Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10365/2006-6
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE
Sumário: - Mediante o instrumento jurídico consignado nos arts. 100º e segs. do Código de Notariado, denominado de justificação notarial, permite-se a quem não detenha um título justificativo da titularidade do direito que consiga registar a sua aquisição em seu nome, designadamente, mediante a prova de uma situação de posse conducente à aquisição por usucapião.
- Neste tipo de acção, uma vez impugnada a justificação notarial, recai sobre o Réu o ónus de provar a existência dos factos que serviram de base à referida justificação e que lhe possibilitaram o acesso a um título bastante para a inscrição do direito a seu favor no registo predial.
- Porém, é de simples apreciação negativa a acção em que a A. pede que se considere sem efeito a escritura de justificação notarial por os RR. não serem donos do terreno a que aludem, pois com tal pedido o que a A. pretende é atingir o direito de propriedade que os RR. invocam e não a própria escritura.
(ALG)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. E e marido, O, instauraram a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra M
Pedindo que fosse:
- declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação notarial lavrada em 13-11-00, exarada a fls. 9 a 10 verso do Livro de Notas 5-C, do Cartório Notarial do Porto Moniz, por ser falsa no seu conteúdo e não corresponder a verdade;
- ordenado o cancelamento de todo e qualquer registo que tivesse sido efectuado na CRP de Santa Cruz com base na referida escritura de justificação falsa, nomeadamente, a descrição 03277/29122000, da freguesia do Caniço e a inscrição AP 07/29122000-G1;
- o Réu condenado a reconhecer que o prédio urbano falsamente justificado não é sua pertença e, em consequência, a abrir mão do mesmo e a restituí-lo;
- declarado que o denominado prédio urbano identificado como tal na dita escritura, constitui uma benfeitoria urbana, construída sobre terreno de outrem.

Para tanto, alegaram, em suma, que o Réu declarou na referida escritura pública que era proprietário do prédio urbano ao Sítio da Tendeira, na freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, inscrito na matriz sob o art. 2 872°, por o ter adquirido por usucapião.
Contudo, esse prédio pertence aos AA. e constitui uma benfeitoria urbana por si construída sobre o prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o art. 50°, da secção "YY" e com autorização do anterior proprietário deste prédio, Manuel Correia Lica, pelo que, tendo os AA. procedido a essa construção em 1984, aí viveram até 1992, como seus únicos donos e possuidores.
Acontece, porém, que o Réu, munido de uma procuração que lhe foi conferida pelos AA. para vender o prédio em causa, outorgou a escritura falsa aqui impugnada, sendo certo que o prédio sobre o qual foi construída a referida benfeitoria nunca foi adquirido pelo Réu ao seu legítimo proprietário.

2. Citado veio o Réu contestar a acção, por excepção e por impugnação.
- Por excepção, invocou a ilegitimidade dos Autores, com fundamento no facto de não terem qualquer utilidade no prosseguimento da causa, e por impugnação, alegou que adquiriu verbalmente, em 1976, o prédio sobre o qual os Autores edificaram as benfeitorias reivindicadas e que autorizou aqueles a proceder a esta construção em 1984, tendo, no entanto, sido o anterior proprietário do referido prédio a assinar a autorização dada aos Autores porquanto era o proprietário inscrito no registo predial.
- Mais alegou que, após a morte dos anteriores proprietários, os seus descendentes, conhecedores da venda verbal acima referida, outorgaram nova procuração concedendo ao Réu poderes para vender o prédio atrás referido, venda essa que podia ser feita a si próprio.
Por fim invoca que foi ele quem emprestou o dinheiro para que os Autores construíssem as benfeitorias por estes reivindicados, tendo permitido aos AA. que aí habitassem, tal como foi ele quem lhes emprestou o dinheiro necessário para que comprassem a casa onde hoje vivem.
Conclui pedindo a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, no pagamento de uma indemnização no valor de € 1.250, com fundamento nos factos atrás referidos.

3. Notificados da contestação apresentação pelo Réu, os Autores replicaram, pugnando pela improcedência da excepção invocada e pela improcedência do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

4. Foi proferido despacho saneador, onde foi conhecida a excepção invocada pelo Réu e julgada improcedente, tendo-se procedido ainda à selecção da matéria de facto, com a fixação dos factos assentes e elaboração da base instrutória.

5. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido.

6. Inconformados os AA. Apelaram, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:
a) Ficou provado nas alíneas G) a O) dos factos provados na sentença que o anterior proprietário do terreno com nome semelhante ao do Recorrido, também chamado M, em 27-4-84, deu autorização ao Recorrente, O, para "dividir uma parcela de terreno do seu prédio com área de 150m2, para construir uma pequena moradia, sem pagamento de qualquer renda" -veja-se documento de fls. 25.
b) Ficou também provado que foram os Recorrentes que construíram o prédio urbano constante da escritura de justificação impugnada, no ano de 1982, tendo habitado o prédio nas condições expostas nas als. I) a O) dos factos provados.
c) Perante tais factos provados, resulta indiscutível que o título de propriedade justificado, por usucapião, pelo Recorrido é falso, sendo que tal falsidade ou inveracidade são causa de nulidade do registo e do título nos termos do art. 16° do CRP.
d) O título e o seu registo são nulos, nos termos do art. 287° do CC e 16° do CRP, por falsidade do mesmo, sendo tal vício insanável e com efeitos retroactivos, obrigando à restituição do prestado nos termos da norma do nº 1 do art. 289° do C.C.
e) A decisão julgando improcedente a pretensão dos Recorrentes violou as normas do art. 286° e do nº 1 do art. 289°, todos do CC; a norma da al. a) do art. 16° e a norma do nº 1 do art. 17°, ambas do CRP.
f) Por outro lado, a sentença recorrida ao validar o título justificado violou as normas dos arts. 1287° e 1296° do CC, na medida em que não foram provados factos constitutivos da aquisição da propriedade por parte do Recorrido a título de usucapião.
g) Não existe abuso de direito por parte dos Recorrentes, antes pelo contrário, como se indicia pela documentação junta aos presentes autos nesta peça recursória.
h) Em face das violações das normas em questão, a decisão deverá ser revogada e substituída por outra declarando procedente a pretensão dos Recorrentes, a nulidade do título e do registo sobre o prédio urbano aqui em questão a favor do Recorrido e ordenar o cancelamento de todo e qualquer registo constante da descrição 03277/29122000, da freguesia do Caniço, efectuado na CRP de Santa Cruz, condenando este a restituí-lo àqueles como benfeitoria construída em terreno de outrem.

7. Foram apresentadas contra-alegações.

8. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.

II – Os Factos:

- Mostram-se provados os seguintes factos:
A. Por escritura pública de justificação notarial, outorgada no dia 13-11-00, no Cart. Not. de Porto Moniz, M, declarou que:
* É dono e legítimo possuidor com exclusão de outrem do prédio urbano ao Sítio da Tendeira, na freguesia do Caniço, composto de um piso coberto a laje de cimento, com superfície coberta de trinta e dois metros quadrados e um logradouro de trinta metros quadrados, a confrontar do Norte com João de Nóbrega, Sul com a rocha mar, Leste com António de Nóbrega Chícharo e Oeste com o Caminho dos Quarteirões, inscrito na matriz sob o art. 2.872°, em nome do justificante (...), não descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz.
* Que o identificado prédio foi construído sobre terra que o justificante comprou no ano de 1976 por contrato verbal com M, não tendo até ao momento o justificante documento algum que lhe permita fazer prova do seu direito de propriedade.
* Que no ano de 1984, o justificante construiu o prédio aqui identificado, tendo vindo a habitá-lo, conservando-o e pagando os respectivos impostos com ânimo de quem exercita direito próprio, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, ignorando lesar direito alheio, ininterruptamente e ostensivamente, numa actuação correspondente em toda a linha com o exercício do direito de propriedade.
* Que dadas as enunciadas características de tal posse, o justificante adquiriu o direito de propriedade do aludido prédio por usucapião.
* Mais disse o justificante que a aquisição do prédio rústico e a construção do prédio urbano foram por ele adquiridos no estado de solteiro, tendo vindo a casar posteriormente com I, no regime da comunhão de adquiridos, da qual se encontra divorciado, pelo que o prédio justificado constitui um bem próprio do justificante.
* Declarou ainda o justificante que o prédio aqui identificado não é o prédio que consta da certidão passada pela CRP de Santa Cruz, que a mesma certifica que não encontrou nenhum prédio em igual situação, composição e confrontações, mas que na via das dúvidas passou a certidão de um prédio rústico que nada tem a ver com o prédio em questão.
* J…, M… disseram que, por serem verdadeiras, confirmavam as declarações do justificante (doc. a fls. 12 a 16) – al. A);
B. O prédio referido em A) foi descrito na CRP de Santa Cruz sob o nº 3.277 e a aquisição foi inscrita a favor do R. M (doc. a fls. 18 e 29) - al. B);
C. Por escritura pública, outorgada no dia 4-7-90, outorgada no Cart. Not. de Santa Cruz, João e mulher (...), declararam que constituem procurador M (...), a quem conferem poderes especiais para vender o prédio rústico o prédio rústico situado na Tendeira, referida freguesia do Caniço, inscrito na matriz sob o art. 50°, da secção YY, pelo preço e condições que achar mais convenientes, assinar escrituras, promover quaisquer actos de registo predial provisórios ou definitivos, seus averbamentos ou cancelamentos, e que o nomeado procurador fica desde já autorizado a, querendo, celebrar negócio consigo mesmo, podendo comprar, o já identificado prédio rústico (doc. a fls. 84 e 85) - al. C);
D. Por escritura pública, outorgada no dia 12-8-91, outorgada no Cart. Not. de Santa Cruz, O e consorte, E (...) declararam que constituem procurador M (...), a quem, com a faculdade de substabelecer, conferem os mais amplos poderes, para vender, mediante preços e condições que melhor achar convenientes, podendo o procurador ser o próprio comprador, fazendo negócio consigo mesmo, um prédio urbano situado na Tendeira, referida freguesia do Caniço, inscrito na matriz sob o art. 2.872°, (1) assinar contrato de promessa da venda, outorgar a assinar a escritura definitiva, recebendo o preço e dando a respectiva quitação (...). “Disseram os constituintes que este mandato é conferido no interesse do próprio e, assim, irrevogáveis (...)” (cf. doc. a fls. 22) - al. D);
E. O prédio rústico, sito ao Sítio da Tendeira, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, com área de 3.270 m2 (...), inscrito na matriz sob o art. 50°, da secção YY, está descrito na CRP de Santa Cruz sob o nº 321/170887 (cf.. doc. a fls. 82) - al. E);
F. A aquisição do prédio descrito em E) foi inscrita na CRP de Santa Cruz, em 25-7-90, em nome de João e consorte (doc. a fls. 83) - al. F);
G. Por documento escrito, assinado por M, datado de 27-4-84, aquele declarou que concede a devida autorização a O (...) para sobre o seu prédio rústico que possui no Sítio da Tendeira de Baixo, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz (...), para dividir uma parcela de terreno do referido prédio com área de 150 m2, para construir uma pequena moradia com o requerimento aprovado pela Câmara Municipal do concelho de Santa Cruz, sem pagamento de qualquer renda (cf.. doc. a fls. 25) - al. G);
H. Em 1982, os AA. construíram sobre parte do prédio rústico descrito em E), uma moradia composta de um piso coberto de laje de cimento, com superfície coberta de 32 m2 e um logradouro de 30 m2 que foi inscrita na matriz sob o art. 2.872° - resp. ao art. 2°;
I. E desde essa data, passaram a residir no referido prédio até 1992, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de modo contínuo e ininterrupto, agindo de modo correspondente ao exercício do direito de propriedade na íntima convicção e intenção de serem seus únicos e donos - resp. aos arts. 3º a 7°;
J. Os AA. instalaram na moradia referida em H) água e luz e pagavam o respectivo serviço - resp. ao art. 10°;
K. Após a construção referida em H), o R. M adquiriu o prédio descrito em E) por contrato verbal, a Manuel e mulher - resp. ao art. 11°;
L. Em consequência deste acordo, os descendentes dos referidos Manuel e mulher, outorgaram a procuração referida em D) - resp. ao art. 12°;
M. O R. Manuel emprestou dinheiro aos AA. para que estes comprassem o prédio onde presentemente habitam, tendo estes entregue àquele, em pagamento de parte desse empréstimo, a construção referida em H), prescindindo de todos os direitos que podiam eventualmente reclamar sobre a mesma - resp. aos arts. 15° e 17°;
N. Quando os AA. deixaram o prédio descrito em A), o R. M pediu-lhes e estes aceitaram assinar o doc. junto a fls. 78 - (Tal documento está datado de 12 de Maio de 1993 e tem o seguinte conteúdo:
“Nós, abaixo assinado, O… e consorte E…, para os devidos efeitos, declaramos que recebemos do Sr. M… o dinheiro referente ao prédio urbano, na Tendeira, inscrito na matriz predial sob ao artigo nº 2.872. Estamos, assim, satisfeitos e confirmamos que o Sr. M… nada nos deve”) - resp. ao art. 18°;
O. O doc. junto a fls. 78 foi outorgado pelos AA. para fazer prova do dinheiro que lhes foi entregue e de como não lhes assistia quaisquer direitos sobre o prédio descrito em A) - resp. ao art. 19°.

III – O Direito:

A) - Questão Prévia:
1. Os Recorrentes juntaram aos autos, com as alegações, dois documentos, sendo um uma cópia de um Acórdão do STJ, datado de 25 de Outubro de 2005, já transitado, e exarado em recurso de revista no âmbito de um processo em que figuram como partes os AA., ora Recorrentes, enquanto embargantes numa execução que lhes foi movida pelo aqui Réu M, e no qual nos é dado conta que o embargado/Réu recebeu diversas quantias pagas pelo embargante, que aí se encontram descritas nos factos provados (e inalterados), bem como a cópia de uma petição inicial instaurada pelo A./Recorrente O contra o R. M, de uma acção declarativa sob a forma ordinária, na qual é feita, ao longo de tal articulado, referência a um empréstimo que teria sido concedido pelo Réu ao Autor – cf. fls. 359 e segs.
Justificam a junção dos documentos com o facto de considerarem que tais elementos documentais se mostram necessários em face da decisão proferida pela 1ª instância, que não valorou devidamente os factos provados, a tal ponto que culminou com a prolação de uma decisão contrária àquela que deveria ter sido proferida em face do direito aplicável.

Contra tal junção insurge-se o Recorrido alegando que os documentos são extemporâneos e não relevam para a decisão da causa.
Porém, sem razão.

2. Desde logo porque a lei permite, nos termos dos seus arts. 524º e 706º, ambos do CPC, que sejam apresentados documentos conjuntamente com as alegações sempre que essa junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, não obstante o princípio geral de que os documentos devem ser apresentados com os articulados destinados a fazer prova dos respectivos fundamentos da acção ou da defesa.
Resulta igualmente da conjugação dos normativos 523º com o art. 543º do C PC que, juntos aos autos tais documentos, só devem os mesmos ser mandados retirar se forem impertinentes, extemporâneos ou desnecessários para o julgamento da causa.
Ora, não se colocando o problema da tempestividade da sua junção e afigurando-se, pela análise dos mesmos, que se pode ter uma ideia mais clara sobre as questões subjacentes ao presente litígio, o que contribui, decididamente, para melhor esclarecimento da verdade material, não vislumbramos razões jurídicas válidas que apontem no sentido da sua recusa.
Embora a parte já pudesse dispor desses elementos em fase anterior, a verdade é que se compreende que, em face da sentença proferida, haja agora interesse na sua apresentação, em sede de recurso.
Razão pela qual se admite a sua junção.

B) Da Acção:
1. Mediante a presente acção os AA. pretendem impugnar judicialmente a justificação notarial promovida pelo Réu relativamente a um imóvel e que lhe permitiu estabelecer o trato sucessivo, nos termos dos arts. 100º e segs. do Código de Notariado.
Mediante tal instrumento jurídico, denominado de justificação notarial, permite-se a quem não detenha um título justificativo da titularidade do direito que consiga registar a sua aquisição em seu nome, designadamente, mediante a prova de uma situação de posse conducente à aquisição por usucapião.

2. Porém, atentas as circunstâncias que rodeiam a escritura de justificação notarial, assente fundamentalmente em factos alegados pelo justificante e em meios de prova que ele mesmo apresenta, os efeitos jurídicos que dela se podem extrair podem ser evitados em casos de procedência da acção de impugnação da justificação intentada por algum interessado que se considere prejudicado, nos termos do art. 109º-A daquele diploma.
Trata-se, no caso, de uma acção de simples apreciação negativa, como se decidiu, por exemplo, nos Acs. do STJ, de 26-4-94, CJSTJ, tomo II, pág. 68, e de 15-6-94, CJSTJ, tomo II, pág. 140.

Da qualificação de tal acção decorre que, uma vez impugnada a justificação notarial, recai sobre o Réu o ónus de provar a existência dos factos que serviram de base à referida justificação e que, assim, lhe possibilitaram o acesso a um título bastante para a inscrição do direito a seu favor no registo predial.

3. No caso concreto, como se disso, foi invocada pelo Réu a figura da usucapião, tendo o mesmo declarado, perante o notário, que era dono do prédio urbano construído em 1984 sobre terra que o justificante comprara, verbalmente, em 1976, aos seus legítimos proprietários, tendo vindo desde então a habitá-lo como quem exercitava um direito próprio, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, ignorando lesar direito alheio, ininterruptamente e ostensivamente, numa actuação correspondente em toda a linha com o exercício do direito de propriedade.
Para o efeito, trouxe o Réu perante o Notário 3 testemunhas que confirmaram esses factos.
Todavia, como se reconhece na sentença Apelada, e decorre claramente da decisão da matéria de facto, não se apuraram todos os factos conducentes à aquisição do direito de propriedade por usucapião por parte do Réu. Sendo certo que a situação fáctica apurada é bem diversa daquela que foi invocada na justificação notarial.
Por isso mesmo, o Mº Juiz a quo, pretendeu encontrar para o litígio uma diversa solução, agora assente no instituto do abuso de direito.
Cremos, no entanto, que nada legitima, no caso concreto, que se enverede por tal solução.

4. Com efeito, atento o quadro jurídico em que está envolvida a presente acção, a sua natureza e o seu objectivo fundamental, assim como as referidas regras sobre a distribuição do ónus da prova, não é legítimo encarar esta acção com a liberdade de qualificação jurídica que acaso seria possível se se tratasse de uma acção em que ab initio se discutisse a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio.
Estamos no âmbito de uma acção de impugnação da justificação notarial requerida no âmbito do registo predial em que o seu resultado pode ser imediatamente impugnado pelos interessados que se arroguem a titularidade de direitos que sejam incompatíveis com o alcance que o justificante pretenda retirar da escritura de justificação.
Nesta circunstância, o que os AA. pretendem é que se considere sem efeito a escritura de justificação notarial por o Réu não ser o dono do prédio em causa.
Daí que o STJ considere que se está no campo das acções de simples apreciação negativa, porquanto, através deste tipo de acções visa-se apenas a obtenção de declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, juridicamente relevante.(2)
Assim sendo, a classificação da acção como de simples apreciação negativa

Sendo a presente acção instaurada ao abrigo do art. 109º-A do Cód. Notariado, o seu resultado está condicionado pelo objectivo de tal acção, isto é, a impugnação dos factos que serviram de base à justificação notarial, invertendo-se o ónus da prova que passa a recair sobre o réu justificante.

Se bem que não esteja, em geral, vedada a integração oficiosa dos factos na melhor qualificação jurídica, acautelado que seja o cumprimento do princípio do contraditório, e, nesta medida, embora não esteja vedado ao Tribunal o recurso, ainda que oficioso, à figura do abuso de direito, para impedir os efeitos que decorreriam de uma resposta assente exclusivamente no direito objectivo, no caso concreto não se afigura legítimo o recurso a tal figura para, na prática, superar a falta de prova, que incumbia aos RR., dos factos que oportunamente alegaram para conseguir um título capaz de servir para registar a aquisição do direito de propriedade em seu nome.

No caso concreto, para além de os RR. nem sequer invocarem, para sua defesa, o mencionado instituto jurídico, a ilegitimidade da solução decretada na sentença mais se manifesta quando resulta patente que a escritura de justificação judicial, datada de Novembro de 2000, foi lavrada numa ocasião em que as partes nesta acção se encontravam em litígio revelado pela dedução, em 1998, de embargos à execução que os ora RR. haviam movido contra os ora AA.
Por isso mesmo, em tais circunstâncias, a invocação, por parte dos RR. do direito de propriedade sobre o prédio deveria ter sido veiculada através de uma acção com processo comum, tomando a iniciativa de pedir, em acção intentada contra os ora AA. o reconhecimento do direito de propriedade, em vez de seguir a via mais fácil para si, mas menos segura para os seus intentos, de obtenção, através de um modo ínvio, de um título de natureza meramente administrativa capaz de servir de base ao registo predial.
A simples leitura da contestação revela que, mesmo na versão dos RR., as circunstâncias que rodearam a sua posição face ao prédio é bem diversa daquela que, na sua simplicidade, emerge dos factos que declararam perante o Notário.

5. Assim, considerando procedente a impugnação da justificação notarial, por falta de prova, por parte dos RR., dos factos conducentes à afirmada aquisição por via da usucapião, resta ordenar o cancelamento do registo que com base em tal escritura foi conseguido.

Tendo em conta que o objecto da presente acção se esgota na impugnação da justificação notarial e no cancelamento do registo, não se verificam condições para apreciar sequer a viabilidade dos demais pedidos formulados pelos AA. e ora Apelantes.

IV – Decisão:
- Termos em que se acorda em julgar procedente a Apelação, revogando-se a sentença recorrida que se substitui pela declaração de procedência da impugnação da escritura de justificação notarial datada de 13-11-00, determinando-se ainda o cancelamento do registo predial efectuado ao abrigo de tal escritura.
- Custas da Apelação a cargo dos Apelados.
Lisboa, 1/2/2007
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
Fátima Galante
Ferreira Lopes
___________________
1 Sendo este o prédio que se encontra referido supra na alínea A).
2 Neste sentido cf. Acórdão do STJ., de 26/04/94, in CJSTJ, T. II, pág. 68.