Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18473/18.3T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS REQUERENTES DA INSOLVÊNCIA
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO INTERPOSTA POR TERCEIRO AO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
TRIBUNAL COMPETENTE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Compete aos juízos cíveis e não aos juízos de comércio o conhecimento de uma acção em que um terceiro – que não é credor da insolvente – demanda os requerentes da insolvência, alegando a falta de fundamento para o accionamento dessa acção especial, e em que invoca a responsabilidade por danos patrimoniais por si sofridos em consequência dessa declaração e danos consistentes na ofensa do seu crédito e bom nome, nos termos do artigos 483º e 484º do Código Civil.
II - O artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), constituindo uma norma especial e restritiva do âmbito da responsabilidade civil extracontratual, apenas abrange as entidades concretamente envolvidas, como partes no processo especial de insolvência (a devedor/insolvente e os seus credores), não tendo a disposição legal vocação ou alcance para comprimir direitos indemnizatórios atribuíveis a terceiros que não são parte nesse mesmo processo de insolvência, e a quem nem sequer assistiria legitimidade para neles intervir.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção).

I – RELATÓRIO.
Instaurou A a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, contra B [ Condomínio do Prédio sito na Rua Embaixador Martins Janeira ] ; entidade que exerce a respectiva administração, ou seja, a C  [ …. – Administração de Condomínio, Unipessoal, Lda. ] , e contra alguns condóminos do mesmo, que identifica.
Alegou essencialmente:
É o único accionista e administrador da sociedade anónima D [ …. – Gestão de Investimentos Imobiliários, S.A.], a qual é proprietária de um apartamento no Condomínio Réu.
Os RR. deliberaram em assembleia de condóminos instaurar uma acção destinada à declaração de insolvência da sociedade D, com fundamento em alegadas dívidas relativas a prestações do condomínio em falta e na existência de penhoras realizadas por credores desta sociedade.
Tais dívidas eram inexistentes, uma vez que o A. era credor do condomínio.
A sociedade D veio efectivamente a ser declarada insolvente.
O A., enquanto accionista único e administrador da sociedade D, sofreu pessoalmente diversos prejuízos com a declaração da insolvência referida, incluindo a circunstância de ter sido executado pela Autoridade Tributária, bem como danos de natureza não patrimonial (acabou por entrar em estado de depressão e ansiedade).
Conclui pedindo a condenação dos Réus no pagamento das seguintes verbas:
- € 1.164,00, por conta de despesas judiciais directamente causadas pelo pedido de insolvência e outros a apurar em liquidação;
- € 400.000,00, por conta de danos causados com a paralização da sociedade D durante os últimos quatro anos, acrescida do valor correspondente a € 125.000,00 por ano até à sentença;
- € 10.000,00, por conta dos problemas de saúde causados ao A., nomeadamente depressão, ansiedade e insónias, desde a data do conhecimento da sociedade D, em Abril de 2014;
- € 25.000,00, por conta do declínio que o A. sofreu no seu nivel de vida e das suas filhas e humilhação sofrida com falta de liquidez para despesas correntes do dia a dia e para o seu lazer e das suas filhas, incluindo a necessidade de vender bens pessoais para fazer face às mesmas;
- € 50.000,00 por conta de danos de imagem sofridos pelo A., enquanto empresário e gestor, com a declaração de insolvência da sociedade Eurocrédito
- € 1.708,33, por despesas que pagou por conta do Réu e de que nunca foi ressarcido e que este deve agora ser condenado a pagar.
Citados, os RR, apresentaram contestação, suscitando diversas excepções, incluindo a da incompetência material do presente tribunal, com fundamento no disposto no artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) que obriga que a presente acção seja intentada junto dos tribunais de comércio (artigo 128º, nº 1, alínea a) e nº 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Respondeu o A. pugnando pela improcedência da excepção de incompetência material uma vez que, no seu entender, o artigo 22º do CIRE não é aplicável à situação sub judice.
Em 18 de Maio de 2020, o juiz a quo proferiu a seguinte decisão:
“Da competência material
A veio intentar a presente acção de responsabilidade contratual pedindo, a final, a condenação dos Réus no valor total €487.872,33, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, causados pela dedução do processo de insolvência da empresa D, da qual é administrador único, e que culminou no desfecho da mesma e na sua cessação da sua actividade, o que trouxe inúmeros prejuízos ao A.
Intenta a acção contra o Condomínio e vários condóminos do mesmo condomínio onde a empresa D era proprietária de uma fracção, empresa esta que, por não pagar as quotas de condomínio, foi pelo mesmo requerida a sua insolvência, que veio a ser decretada, por sentença já transitada em julgado, no processo n.° 1545/12.5TBCTX-C, Juízo de Comércio de Santarém-J2, do tribunal judicial de Santarém.
Mais alega que a insolvência é infundada e que quer o R. condomínio quer os condóminos Réus sabiam que não havia fundamento para tal, por inexistirem as dívidas que alegaram no referido processo, por estarem sido pagas.
Em sede de Contestação, os RRs invocam várias excepções ao direito do A., sendo a primeira a da competência material deste tribunal para conhecer do mérito desta acção.
Alegam que a sentença que decretou a insolvência da Eurocrédito já transitou em julgado, e o A fundamenta os seus pedidos por entender que não houve fundamento para que a D fosse declarado insolvente, pois os factos invocados pelo condomínio são falsos.
Ora, tais pedidos têm que ser analisados no processo de insolvência e não autonomamente, uma vez que o artigo 22 do CIRE, assim o prescreve sendo a competência para conhecer de tal pretensão dos juízos do comércio.
O A veio responder, alegando que como não é credor e devedor da insolvência pode intentar a presente acção, ao abrigo do artigo 483° do CC, sendo que o artigo 22 do CIRE se circunscreve aos casos de dolo, pelo que o artigo 483° do CC, aplica-se para o caso de responsabilidade nos casos de mera culpa.
Apreciemos.
Analisando o pedido de indemnização do A. verifica-se que o mesmo reside no pedido infundado da declaração de insolvência da empresa D, do qual era administrador, insolvência que já transitou em julgado e dos danos que de tal situação para si advieram, vindo na causa de pedir alegar factos que demonstram o pagamento da dívida que originou o pedido de insolvência pedido pelo aqui pelo 1 Réu e dolo dos demais RRs ao pedirem insolvência da referida empresa.
Preceitua o Art.22° do CIRE, que «A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo».
“De acordo com os ensinamentos de Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Vol. I, pág.142 tal disposição legal trata-se de um preceito novo, sem precedentes no Direito pregresso.
Como defendem tais autores, é sabido que, em regra, a dedução infundada do pedido de insolvência gera, normalmente, prejuízos. Por outro lado, o art. 456°, do C.P.C., prevê o regime regra nesta matéria, estabelecendo que a parte que litigar de má fé será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir, desde que tenha agido com dolo ou culpa grave, designadamente, quando tenha deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (cfr. a al.a), do n°2, do citado art. 456°). A especificidade do art. 22°, do CIRE, reside em excluir a responsabilidade em caso de mera culpa, já que apenas a prevê para a situação em que tenha ocorrido dolo por parte do requerente. No entanto, este artigo nada refere acerca do exercício da responsabilidade aí prevista e, assim, do pedido de reparação dos prejuízos sofridos pelo lesado.
Por isso que, segundo os autores citados, se justifica o recurso ao regime geral da lei processual, tanto mais que, por força do disposto no art. 17° do CIRE, o processo de insolvência se rege pelo C.P.C., em tudo o que não contrarie as disposições daquele Código.
Daí que entendam que haverá que atender ao disposto no art. 456°, n°1, do C.P.C., de onde resulta que o pedido indemnizatório deve ser apresentado no próprio processo, sendo certo que o tribunal onde este se encontra pendente é o que está em condições de melhor apreciar os requisitos da responsabilidade em questão, nomeadamente, o da conduta dolosa do requerente.
Essencial é, como acrescentam aqueles os autores, que o lesado tenha oportunidade processual para deduzir o pedido indemnizatório no próprio processo, como acontece no caso de a acção ser desencadeada por um credor, já que o insolvente é chamado a pronunciar-se e pode, então, requerer a indemnização por danos sofridos, se o pedido de declaração de insolvência é infundado e a actuação do requerente é dolosa. (Já no caso de o processo ser aberto por apresentação do devedor, entendem os mesmos autores que, uma vez que os credores só são chamados a intervir após a declaração de insolvência, no caso de indeferimento do pedido não têm a possibilidade de exercer o direito ao ressarcimento no próprio processo, pelo que, não há outro meio senão admitir que podem agir em processo próprio.) parenteses nosso.
Continuam os mesmos autores “qualquer credor pode exercer o direito à indemnização por prejuízos sofridos com a dedução infundada do pedido de insolvência, quer nos casos em que há apresentação do devedor, quer ainda naqueles em que a instância é promovida por iniciativa de outro legitimado. Não obstante, para que a responsabilidade possa ser exercida é necessário que concorram os seus pressupostos comuns, com a especialidade que decorre da exigência da actuação dolosa do lesante. Como também acontece em geral, e à falta de qualquer estatuição especial sobre a matéria, o ónus da prova dos factos que consubstanciam os pressupostos da responsabilidade impende sobre o lesado, visto que eles são constitutivos do direito à indemnização“(LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, JOÃO LABAREDA, CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS ANOTADO - REIMPRESSÃO, 2009, p. 146; vd., igualmente, M. Carneiro da Frada, A Responsabilidade dos Administradores da Insolvência, in ROA, ano 66, II, 2006, págs. 656-668).- vd Ac. da Relação de Coimbra, n.° 817/11.0T2AVR.C1, N° Convencional: JTRC Do Exmo Juiz Desembargador CARVALHO MARTINS, Data do Acordão:15-05-2012, in www.dgsi.pt.
Assim e do art. 22° do do CIRE - «[a] dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo» - decorre que foi opção do legislador excluir a responsabilidade processual civil do credor nos casos em que este agiu negligentemente quando instaurou processo de insolvência, afastando-se, pois, do regime regra enunciado no art. 456° da lei processual civil, em que se sanciona a conduta dolosa e a conduta gravemente negligente - neste sentido vd- 14/11.1TBPST-A.L1-1, Relator:ISABEL FONSECA, Data do Acórdão 23-4-2013, in www.dgsi.pt.
Aqui chegados, conclui-se que o A, “como qualquer credor pode exercer o direito à indemnização por prejuízos sofridos com a dedução infundada do pedido de insolvência, quer nos casos em que há apresentação do devedor, quer ainda naqueles em que a instância é promovida por iniciativa de outro legitimado, desde que faça prova do dolo do lesante, ónus de prova que a si incumbe.”
Acresce que tal pedido tem que ser deduzido no processo de insolvência pendente por ser o que está em condições de melhor apreciar os requisitos da responsabilidade em questão, nomeadamente, o da conduta dolosa do requerente.
In casu, analisando a causa de pedir da petição inicial, verifica-se que o A peticiona a indemnização contra os RRs, por alegado pedido de insolvência infundado que veio dar origem ao processo 1545/12.5TBCTX-C, que correu termos no Juízo de Comércio de Santarém - J2, do tribunal judicial de Santarém, e que culminou na sentença que decretou a Insolvência da Eurocrédito, que já transitou em julgado, alegando a existência de dolo directo dos RRS (ponto g) e artigos 105 a 113 e 165 a 172, 179 da petição inicial).
Assim e face a tal alegação terá que o fazer, nos termos e para os efeitos do artigo 22° do CIRE, como incidente de instância no próprio processo de insolvência, sendo o juízo de comércio onde corre o referido processo de insolvência, o materialmente competente para apreciar a sua pretensão.
No que concerne ao pedido de condenação como litigante de ma fé, o mesmo está dependente do facto de deduzir pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, falta que só pode ser verificada na apreciação do pedido deduzido pelo A., a ser processado como incidente no processo de insolvência. Assim, os presentes autos não prosseguem para apreciação desse pedido.
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, e de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 22° do CIRE e artigos 96°, 97°, 98°, 99°, 100° do CPC, julgo o presente tribunal materialmente incompetente para tramitar e julgar a presente acção e, em consequência, absolvo os Réus da Instância, atento o teor dos artigos 576°, 577 al. a, 578° todos do CPC”.
Apresentou o A. recurso contra esta decisão, o qual foi admitido como de apelação.
Juntas as competentes alegações, formulou a apelante as seguintes conclusões:
1 - O A demandou os RR enquanto sócio único da sociedade D..
2 - O A demonstrou como foi lesado pela actuação dos RR, conducente à declaração de insolvência da referida sociedade.
3 - O A não é sujeito processual no processo de insolvência em causa.
4 - Não se confunde com a insolvente, apesar de ser o sócio único da mesma.
5 - E não é credor da mesma, não viu qualquer crédito reconhecido.
6 - O artigo 22° do CIRE autonomiza a responsabilidade de dois tipos de sujeitos processuais na insolvência face ao regime da litigância de má-fé.
7 - Nomeadamente do devedor apresentante, e do credor requerente.
8 - E essa mesma responsabilidade perante devedor/insolvente e credor (com créditos reconhecidos) no processo de insolvência.
9 - O A demandou o R condomínio, que efectivamente é (formalmente) credor requerente (apesar de nada lhe ser devido pela insolvente).
10 - Mas demandou outros RR, que não são também credores requerentes, no processo de insolvência.
11 - Isto quanto a legitimidade passiva, e à luz do artigo 22° do CIRE, numa pretensa intenção de demandar os RR no processo de insolvência, perante o Tribunal do Comércio de Santarém.
12 - Já quanto à legitimidade activa, o A não é, como já insistentemente dito, credor, nem devedor, pelo que, à luz do mesmo artigo 22° do CIRE, não tem legitimidade activa para demandar os RR no processo de insolvência (parte deles não é também credor!).
13 - Pelo contrário, o A, não sendo credor nem sujeito processual no processo de insolvência, se pretende, como pretende, demandar os RR, pelo pedido de declaração de insolvência, directa da parte de um deles, e indirecta, de parte dos demais, da sociedade D à insolvência, deve fazê-lo nos termos gerais do artigo 483° do Código Civil.
14 - E, assim sendo, e atentas as regras de ordenamento judiciário aplicáveis, deve fazê-lo perante um Tribunal (Central) Cível.
Contra-alegou o Réu, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
Apresentou as seguintes conclusões:
1. As conclusões do recorrente sob A, B, C, D e E), são descabidas, pelo que não iremos debatê-las, porque estando em causa uma decisão que ordena a incompetência do tribunal recorrido para tramitar os vertentes autos, tais conclusões versam sobre temática que nada tem a ver com a questão em discussão.
2. O autor baseia o seu pedido diretamente no art.° 483.° do Cód. Civil, quando é sabido que a lei especial (art.° 22.° do CIRE) prevalece sobre a lei geral (critério da especialidade), como decorre do n.° 3 do art.° 7.° do Cód. Civil.
3. Este critério da especialidade que impede o próprio devedor/insolvente de recorrer directamente a lei geral, art.° 483.° do Cód. Civil, mais lato que o regime sancionatório especial (art.° 22.° do CIRE), por abranger tanto o "dolo" como a "mera culpa", ao passo que o art.° 22.° do CIRE, menos lato, abrange apenas o "dolo", por maioria de razão deverá impedir que um terceiro (que não é credor, nem sujeito processual no processo de insolvência, segundo a conclusão O, do recorrente) possa beneficiar de um regime mais favorável que aquele que a lei concede ao próprio principal interessado: o devedor insolvente.
4. O pedido de indemnização com fundamento em dedução infundada de declaração de insolvência, plasmado no art.° 22.° do CIRE, constitui um incidente de instância e deve ser apresentado no próprio processo de insolvência, pelo que a competência é dos juízos de comércio.
5. Termos em que se deve manter a douta sentença recorrida, assim se fazendo a costumada justiça!
II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
É a seguinte a única questão jurídica que importa dilucidar:
Competência material para o conhecimento de uma acção em que o autor, accionista único e administrador da sociedade anónima que foi declarada insolvente, pretende obter a condenação dos RR. a pagarem-lhe uma indemnização relativa a diversos prejuízos causados na sua esfera jurídica, decorrentes da declaração de insolvência da sociedade que aqueles requereram. Âmbito de aplicação do artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Passemos à sua análise:
A decisão recorrida não pode, a nosso ver, manter-se.
Referem Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa 2008, a página 144, em anotação ao artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE):
“Estamos aqui em presença de um preceito novo, sem precedentes no direito pregresso.
(...) Preocupa-se a lei em regular especialmente as consequências da dedução infundada de pedido de insolvência, decerto consciente de que, por via de regra, tal procedimento é susceptível de gerar – e normalmente gerará – prejuízos. Mas afasta-se do regime regra e abranda as desvantagens que comummente decorreriam para o requerente”.
Escreve a este propósito Alexandre Soveral Martins in “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina 2015, a página 75:
“A dedução do pedido de declaração de insolvência ou a apresentação à insolvência só devem ter lugar quando existam fundamentos para tal. O devedor não deve apresentar-se à insolvência apenas para obter alguma protecção perante os credores e estes não devem requerer a insolvência daquele apenas como meio de pressão para conseguirem o pagamento dos seus créditos.
Por isso mesmo é que o artigo 22º determina que a indevida apresentação à insolvência ou a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência dão origem, em caso de dolo, a responsabilidade civil pelos prejuízos causados, consoante os casos, aos credores ou ao devedor”.
Vejamos:
O artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) reveste a natureza de norma especial no âmbito do regime geral de responsabilidade civil extracontratual, delimitando, no plano substantivo, a atribuição do direito de indemnização ao lesado pelos prejuízos causados em consequência da declaração de insolvência infundadamente solicitada em juízo, restringindo-a às actuações dolosas por parte do lesante e tendo por referência os sujeitos a quem assistirá legitimidade para intervir, como partes, nesse mesmo processo.
Em paralelo, entendeu o legislador que o processo de insolvência seria o espaço próprio e adequado para aí ter lugar a discussão quanto à responsabilidade que eventualmente adviesse de um pedido de declaração de insolvência premeditadamente infundado, em que fossem prejudicados o devedor ou algum dos credores, uma vez que o respectivo julgador teria à sua inteira disposição todos os elementos necessários para apreciar do fundamento da responsabilidade pedida.
(sobre este ponto, vide Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa 2008, a página 145).
No fundo, está em causa uma situação de exercício abusivo do direito de acção, estruturalmente semelhante à figura da litigância de má fé, tal como se encontra prevista no artigo 542º do Código de Processo Civil, no qual se prevê no respectivo nº 2, alínea a) “Diz-se litigante de má fé que, como dolo ou negligência grave, (...) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”.
De todo o modo, afigura-se-nos que o legislador limitou o âmbito de aplicação desse mesmo preceito de natureza especial – o artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) – às situações em que o apresentante à insolvência (o devedor) causa, por essa via, prejuízos aos seus credores ou, inversamente, aos casos em que é o credor, requerente da insolvente, que, actuando dolosamente, causa prejuízos à devedora (requerida no processo de insolvência).
São estes os sujeitos que a norma referencia e que se encontrem submetidos, no âmbito do contexto específico de um processo especial de insolvência, a um regime restritivo em termos de responsabilidade civil extracontratual (reservando-a para as situações de actuação dolosa).
É esta a esfera particular de abrangência da norma.
Não resulta, em termos interpretativos, dos seus elementos literal, histórico, sistemático ou teleológico, que o preceito – de natureza especial - tenha virtualidade para aplicar-se a outros sujeitos que não sejam parte no processo especial de insolvência.
Concretamente, a respectiva previsão não contempla as situações em que é um terceiro que – fundada ou infundadamente – pretende responsabilizar o credor pelo facto de haver promovido ilicitamente a declaração de insolvência de determinada sociedade, provocando por isso prejuízos à sua própria esfera jurídica (e não à da insolvente), sendo certo que se trata de alguém que é juridicamente alheio ao processo de insolvência em questão.
É precisamente o que sucede na situação sub judice.
Independentemente da viabilidade jurídica ou mesmo da eventual improcedência, por ausência de fundamento legal bastante, dos pedidos apresentados pelo A. A, o certo é que as pretensões jurídicas que deduziu têm a ver com a afectação directa e imediata da sua esfera jurídica pessoal – e não com a da sociedade declarada insolvente -, por via da actuação profundamente ilícita (na sua perspectiva) dos RR., requerentes da acção especial de insolvência respectiva.
Os pedidos que formulou tanto se encontram respaldados no artigo 483º do Código Civil, como no artigo 484º do mesmo diploma legal (ofensa do crédito ou do bom nome).
Ora, o artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), constituindo uma norma especial e restritiva do âmbito da responsabilidade civil extracontratual, apenas abrange as entidades concretamente envolvidas, como partes no processo especial de insolvência (a devedor/insolvente e os seus credores).
Não tem a disposição legal vocação nem alcance para comprimir direitos indemnizatórios atribuíveis a terceiros que não são parte nesse mesmo processo de insolvência, e a quem nem sequer assistiria legitimidade para neles intervir.
Pelo que o artigo 22º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) não tem aplicação na situação sub judice.
(sobre esta temática vide o excelente estudo da autoria do Juiz Desembargador, Dr. Aristides Rodrigues de Almeida, publicado in “Revista Electrónica de Direito”, onde se refere: “Se o artigo 22º do CIRE pode ter uma relação de especialidade com qualquer outra norma jurídica relativa ao regime de responsabilidade civil, será certamente com o artigo 483º do Código Civil, e não com o artigo 484º, pelo que aquela norma não afasta a aplicação desta nos casos em que a factualidade permita preencher, em simultâneo, a estatuição de ambas.
Por isso, se o requerimento com o pedido infundado de insolvência contiver a alegação de factos (falsos) capazes de prejudicar o crédito ou bom-nome do requerido, este poderá exigir ao requerente a indemnização dos prejuízos sofridos, com fundamento directo na previsão do artigo 484º. O que terá a enorme vantagem de permitir a responsabilização do credor requerente mesmo no caso em que tenha actuado com mera culpa, não sendo necessário demonstrar o dolo exigido no artigo 22º do CIRE”)
Logo, a competência para o conhecimento dos autos, atenta a qualidade do demandante, a natureza dos factos que constituem a causa de pedir e a expressão concreta dos pedidos sequencialmente deduzidos contra os Réus, cabe inegavelmente aos juízos centrais cíveis da comarca de Lisboa e não aos juízos de comércio.
A apelação procede.
O que se decide, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos.
IV - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação interposta, revogando-se a decisão recorrida, face à competência em razão da matéria dos juízos centrais cíveis para o conhecimento da presente causa, determinando o normal prosseguimento dos autos.
Custas pelos apelados, atenta a oposição deduzida.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2020.
Luís Espírito Santo.
Isabel Salgado.
Conceição Saavedra.