinação da pena. Cfr. nºs 1 e 2 do artigo 40º e artigo 71.º do CP.
18. Sendo que, foi também manifesto que, no caso concreto, considerando que o arguido não tinha averbado condenações anteriores, era possível fazer um juízo de prognose favorável quanto a comportamentos futuros do arguido e determinar a suspensão da pena de prisão, tal como ocorreu.
E, entende assim o Ministério Público que se mostra justa, adequada e proporcional a pena de um ano e seis meses de prisão e neste sentido, deverá a decisão recorrida ser integralmente confirmada, face ao enquadramento factual nela vertido e à realizada valoração e análise crítica da prova, fazendo o devido enquadramento jurídico e correcta aplicação do direito, assim se tendo concluído pela condenação do arguido, em pena cuja medida e forma de execução (suspensa) se nos afigura igualmente como justa, adequada e proporcional.
5.
Nesta instância recursiva a Sra. Procuradora Geral adjunta formulou o seguinte parecer que, em parte, se transcreve:
- Artigo 416.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (C.P.P.) -
O Ministério Público respondeu ao recurso, equacionando de forma bem estruturada e completa às questões a resolver, defendendo a manutenção da decisão, em termos de facto e de direito que, pelo rigor e propriedade, suscitam a mais completa adesão.Assim, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público mormente no que respeita à questão prévia, emite-se parecer consonante, no sentido de que o recurso deve ser rejeitado ou, caso assim não seja entendido, julgado improcedente quanto às questões de mérito.
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Foi dispensado o cumprido o nº2, do artigo 417, do Código de Processo Penal.
Não tendo sido requerida audiência e não sendo caso de renovação da prova, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais (artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal).
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II. Delimitação do OBJECTO DO RECURSO
Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente…”
Nos termos do n.º 1 do art.º 410.º, do CPP (Fundamentos do recurso)
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
Mais dispõem os n.ºs 1 e 2 do art.º 412.º, do CPP: (Motivação do recurso e conclusões)
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (art.º 428º do C.P.P), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (art.º 410º, nº 1 do C.P.P).
Seguindo de perto FERNANDO GAMA LOBO, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, Almedina pág. 947, estruturalmente o recurso pode, assim, ter como fundamentos concretos:
i) Questões processuais, traduzidas em nulidades ou irregularidades da sentença (art.ºs 379.º e 410.º, n.º3, do CPP) ou nulidades ou irregularidades do processado.
ii)Questões formais que dizem respeito à patologia da sentença, traduzida em erros endógenos da sentença, resultantes sem mais da leitura da sentença, sem elementos exteriores a ela, os designados vícios da sentença-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, do CPP) ou erro da falta de fundamentação e exame crítico da prova (art.º 374.º, n.º2, do CPP) e
iii)Questões materiais, traduzidas em erro de julgamento em matéria de facto ou erros de julgamento em matéria de direito (art.º 412.º, n.ºs 2 e 3 do CPP).
Atendendo às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada são as seguintes as questões a apreciar, por ordem de precedência lógico-jurídica:
1.ª Da nulidade ou irregularidade processual decorrente da não realização da diligência de audição da acompanhante do veículo, em violação dos direito de defesa, do contraditório, da igualdade de armas e do princípio in dubio pro reo;
2.ª Da impugnação da matéria de facto: se ocorre erro de julgamento (art.º 412.º, n.ºs 2, 3 e 6 do CPP) ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, al. c) do CPP) por errada valoração da prova produzida (declarações do arguido e das testemunhas) e violação do in dubio pro reo.
3.ª Do erro de julgamento em matéria de direito relativo à qualificação jurídica dos factos dados como provados.
4.ª Da medida da pena.
III-FUNDAMENTAÇÃO
III.1 O Tribunal recorrido em sede de Sentença Condenatória deu como provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados
Nos autos, ficou demonstrado, sem qualquer dúvida, que:
1. No dia ... de ... de 2025, pelas 19h45m, na ..., em ..., aquando de uma abordagem policial, o arguido AA, tinha na sua posse de sua pertença, no interior do veículo de matrícula ..-QA-.., marca ...: - 23 embalagens contendo no seu interior ..., com o peso líquido de 2,646gr/l, grau de pureza de 49,7% e correspondente a 43 doses individuais; - a quantia monetária de 30,00€, em notas de 5,00€ e 10,00€.
2. O arguido AA destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros, bem sabendo que a sua mera detenção, venda e cedência, lhe era proibido, uma vez que para tal não estava autorizado.
3. O arguido conhecia as características estupefacientes e natureza proibida do produto que detinha e que destinava à venda a consumidores e a ceder a terceiros e ainda assim não se coibiu de o fazer, agindo da forma descrita, porque assim o quis e conseguiu.
4. O dinheiro apreendido ao arguido foi obtido no âmbito da sua actividade de venda de produto estupefaciente, tendo sido recebido pelo arguido como contrapartida das entregas de tais produtos que fazia a terceiros consumidores.
5. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
6. O arguido não tem antecedentes criminais.
7. Trabalha no ... e aufere o vencimento mensal de cerca de €725.
8. Vive com a mãe e dois irmão e que paga todos os meses a quantia de €200, para despesas relacionadas com empréstimos.
III.2. O Tribunal recorrido em sede de Sentença procedeu à seguinte Fundamentação da decisão de facto.
No que em concerne à apreciação critica da prova e fundamentação da decisão o Tribunal teve em atenção o auto de notícia por detenção de fls. 4v, os autos de apreensão 8 e 9, as fotografias 15, o relatório pericial 36 e os depoimentos das testemunhas DD e EE.
Nas suas declarações, em julgamento, o arguido assumiu que o produto estupefaciente estava no seu veículo automóvel, mas que não tinha conhecimento disso e que tal não lhe pertencia.
Na versão do arguido emprestou anteriormente o veículo automóvel a 4 rapazes para aí permanecerem porque estava a chover e foi ver um jogo e veio no regresso a ser interceptado pelos agentes da PSP quando estava a regressar de umas compras e passou por uma zona conotada com a prática de tráfico de estupefacientes.
Ora, talqualmente também resulta da motivação de facto, as declarações do arguido são incoerentes e não encontram quaisquer pontos em comum com os outros meios de prova. Não é credível que os rapazes tenham esquecido no carro daquelas embalagens de produto estupefacientes.
De acordo com as testemunhas resulta da postura do arguido que tinha conhecimento do produto estupefaciente no interior da viatura, por isso se pôs em fuga em alta velocidade, tendo sido encetada perseguição pela polícia, os agentes tiveram que exibir as armas de serviço, a dificuldade na abordagem imediata ao arguido, essa “resistência” à actuação, a fuga à polícia só se percebo por ter o produto estupefaciente em seu poder no interior da sua viatura que queria esconder da polícia.
Mais, não é credível que o arguido tenha emprestado o seu carro a outras pessoas sendo que só conhecia uma das pessoas e porque estava a chover e não fazer sequer comparecer uma testemunha que pudesse atestar a sua versão.
O arguido referiu que não era consumidores, não o sendo, a única explicação é que se destinava à vendaa terceiros.
Se olharmos para a fotografia a droga separada em doses individuais, apta a ser distribuída a consumidores. A quantia em dinheiro aprendida, fraccionada em notas de pequeno valor também tífica da actividade de tráfico de produtos estupefacientes .
Tendo presente as incoerências das declarações do arguido, a prova pericial e documental, o depoimento das testemunhas ouvidas, agentes da PSP, o Tribunal não tem dúvida em primeiro lugar que a droga aprendida pertencia do arguido, em segundo lugar que a destinava à venda a terceiros consumidores e em terceiro que conhecia a natureza ilícita da conduta, tal resulta não só por ter fugido à polícia como também pelas regras da lógica experiência comum, qualquer pessoa colocada na situação do arguido sabia que não podia actuar desta forma e que ao fazê-lo estava a adoptar condutas proibidas pela lei penal.
Quanto à ausência de antecedentes criminais no CRC.
Quanto à sua situação económica e pessoal nas declarações do arguido em julgamento.
III.3 O Tribunal recorrido em sede de Sentença procedeu, em síntese, à seguinte Fundamentação de Direito, nas partes que relevam:
A conduta do arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime que vem acusado.
Para determinação da medida da pena o Tribunal atendeu aos critérios gerais dos art.ºs 40.º e 70.º e 71.º, do CP e a moldura abstracta.
O Tribunal atendeu às seguintes circunstancias:
Exigências de prevenção geral positiva elevadas considerando o flagelo que a droga e os produtos estupefacientes acarretam para os consumidores, família e sociedade e também para uma série de crimes relacionados com o tráfico produto estupefaciente.
A natureza, quantidade e qualidade do produto estupefaciente.
Não ter antecedentes criminais.
Estar o arguido social, familiar e profissionalmente integrado.
Fixa a pena de prisão em 1 ano e 6 meses suspensa na sua execução por igual período de tempo com regime de prova.
IV- FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECIAÇÃO.
Apreciemos, então, as questões a decidir e supra elencadas.
IV.1. Da nulidade ou irregularidade processual decorrente da não realização da diligência de audição da acompanhante do veículo, em violação dos direito de defesa, do contraditório, da igualdade de armas e do princípio in dubio pro reo;
Vem o arguido alegar que ocorreu grave omissão investigativa consubstanciada na não identificação e audição da acompanhante presente no veículo que, a seu ver, constitui uma violação frontal dos princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente do direito de defesa, do contraditório, da igualdade de armas e do in dubio pro reo.
Esta terceira pessoa, cuja presença foi confirmada pelos próprios agentes policiais e pelo arguido, tinha acesso direto ao local onde foi encontrada a substância estupefaciente, pelo que a sua audição se revelava indispensável para o esclarecimento cabal dos factos e para a descoberta da verdade material. Vem pedir a final e a título principal, a revogação da douta sentença recorrida e a consequente absolvição do arguido AA, por insuficiência de prova e por violação do princípio in dubio pro reo, determinando a realização das diligências omissas e a consequente baixa dos autos à primeira instância para novo julgamento, por força do princípio da legalidade, da verdade material e da justiça.
Por contra ponto, refere o Ministério Público que, ao contrário do alegado pelo recorrente, não há qualquer violação do princípio in dubio pro reo, ao não ter sido determinada a audição da acompanhante do veículo. Estava na disponibilidade do arguido arrolar tal acompanhante como testemunha, quer em sede de contestação quer em sede de produção de prova em audiência de julgamento – o que não ocorreu.
Também se mostra evidente que não há qualquer violação do principio in dubio pro reo, pois que, não resultou para o julgador qualquer incerteza sobre os factos, conforme se pode perceber pela sentença proferida oralmente.
Apreciando:
Vem o arguido, no fundo, arguir uma invalidade/irregularidade processual por não ter sido inquirida a testemunha que refere, não invocando, porém que norma ou normas foram, do seu ponto de vista violadas.
É certo que os art.ºs 118º a 123º do CPP regulam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições estabelecidas por lei para a prática dos actos processuais geradoras de invalidade. E classifica-as a lei processual penal, em três espécies:
- As nulidades insanáveis – art.º 119º;
- As nulidades dependentes de arguição – art.º 120º
– E as irregularidades – art.º 123º.
O art.º 118º n. os 1 e 2 dispõe que a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei e que, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular.
Decorre da conjugação das normas dos art.os 119.º e 120º que para que a nulidade seja considerada insanável importa que a lei explicitamente o preveja, enumerando o art.º 119.º as nulidades insanáveis.
O art.º 120.º impõe que qualquer nulidade diversa das previstas no primeiro deve ser arguida, constituindo as dependentes da arguição as previstas no n.º 2 do art.º 120.º, além das que forem cominadas noutras disposições legais.
Só é insanável a nulidade a que a lei assim expressamente designe. Prevendo-se simplesmente nulidade, então, trata-se de vício dependente de arguição.
As nulidades insanáveis são, por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido, as quais tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (n.º1 do art.º 122.º, do CPP).
Como se pode ler no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022, processo 303/12.1JACBR.P1-B.P1.S1-5 EDUARDO LOUREIRO:
I - De acordo com o princípio da tipicidade consagrado no art.º 118.º, n.º 1, do CPP, a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que – n.º 2 da norma –, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular.
II - As nulidades insanáveis são, por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido. Não podem, porém, ser declaradas após a formação de caso julgado sobre a decisão final que, neste aspecto, actua como forma de sanação.
III - A regra geral é a de que as nulidades relativas e as irregularidades ficam sanadas se não forem acusadas nos prazos legais de arguição.
IV - Tais prazos, quanto às nulidades, são o geral de 10 dias previsto no art.º 105.º, n.º 1 e os específicos previstos nos art.ºs 120.º, n.º 3. Podendo a sanação ocorrer, ainda, por via da assunção das atitudes tipificadas no art.º 121º.
V - As irregularidades, essas, haverão de ser arguidas no próprio acto em que tiveram ocorrido, isso estando os interessados presentes. Não tendo assistido ao acto, devem os interessados suscitá-las «nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado» – art.º 123.º n.º 1. Podendo, ainda, reparar-se oficiosamente a irregularidade que possa afectar o valor do acto praticado no momento em que dela se tomar conhecimento. Desde que ainda não sanada, sob risco de, a admitir-se reparação de irregularidades já sanadas, se introduzir grave entorse no sistema qual seja a de, relativamente ao menos solene dos vícios formais se admitir, afinal, um regime de reparação não só mais permissivo do que o das nulidades relativas, como equiparável, até, ao das nulidades insanáveis. in www.dgsi.pt
Vistas as supra citadas disposições legais, o alegado pelo arguido não constitui nulidade insanável prevista no art.º 119.º, do CPP.
Quanto às nulidades dependentes de arguição está prevista como nulidade sanável no art.º 120.º, n.º, al. d) do CPP a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
Refere o arguido/recorrente que o depoimento da testemunha, que nem sequer identifica pelo menos pelo nome, era essencial, porém, não explica porque não a ofereceu como prova, nem requereu qualquer diligência relativamente a essa testemunha, direito que lhe assistia ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º1 do art.º 61.º, do CPP, nem a arrolou como testemunha ao abrigo do disposto no art.º 311.º, B, do CPP, nem muito menos solicitou em sede de audiência que o tribunal ordenasse a inquirição da testemunha que alude nos termos do art.º 340.º, do CPP.
Do exposto se conclui, sem mais delongas, não se verificar qualquer nulidade sanável ou não ou irregularidade, sendo certo que sempre se trataria de uma nulidade sanável ou mera irregularidade, já sanada por falta de arguição no prazo legal, tal como decorre do art.º 120.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e n.º 3. al. a)e c) do CPP e que deveria ter sido arguida perante o tribunal recorrido e não perante este Tribunal de recurso.
Ademais, não ocorre violação de qualquer direito de defesa, contraditório ou igualdade de armas, porquanto assistia ao arguido o direito a arrolar ou solicitar a inquirição da testemunha, porém, o arguido não exerceu esse direito.
Não ocorre igualmente violação do princípio in dubio pro reo, nem se percebe tal alegação a propósito da não inquirição da testemunha que refere, questão que será, não obstante, objecto de desenvolvimento a propósito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Assim, há que julgar não provida esta questão.
IV.2. Da impugnação da matéria de facto: se ocorre erro de julgamento (art.º 412.º, n.ºs 2, 3 e 6 do CPP) ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, al. c) do CPP) por errada valoração da prova produzida (declarações do arguido e das testemunhas) e violação do in dubio pro reo.
O ordenamento jurídico-processual-penal consagra duas formas de impugnação da matéria de facto.
Uma designada por impugnação ampla, que consiste na reapreciação da prova gravada e que tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no art.º412º, nº3, 4 e 6 do CPP.
Dispõe art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP: (Motivação do recurso e conclusões)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Outra, designada por impugnação restrita, que consiste na invocação dos vícios ( são de conhecimento oficioso) previstos nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP que dispõe que.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
As duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estão por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.
O erro de julgamento (em sentido amplo) e o erro notório na apreciação da prova são institutos distintos e como tal não devem ser confundidas.
Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova, constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP, o que aqui não acontece.(Cf. Acórdão da Relação de Évora de 19/12/2019 processo 572/16.8T9TMR.E2, Relator GILBERTO CUNHA).
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal, embora não vise a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, isto é, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
Neste sentido, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2021, proferido no Processo n.º 797/14.0TAPTM.E2.S1 (Relator: NUNO GONÇALVES): No nosso sistema, o objeto do recurso ordinário é a sindicância da decisão impugnada, constituindo um remédio processual que permite a reapreciação, por um tribunal superior das questões que a decisão recorrida apreciou ou deveria ter conhecido e decidido. No julgamento do recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham sido objeto de decisão anterior pelo tribunal recorrido.”
Assim, impõe-se-lhe:
-a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado;
-a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa.
-a especificação, se for caso disso, das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.
- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (n.º4 do art.º 412.º, do CPP).
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto, em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando, em relação a cada facto alternativo, que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 3/2012 de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Tal como entendimento exarado no seguinte aresto do TRL de 02.12.2020 proc. 3606/15.0T9SNT.L15 (in www.dgsi.pt):
“para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõe decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as(…) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportem entendimento divergente, com indicação de início e termo desses segmentos”.
No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2021, proferido no Processo n.º 522/18.7PBELV.E1 (Relator: Paulo Ferreira da Cunha): O ónus que recai sobre o recorrente é de uma impugnação especificada, impugnatória de factos concretos, fazendo em cada ponto referência aos meios de prova que considere relevantes. A lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto, de harmonia com o disposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, sendo que a modificabilidade da decisão da 1.ª instância apenas ocorre nos termos apontados no art. 431º do CPP, entre os quais a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º, n.º 3, do mesmo diploma. Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa. (…) Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa. (destaques nossos).
Ademais, em caso de impugnação alargada e reapreciação da matéria de facto, o tribunal ad quem deverá avaliar “se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...) Por outro lado, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo n.º 245/09.8 GBACB.C1) destaque nosso. No mesmo sentido também, entre muitos, o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 relator ABRUNHOSA DE CARVALHO.
Volvendo ao caso dos autos, examinadas as conclusões de recurso, secundadas pelas motivações, não obstante o recorrente aflorar os requisitos legais, porém não cumpre as exigências previstas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP não especificando , de forma expressa, os concretos pontos de facto que impugna, quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa não fazendo a especificação previstas na alínea b) por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, não indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação que impunham decisão diversa. Mais não indica com clareza se se há factos alternativos (apresentando a sua versão) a serem dados como provados ou apenas se os factos deviam passar, pura e simplesmente, para o elenco dos factos não provados, face à sua leitura das provas.
Estando a prova gravada, não satisfaz essa exigência a remissão feita em termos genéricos para determinados meios de prova, como por exemplo, depoimentos ou declarações, sem precisar nos termos atrás mencionados as passagens concretas dos mesmos em que se funda a impugnação, mesmo no sentido de pretender que se deem como não provados.
No caso concreto, resulta à evidência da peça recursiva, que o recorrente, não impugna de forma válida, amplamente a decisão da matéria de facto, não podendo deixar de ser notado que a alegação de erro de julgamento pela recorrente é feita de forma vaga, conclusiva e sem a devida concretização.
Ademais, o recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, não constitui um segundo julgamento mas, apenas, a detecção e correcção de erros de julgamento, incidindo sobre concretos pontos da matéria de facto, que os recorrentes devem identificar, bem como especificar as concretas provas que demonstram a existência do erro, não sendo de sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra. Uma alteração da matéria de facto deverá ocorrer apenas se a análise da prova o impuser, como decorre do art. 412.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, nomeadamente quando fique demonstrado que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados é, pelo menos, desprovida de razoabilidade .
Nestas circunstâncias, na esteira do douto acórdão da Relação do Porto, de 28/05/2003, acessível em www.dgsi.pt entendemos que este Tribunal só pode sindicar a decisão em matéria de facto no âmbito do art.º 410º, nº2 do CPP, e não amplamente, não havendo sequer lugar a convite ao recorrente para apresentar as especificações em falta.
Efectivamente, a falta das referidas especificações compromete a possibilidade do Tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada no acórdão recorrido, tornando inviável a modificação da decisão sobre a matéria de facto, e não contendo também o corpo das motivações essa especificação, não se trata de insuficiência das conclusões, mas sim de deficiência substancial da própria motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insusceptível de aperfeiçoamento, com a consequência de nesta parte o recurso não poder ser conhecido (neste sentido Ac. TRG de 14.04.2020, proc. 621/19.8T9VNF.G1 in www.dgsi.pt.)
Ademais, um qualquer convite ao aperfeiçoamento, das aludidas conclusões redundaria na concessão de um alargamento do prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso (neste sentido Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2004, 05/07/2007, 04/10/2006, Ac TRL de 24.01.2012, in proc. 708/07.0JDLSB.L1 e os Ac TC n.º 259/2002, de 18.06.2002, e 140/2004, de 10.03.2004, in www.tribunalconstitucional.pt.).
Na verdade, é lapidar a afirmação nesse aresto e no acórdão do Tribunal Constitucional nº259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, que aí se cita, quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do nº3 do art.412º, do CPP, reside tanto na fundamentação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.
O Tribunal Constitucional posteriormente no acórdão nº140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, nº91 de 17/4/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art.412º, nºs 3, al.b), e nº4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a rejeição do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Rejeita-se assim, a impugnação alargada da decisão quanto à matéria de facto, dada a impossibilidade de se proceder à sindicância da matéria de facto por essa via.
*
Analisando, os fundamentos do recurso em termos de impugnação restrita da decisão sobre a matéria de facto a fim de concluir se ocorre algum dos vícios de erro notório na apreciação da prova ou de insuficiência para a decisão da matéria de facto, aliás de conhecimento oficioso (Cfr. Jurisprudência uniformizadora: Ac. Do STJ n.º 7/95 de 19/10/95, in DR de 28/12/1995), previstos no n.º2 do art.º 410.º, do CPP, em especial o alegado “erro notório” na apreciação da prova, diremos que em comum aos três vícios aí previstos, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (parte final do n.º2 do referido art.º). Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871.
Os três vício, consubstanciam, em suma, vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto [constituem vícios da decisão relativa à matéria de facto e não do julgamento], verificando-se quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.
O erro notório na apreciação da prova constitui vício intrínseco e endógeno da decisão, independente de qualquer elemento que lhe seja exterior, designadamente de meios de prova produzidos [ressalvada a desconsideração de prova de valor legalmente vinculado] ou que o deveriam ter sido, e que decorre de aquela assentar em premissas ou chegar a conclusões entre si excludentes ou frontalmente contrariadas por regras científicas ou por qualquer regra da normalidade e experiência.
Alega o arguido que:
“A matéria de facto considerada provada pelo Tribunal a quo assenta numa apreciação manifestamente deficiente e contraditória da prova produzida em audiência, tendo sido integralmente desvalorizadas as declarações consistentes e coerentes do arguido, perfeitamente compatíveis com o seu perfil pessoal e social de jovem trabalhador, primário, com emprego estável e sem qualquer envolvimento anterior em atividades ilícitas. A tese acusatória revelou-se fragilizada e inconsistente, evidenciando contradições significativas nos depoimentos dos próprios agentes da autoridade.”
Ora, o vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício.
O Tribunal recorrido fundamentou da seguinte forma os factos provados:
“No que em concerne à apreciação critica da prova e fundamentação da decisão o Tribunal teve em atenção o auto de notícia por detenção de fls. 4v, os autos de apreensão 8 e 9, as fotografias 15, o relatório pericial 36 e os depoimentos das testemunhas DD e EE.”
Mais, o tribunal recorrido explicou porque as declarações do arguido não lhe mereceram credibilidade, num raciocínio lógico, coerente e estruturado, compreensível pelo cidadão comum:
“Nas suas declarações, em julgamento, o arguido assumiu que o produto estupefaciente estava no seu veículo automóvel, mas que não tinha conhecimento disso e que tal não lhe pertencia.
Na versão do arguido emprestou anteriormente o veículo automóvel a 4 rapazes para aí permanecerem porque estava a chover e foi ver um jogo e veio no regresso a ser interceptado pelos agentes da PSP quando estava a regressar de umas compras e passou por uma zona conotada com a prática de tráfico de estupefacientes.
Ora, talqualmente também resulta da motivação de facto, as declarações do arguido são incoerentes e não encontram quaisquer pontos em comum com os outros meios de prova. Não é credível que os rapazes tenham esquecido no carro daquelas embalagens de produto estupefacientes.
De acordo com as testemunhas resulta da postura do arguido que tinha conhecimento do produto estupefaciente no interior da viatura, por isso se pôs em fuga em alta velocidade, tendo sido encetada perseguição pela polícia, os agentes tiveram que exibir as armas de serviço, a dificuldade na abordagem imediata ao arguido, essa “resistência” à actuação, a fuga à polícia só se percebo por ter o produto estupefaciente em seu poder no interior da sua viatura que queria esconder da polícia.
Mais, não é credível que o arguido tenha emprestado o seu carro a outras pessoas sendo que só conhecia uma das pessoas e porque estava a chover e não fazer sequer comparecer uma testemunha que pudesse atestar a sua versão.
Ademais, o tribunal fundamentou porque o arguido destinava o produto estupefaciente à venda e não ao consumo:
O arguido referiu que não era consumidores, não o sendo, a única explicação é que se destinava à vendaa terceiros.”.
Se olharmos para a fotografia a droga separada em doses individuais, apta a ser distribuída a consumidores. A quantia em dinheiro aprendida, fraccionada em notas de pequeno valor também tífica da actividade de tráfico de produtos estupefacientes .
Concluindo do exame crítico da prova que:
“Tendo presente as incoerências das declarações do arguido, a prova pericial e documental, o depoimento das testemunhas ouvidas, agentes da PSP, o Tribunal não tem dúvida em primeiro lugar que a droga aprendida pertencia do arguido, em segundo lugar que a destinava à venda a terceiros consumidores e em terceiro que conhecia a natureza ilícita da conduta, tal resulta não só por ter fugido à polícia como também pelas regras da lógica experiência comum, qualquer pessoa colocada na situação do arguido sabia que não podia actuar desta forma e que ao fazê-lo estava a adoptar condutas proibidas pela lei penal.”
Ora, resulta do texto da decisão recorrida conjugado com as regras da experiência comum a que se ateve o Tribunal recorrido, que os factos descritos na decisão e considerados provados apresentam-se, aos olhos de um homem dotado de mediana inteligência e experiência da vida, sem contradições ou de verificação impossível, sendo que a análise crítica realizada pelo Julgador aquo obedeceu a claros princípios de lógica e de racionalidade, não violando regras de prova vinculada ou conhecimentos comuns inquestionáveis. (cfr. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, Almedina, pág. 958.).
Mais alega o recorrente que “O conjunto de vícios e irregularidades identificados cria uma dúvida razoável e insuperável sobre a autoria e a intenção do arguido, impondo, por imperativo legal e constitucional, a aplicação do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, a sua absolvição.”
É certo que o princípio in dubio pro reo, emanado do princípio político-jurídico da presunção de inocência, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.°, n.° 2, da CRP), vem sendo assumido, genericamente, que se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
Na realidade, ao Tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, “Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
O princípio in dubio não é uma regra para a apreciação da prova, pois que apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova. O princípio in dubio pro reo é, assim, apenas uma regra de decisão da prova.
O uso do princípio in dubio pro reo só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese.
Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, a sua violação é tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal) e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida.
A ideia central que preside a este princípio é a de que mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente, i.e., quando há um conflito entre ius puniendi e ius libertatis, o Estado deve inclinar-se a favor deste, o in dubio pro reo significa que num non liquet seja valorado pro reo, se dê a acusação como não provada e, consequentemente, decida a favor do arguido .
O princípio in dubio pro reo resulta, igualmente, do princípio da culpa, que se retira dos artigos 18º/2 e 27º da CRP. Com efeito, o princípio da culpa, é um princípio material de direito penal substantivo e sem determinação da culpa, não pode recair sobre quem quer que seja um juízo de censurabilidade.
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2002, Proc. nº 3316/02-5ª in www.dgsi.pt: “I – O princípio in dubio pro reo constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto tem sempre de ser valorada favoravelmente ao arguido, e traduz o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, sendo a dimensão jurídico processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena”.
É certo que a “verdade absoluta” é propriedade que o transcende o julgador não irá sentenciar com base numa verdade “real”, “absoluta”, mas sim com base na verdade processual, motivável e objetivável através das regras da experiência. O julgador não decide com base num critério de verdade, – no sentido de “verdade absoluta” – mas com base num critério de convicção – convicção de que, após a produção de prova, os factos carreados para o processo correspondem a uma verdade íntima, convicta. (Cf. artigo da JULGAR on line de janeiro de 2021, relativo ao Princípio in dubio pro reo – considerações gerais, de JOSÉ PENIM PINHEIRO).
Se o juiz não lograr tal convicção, isso equivale a duvidar. Na dúvida in dubio pro reo. Mas é qualquer dúvida que motiva a decisão absolutória?
A resposta é não. A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo deve ser insanável, razoável e objetivável.
Definindo, então, o conceito de dúvida razoável, em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada.
Finalmente, deverá ser objetivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjeturas e suposições. (neste sentido Ac. STJ de 12/01/2023 processo n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1 relatora LEONOR FURTADO in www.dgsi.pt).
A doutrina e a jurisprudência têm, assim, adotado o critério anglo-saxónico da dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given).
Em jeito de densificação, atento o conceito indeterminado de dúvida razoável o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-09-2015, Proc. nº 2/13.7GCETR.P1, in www.dgsi.pt vem afirmar que quando se afirma a necessidade da “prova para além de qualquer dúvida razoável” não se pretende excluir qualquer “sombra de dúvida” (“proof beyond the shadow of a doubt”), que corresponderia ao grau máximo de convicção, praticamente, uma certeza absoluta. A dúvida meramente subjetiva não é razoável. Daqui se infere que a dúvida na mente do julgador passível de motivar uma decisão absolutória, deve assentar numa neutralização razoável aos fundamentos da acusação. Tal deve ser objeto de uma averiguação casuística.
Como escreve FERNANDO GAMA LOBO “O princípio in dúbio pro reo não é mais do que um corolário da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente no art.º 32.º, n.º2 da CRP. Produto da Revolução Francesa, repousa na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 11.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º). Tem na apreciação da prova o seu campo jurídico de aplicação natural e lógico, a qual é da competência do Juiz. Com efeito enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. Tal princípio, serve para resolver a dúvida que surjam numa situação probatória incerta. Mas a dúvida tem que ser do juiz e não dos restantes intervenientes processuais(…).” in Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
A violação do princípio in dubio pro reo impõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
O Tribunal de recurso, em sede de impugnação restrita da matéria de facto, apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
O in dubio pro reo é convocável em matéria de prova quando o tribunal se encontre numa situação de dúvida razoável quanto a algum ponto da matéria de facto, circunstância em que a deve resolver em benefício do arguido; e, inversamente, já não colhe pertinência o in dubio pro reo quando o tribunal, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, não tem qualquer dúvida razoável quanto aos factos a deles extrair ou, tendo-a tido em algum momento, a esclareceu, convencendo-se positivamente do facto em causa (entre tantos outros, vide o Acs. do STJ de 7.11.2002, da RC de 12.09.2018 e da RP de 28.10.2015, relatados por Oliveira Guimarães, Orlando Gonçalves e Ernesto Nascimento, respetivamente, Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2018 proc. 28/16.9PTCTB.C1in www.dgsi.pt; vide ainda Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCP, Vol II, pg. 1121).
Regressando ao caso concreto, o Tribunal de 1ª Instância não manifestou qualquer dúvida razoável a respeito de qualquer dos factos dados como provados, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum.
O Tribunal de 1.ª instância justificou devidamente a versão que acolheu, como se denota da motivação.
Como vimos, o percurso seguido pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, mostra-se, perfeitamente explicado, de forma lógica e objetivável e explicável pelas regras da experiência comum e, nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer e ser acolhida.
Não há, pois, qualquer ofensa ao princípio da presunção de inocência ou da sua manifestação probatória do in dubio pro reo.
Do exposto se conclui não existir qualquer erro notório na apreciação da prova.
Quanto aos demais vícios previstos no art.º 410.º, n.º2, do CPP, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, igualmente não se nos afigura existirem, porquanto vista a factualidade dada como provada não existe lacuna no apuramento da matéria de facto, indispensável para a decisão de direito nem a mesma é insuficiente para fundamentar a solução de direito nem o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Tem-se, assim, por definitiva a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª Instância.
Improcede, pois, o recurso interposto pelo arguido quanto à impugnação da matéria de facto relevante para enquadramento jurídico penal.
IV.3. Do erro de julgamento em matéria de direito relativo à qualificação jurídica dos factos dados como provados.
Alega o arguido que não se mostra preenchido o crime pelo qual o arguido veio a ser condenado em primeira instância, considerando que não ficou demonstrado o elemento subjectivo, mas sem razão.
Efectivamente, estabelece o nº 1 do art 21.º do D.L. nº 15/93 de 22/01: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artº 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
O art. 25.º do D.L. nº 15/93 institui o seguinte:
“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV”.
Pressuposto da integração da conduta do agente no art. 25.º do D.L. 15/93 é que a ilicitude do agente se mostre significativamente reduzida, uma vez que “a ilicitude exigida neste tipo legal tem de ser, não apenas diminuta, mas mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da ação e do resultado” Acórdão do STJ, de 12/03/2015 – processo nº 7/10.0PEBJA.S1 – www.dgsi.pt.
Considerando os factos provados em 1 a 3 e 5 mostram-se provados quer o elemento objectivo quer o elemento subjectivo do tipo de ilícito, resultando correcto o enquadramento jurídico penal realizado pelo Tribunal recorrido.
Improcede igualmente este segmento do recurso.
IV.4. Da medida da pena.
Considera o arguido que a pena que lhe foi aplicada é excessiva revelando-se manifestamente desproporcional à gravidade dos factos e às circunstâncias pessoais do arguido, desatendendo o seu perfil de jovem primário, trabalhador e socialmente inserido, violando os princípios da proporcionalidade e da culpa que devem nortear a aplicação das penas em processo penal.
Vejamos.
É lapidar o Acórdão do STJ de 19.05.2021, relatado por Ana Barata Brito, in www.dgsi.ptNo que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” No mesmo sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2025, processo 538/23.1 SXLSB.L1-9, relator JORGE ROSAS DE CASTRO e, na doutrina, entre outros Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197.
O critério de escolha da pena encontra-se fixado no art.º 70º do C. Penal nos termos do qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Responde o art.º 40º do C. Penal, à questão de saber quais são as finalidades, dispondo no seu nº 1 que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, acrescentando no seu nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, em concordância com o que estabelece o art.º 71º, nº 1 do mesmo código.
Com a inserção deste dispositivo estiveram no pensamento legislativo somente razões pragmáticas. Tratou-se tão só de dar ao interprete e ao aplicador do direito criminal critérios de escolha e medida das penas e das medidas de segurança, em vista de serem atingidos os fins últimos para os quais todos os outros convergem, que são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que a medida da culpa condiciona a própria medida da pena, sendo assim um limite inultrapassável desta (neste sentido Maia Gonçalves, Código penal Português anotado e comentado, 8.ª Edição Almedina Coimbra pág. 291).
Dispõe o art.º 71.º do C. Penal (Determinação da medida da pena) que:
“1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” (destaque nosso)
Deste modo, são elementos fundamentais da operação da escolha e determinação da pena, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente, logo, fins de prevenção – geral e especial – por um lado, e a sua limitação pela medida da culpa do agente, por outro.
A prevenção geral reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a culpa, dirigida ao agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.).
É sabido que a determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos art.º 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão.
É esta a enumeração dos factores de medida da pena que estão exemplificativamente estabelecidos no artigo 71º, nº 1 e 2 nas alíneas a) a f) do Código Penal, e que Figueiredo Dias dividiu em três categorias: relativos à execução do facto; os relativos à personalidade do agente e relativos à conduta do agente anterior ou posterior ao facto.
Cada circunstância tem uma conexão de sentido com a culpa do agente ou com as necessidades de socialização, sendo que as considerações atinentes à culpa reportam-se ao momento da prática do facto e as considerações referentes à prevenção reportam-se ao momento do julgamento.
Entre as circunstâncias relativas ao facto encontram-se as consequências do facto, o grau de perigo criado pelos actos de execução (nos crimes tentados e nos crimes de perigo) o modo de execução do facto (nos crime de forma livre) a intensidade do dolo (nos crimes dolosos) e o grau de descuido e desatenção (nos crimes negligentes). Todas estas circunstâncias relevam, quer do ponto de vista da culpa, mas também para aferir das necessidades de socialização, ou, em casos extremos, de inocuização do agente.
As consequências do facto podem ser típicas ou extratípicas, aquelas são abrangidas pelo dolo do agente, estas não o devem ser, sendo as consequências típicas a ponderar pela via da culpa e as extratípicas pela via da prevenção. O modo de execução do crime é circunstancia agravante quando apresenta uma maior gravidade do que a necessária para a execução, quando se verifica uma pluralidade de acções, instrumento particularmente grave, manifesta superioridade do agente sobre a vítima (idade, sexo, enfermidade, arma) ou do tempo do crime (noite).
As formas mais grave do ilícito subjectivo funcionam como circunstâncias agravantes e as menos graves como atenuantes (o dolo directo mais grave do que o necessário e este do que o eventual).
Entre as circunstâncias relativas ao agente encontram-se como circunstâncias agravantes certos motivos (motivo torpe) intenção lucrativa ou libidinosa, impulsos afectivos (prazer de matar, ódio, cólera) e caraterísticas da atitude interna (crueldade, avidez ou frieza de animo). Ao invés funcionam como circunstâncias atenuantes os estados asténicos, emoção violente, compaixão, desespero, perturbação, medo, susto, solicitação ou provocação da vítima.
Entre os motivos podem incluir-se como circunstâncias agravantes, ter sido o crime cometido em resultado de dádiva, como meio de realizar outro crime, motivações racistas ou xenófobas.
Os sentimentos manifestados no cometimento do crime, aqueles elementos que caracterizam a atitude interna que não cabem no crime nem nos motivos.
As condições pessoais e a situação económica relevam ao nível da culpa, para efeitos da determinação dos deveres especiais de cuidado cuja observância se impunha ao agente. Deve ponderar-se a menor capacidade do agente para ser influenciado pela pena, a idade avançada, a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita, manifestada no facto.
A conduta do agente anterior ou posterior ao facto releva ao nível da prevenção, sendo que a anterior inclui os antecedentes criminais que constem do registo criminal, em especial relacionados com a prática dos crimes em causa; o modo de vida do agente, nas suas vertentes familiar, profissional e social. A circunstancia atenuante relativa à conduta posterior do agente é a reparação dos danos causados, pode ser por terceiros mas devido a iniciativa do agente. A conduta processual do agente pode funcionar como atenuante, como é o caso da confissão, a colaboração com as autoridades.
A duração excessiva do processo também pode ser ponderada do ponto de vista das necessidades de prevenção, desde que o arguido não tenha contribuído para o atraso. (por todos Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 6.ª Edição Actualizada pág. 416 a 419).
Volvendo ao caso dos autos, não pondo em causa a suspensão da pena, mas apenas a medida da pena concreta, refere o arguido que o Tribunal não atendeu aos seguintes aspectos na determinação da medida da pena:
-Desatendeu o seu perfil de jovem primário, trabalhador e socialmente inserido, violando os princípios da proporcionalidade e da culpa que devem nortear a aplicação das penas em processo penal.
O arguido foi condenado em primeira instância pela prática em autoria material e na forma consumada, do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, nº 1 e 25º, nº 1, al. a) do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-B anexa a este diploma legal, na pena de 1 ( um ) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova (artigos 50º e 55º do Código Penal).
A moldura penal abstracta prevista no art.º 25.º do D.L. nº 15/93 al. a) é a de prisão de 1 a 5 anos.
Decorre da operação de determinação da medida da pena que o Tribunal atendeu às seguintes circunstancias:
Exigências de prevenção geral positiva elevadas considerando o flagelo que a droga e os produtos estupefacientes acarretam para os consumidores, família e sociedade e também para uma série de crimes relacionados com o tráfico produto estupefaciente.
A natureza, quantidade e qualidade do produto estupefaciente.
Não ter antecedentes criminais.
Estar o arguido social, familiar e profissionalmente integrado.
Como decorre do referido excerto da decisão, ao contrário do referido pelo arguido/recorrente, o Tribunal recorrido considerou os factores por ele referidos como não tendo sido atendidos, previstos no art.º 71.º, do CP, tendo enunciado acertadamente as regras legais aplicáveis, considerando os factores relevantes, a favor e a desfavor, a ausência de antecedentes criminais registados, as suas condições pessoais, sociais e profissionais, estando integrado.
O recorrente alude à sua juventude pretendendo com isso uma diminuição da pena aplicada, não fazendo, porém, qualquer referência ao Regime Penal Especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos previsto no DL n.º 401/82 de 23/09.
Ora, deve, dizer-se que, mesmo que se equacionasse aqui a aplicação desse regime, sempre a pena concretamente aplicada se deveria manter, face aos contornos da situação em análise, designadamente face à gravidade dos factos e à personalidade demonstrada pelo arguido na respectiva prática. Aliás, idêntico caminho foi seguido no Ac. do STJ de 20/10/2021, proferido no processo nº 1441/19.5PELSB.S1 em que foi relatora, Ana Barata Brito.
Ademais, denota-se da medida concreta da pena de prisão aplicada que a juventude do arguido também foi ponderada pelo Tribunal recorrido, considerando que se mostra bem próximo do limite mínimo, apenas 6 meses acima.
Quanto ao regime de prova sempre se dirá não assistir razão ao recorrente, porquanto a sua aplicação é sempre ordenada por ser obrigatória, atenta a idade do arguido, nos termos do n.º3 do art.º 53.º, do CP, não sendo possível a sua eliminação, como pretendido.
Ponderando todos os factores supra e os mencionados pelo recorrente, entendemos ser justa, proporcional e adequada a medida concreta da pena de prisão fixada.
Ademais, quer na operação pela pena de prisão quer na determinação concreta da pena não se vislumbram quaisquer incorreções ou distorções no processo aplicativo ou na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena, nem foram desrespeitados os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, nem foram violadas regras da experiência sendo que a quantificação não se revela desproporcionada
Assim, não se vê, na ponderação e conjugação dos vários factores e princípios que concorrem na operação de determinação concreta da pena, que o tribunal recorrido tenha revelado desproporção ou inadequação ou incorrido em violação de qualquer preceito, nomeadamente, os art.ºs 40.º, 70.º e 71.º do CP.
Pelo que, consideramos adequada e proporcional a condenação, mantendo-se a condenação realizada pelo Tribunal a quo.
Concorda-se assim, na totalidade com a decisão recorrida, porquanto não violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nomeadamente os previstos nos artigos 40.º,50.º, 53.º, 70.º e 71.º,do código penal nem o art.º 18.º, da CRP.
Em síntese, o recurso improcede totalmente porque nenhuma censura nos merece o acórdão recorrido.
*
VDISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam as Juízas Desembargadoras que integram a 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
-Negar provimento ao recurso, interposto pelo arguido AA, confirmando, a sentença condenatória recorrida.
*
Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, termos dos art.ºs 513º n. º1 e 514.º, do Código de Processo Penal, 8º/9.º do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro) e Tabela III anexa a este último diploma.
Notifique.
*
Lisboa, 06/11/2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Paula Guedes
Rosa Maria Cardoso Saraiva
_______________________________________________________
1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995
2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção.