Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3449/22.4T8VFX.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: PEAP
ACORDO DE PAGAMENTOS
ENCERRAMENTO DAS NEGOCIAÇÕES
DECURSO DO PRAZO SEM APROVAÇÃO DO ACORDO DE PAGAMENTOS
HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–Das disposições conjugadas dos arts. 222-º-D n.º 5 e 222.º F do CIRE resulta que a aprovação do acordo de pagamento deve ser sujeita a votação até ao fim do prazo das negociações, e apenas o acordo aprovado, por unanimidade ou maioria, deve ser remetido ao tribunal, que o poderá homologar ou recusar a sua homologação.

II–Por ser assim, nenhum sentido faz, sendo incoerente com todo o sistema, a menção à publicação do acordo para votação no prazo de 10 dias, a que alude o n.º 2 daquele art.º 222.º F, razão pela qual, com vista à unicidade do sistema, se impõe, à luz do art.º 9.º do CC, que se faça então uma interpretação ab-rogante deste preceito, implicando que após a remessa do acordo de pagamento ao tribunal, já previamente votado e aprovado, se possa e deva apenas verificar os pressupostos de que depende a sua homologação ou recusa.

III–Donde, concluído o prazo das negociações sem a aprovação de acordo de pagamento, logo, sem a sua votação, impõe-se ao tribunal encerrar o processo negocial, ao abrigo do n.º 1 do artigo 222.º-G do CIRE, e, caso assim não ocorra, e o acordo venha a ser votado mais tarde, o caráter imperativo da limitação temporal das negociações, obstará à sua homologação, por violação não negligenciável de regras procedimentais, à luz do art.º 215.º do CIRE.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I-/ Relatório:


A (….) e B (…), casados entre si e residentes na Rua (….), intentaram, nos termos do art.º 222.º-A do CIRE, o presente processo especial para acordo de pagamento.
Foi nomeado Administrador Judicial Provisório, que juntou a lista provisória de créditos, publicada no Portal Citius em 06/02/2023.
Em 14/04/2023, os devedores e o Sr. AJP prorrogaram por mais um mês o prazo para conclusão das negociações.
Em 15/05/2023, os devedores, em requerimento apresentado nos autos, juntaram aos mesmos um “Acordo de Pagamento”, ali mencionando que se deveria dar início ao período de votação previsto no CIRE.
Em 22/05/2023 foi aquele acordo publicitado no portal Citius, onde se exarou que «Foram concluídas as negociações de acordo de pagamento sem observância do disposto no nº 1 do art.º 222º-F do CIRE, ficando todos os interessados advertidos que tal acordo foi junto ao processo, correndo desde a presente publicação, o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual pode ser solicitada a não homologação do plano (nº 2 do art.º 222º-F do CIRE)».

Em 29/05/2023, a credora SD …, S.A. veio aos autos requerer que se determinasse o encerramento do processo negocial, por se encontrar ultrapassado o prazo para conclusão das negociações, sem que tivesse sido alcançado um acordo de pagamento, pois que o documento apresentado nos autos pelos devedores, no fim do prazo prorrogado, consubstanciava apenas e tão só uma “proposta de pagamento”, sem prévia aprovação dos credores, submetida subsequentemente a votação, quando esta deveria ter ocorrido dentro do prazo das negociações, não devendo assim o Tribunal publicitar o aludido documento como “acordo de pagamento”, por não o ser. E, a ser assim, defendia, encontrava-se verificado o fundamento para julgar encerrado o processado negocial, ao abrigo do n.º 1 do artigo 222.º-G do CIRE, na parte em que este dispõe que, caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D sem se alcançar um acordo de pagamento, o processo negocial é encerrado. Mais alegava que manifestara o seu sentido de voto, desfavorável, à aprovação da proposta de Acordo de Pagamento apresentada pelos Devedores, junto do Exmo. Sr. Administrador Judicial Provisório.

Os devedores responderam que não lograram alcançar a aprovação unânime do acordo de pagamento apresentado junto de todos os credores, pelo que tal apresentação ocorreu a coberto do n.º 2 do art.º 222.º- F do CIRE, devendo tal acordo de pagamento ser colocado à votação, como foi.

Houve impugnações à lista provisória, que vieram a ser decididas por despacho de 01/06/2023.

Em 30/06/2023, o Sr. AJP apresentou o resultado da votação, considerando aprovado o acordo de pagamento ao abrigo da al. b) do n.º 3 do art.º 222.º-F, do CIRE.

Por despacho proferido em 13/07/2023, foi indeferido o requerido pela credora SD ..., S.A, em 29/05/2023, e, em sede de sentença, também proferida nessa mesma data, foi decidido que:
«Homologo, por sentença, o acordo de pagamento referente a A e B (..), casados entre si, residentes na Rua (…).
A presente decisão vincula todos os demais credores, mesmo que não hajam participado nas negociações – art. 222.º-F, n.º 8, do CIRE.
Custas pelos Requerentes com taxa de justiça reduzida a ¼ - arts. 222.º-F, n.º 9 e 302.º nº 1, ambos do CIRE.
Registe, notifique e publicite – art. 222.º-F, n.º 8, do CIRE.
(…)».

Não se conformando com o teor de tal sentença, dela apelou a credora SD …, S.A., formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
I.– Por douta sentença, proferida, pelo Tribunal a quo, em 27/07/2023 (Ref.ª Citius 157618456), foi o Acordo de Pagamento referente a A e B, homologado.
II.– Em 28/10/2022, apresentaram-se os devedores, A e B, a Processo Especial para Acordo de Pagamento.
III.– Procedeu, o Exmo. Sr. Administrador Judicial Provisório, nos termos do artigo 222.º-D n.º 3 do CIRE, à junção aos autos da lista provisória de créditos, no dia 06/03/2023, a qual foi, no mesmo dia, publicada no Portal Citius (Publicidade dos processos especiais de revitalização, dos processos especiais para acordo de pagamento, dos processos extraordinários de viabilização de empresas e dos processos de insolvência).
IV.– Neste seguimento, decorrido o prazo de cinco dias úteis, para impugnação da referida lista, iniciou-se, em 14/02/2023, o prazo de dois meses para conclusão das negociações (cfr. artigo 222.º-D n.º 5 CIRE).
V.– Antes de findo o período de dois meses de negociações, foi, em 14/04/2023, junto aos presentes autos, acordo de prorrogação do período de negociações, por um mês, com vista à conclusão das negociações iniciadas e aprovação do Acordo de Pagamento.
VI.– Com efeito, a 15/05/2023, foi, pelos Devedores, apresentado nos autos “Acordo de Pagamento”, para os termos e efeitos previstos no CIRE.
VII.– Por fim, a 22/05/2023, foi publicado no Portal Citius, “ANÚNCIO - Publicidade do Acordo de Pagamento”.
VIII.– O “Acordo de Pagamento” apresentado aos autos, pelos Devedores, não consubstanciou propriamente um acordo, mas antes uma proposta.
IX.– Isto porque, o mesmo, à data da apresentação em juízo, não havia sido submetido a qualquer votação para aprovação por parte dos Credores.
X.– Resulta do n.º 5 do artigo 222.º-D do CIRE, que o devedor e os credores dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, a contar do fim do prazo para a impugnação da lista provisória de créditos, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês.
XI.– Por sua vez, resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 222.º-F do CIRE, que o acordo de pagamento entre o devedor e os seus credores deve ser alcançado dentro do prazo das negociações.
XII.– É pressuposto basilar que as negociações sejam concluídas com a aprovação de acordo de pagamento, seja ela unânime, ou não.
XIII.– Tendo em conta que só poderá existir aprovação, se existir uma votação que lhe esteja associada, de forma prévia, facto que decorre do próprio significado da palavra, parece-nos ser cristalino que este prazo é um prazo para negociar e para se alcançar um acordo de pagamento.
XIV.– Assim, visto que a aprovação depende do voto dos credores, segue-se daqui que, é dentro do prazo das negociações que deve ser feita a votação do acordo.
XV.– In casu, o prazo das negociações terminou no dia 15/05/2023.
XVI.– Tendo o supra em consideração, bem como o facto de este prazo ter terminado sem que tenha sido alcançado um Acordo aprovado pelos credores dos Devedores, há que deduzir-se que o prazo das negociações foi concluído sem a aprovação de Acordo de Pagamento.
XVII.– Acresce que, andou mal o douto Tribunal a quo, na medida em que procedeu à publicação, no Portal Citius, do “ANÚNCIO - Publicidade do Acordo de Pagamento”, advertindo da junção do Plano, e dando, deste modo, por iniciado o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual pode ser solicitada a não homologação do plano, nos termos do n.º 2 do art.º 222.º-F do CIRE, não tendo atendido ao facto de que o “Acordo de Pagamento” apresentado pelos Devedores não passava de uma mera proposta, a qual não havia, sequer, sido submetida à aprovação dos Credores.
XVIII.– Assim, tendo em conta que, nos termos supra aduzidos, é apenas o Acordo (aprovado pelos Credores) que deve ser remetido ao Tribunal e publicitado por força do n.º 2 do mencionado artigo 222.º-F do CIRE, não faz qualquer sentido que seja publicitado, como o foi nos autos, o “Acordo de Pagamento” que os Devedores apresentaram, sem que o mesmo tivesse sido alvo de qualquer prévia aprovação por parte dos seus credores.
XIX.– E, a ser assim, parece-nos encontrar-se verificado o fundamento para julgar encerrado o processado negocial, ao abrigo do n.º 1 do artigo 222.º-G do CIRE, na parte em que este dispõe que, caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D sem se alcançar um acordo de pagamento, o processo negocial é encerrado.
XX.– Termos em que deveria o Tribunal a quo ter, desde logo, determinado o encerramento do processo negocial, na medida em que se mostrava ultrapassado o prazo para conclusão das negociações, sem que tivesse sido alcançado um acordo de pagamento.
XXI.– No concernente ao Acordo de Pagamento apresentado pelos Devedores, o mesmo não deveria ter sido alvo de homologação, por violar o princípio da igualdade entre os Credores e por colocar a Credora numa posição previsivelmente menos favorável do que a sua inexistência, o que foi oportunamente pugnado e requerido pelo ora Recorrente nos presentes autos, e que não foi tido sequer em consideração pelo douto Tribunal a quo.
XXII.– Por um lado, o plano apresentado pelos Devedores não respeita o princípio da igualdade entre credores, sendo claramente desfavorável e penalizador para os credores comuns não bancários, como é o caso da ora Recorrente.
XXIII.– Ora, o plano aprovado deve obedecer ao princípio da igualdade entre credores, o que se traduz num tratamento de igualdade entre todos eles, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas (e proporcionais aos sacrifícios impostos), tais como a diversa natureza dos mesmos - artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.
XXIV.– No caso concreto, o plano demonstra uma diferenciação entre os créditos garantidos e privilegiados em relação aos comuns, e, também, entre os créditos comuns entre si, atenta a distinção, por parte dos Devedores, entre créditos comuns bancários e créditos comuns não bancários.
XXV.– Num primeiro momento, dir-se-á que o tratamento dos credores não se afigura igualitário, já que o mesmo afeta de forma desigual as diversas categorias de credores e, ainda, impõe a vontade do grande credor aos demais, sem um motivo que se afigure atendível.
XXVI.– Por um lado, o credor garantido (o qual não veio reclamar os seus créditos, e, portanto, nem participou nas negociações, nem manifestou o seu sentido de voto), vê as condições do seu crédito mantidas na íntegra, não sendo afetado por qualquer período de carência nem reestruturação, no montante ou na duração, das prestações periódicas.
XXVII.– Por outro lado, o credor privilegiado (e cujo crédito representa, sozinho, 51,48% da globalidade dos créditos reconhecidos), vê, igualmente, o seu crédito previsivelmente saldado em 150 prestações mensais e sucessivas (cujo valor de cada um ascenderá, pelo menos, ao montante abismal de 2.244,04€).
XXVIII.– Por fim, veem os credores comuns, os quais votaram todos (à exceção da Credora S… , que se absteve) CONTRA o plano de pagamentos, as condições dos seus créditos “fixadas” com um período de carência de dois anos e com a liquidação de 50% do crédito reconhecido em 126 prestações mensais e sucessivas (mais de 10 anos!!) com prestação bullet de 50% na última prestação.
XXIX.– Diz-se, ainda, mais: os Devedores, sem qualquer motivo aparente, distinguem os créditos comuns bancários dos não bancários, estabelecendo, para os primeiros, o vencimento, sobre os seus créditos, de juros de mora (à taxa Euribor 3M + Spread 2,5%), vendo-se prejudicados, desta forma, os credores comuns não bancários.
XXX.– Ora, se por um lado há um Credor que aceitou (por ter votado favoravelmente), por que motivo fosse, as condições apresentadas para a liquidação das responsabilidades vencidas dos Devedores, a verdade é que todos os outros há, que votaram contra, e cujos créditos não são de valor insignificante, situando-se todos em valores que se estendem entre os dezanove mil euros e os duzentos e trinta mil euros.
XXXI.– Mais, estes credores terão de esperar cerca de 12 anos até verem os seus créditos, se o forem, liquidados, o que, se traduz, num segundo incomensurável sacrifício para estes, os quais veem já os seus créditos em incumprimento há diversos anos.
XXXII.– Não se vislumbra, do plano, quais as razões que levam a este tratamento diferenciado.
XXXIII.– Pelo que, o plano apresentado viola claramente o princípio da igualdade entre os credores, alicerce basilar e estruturante na regulação do Processo Especial para Acordo de Pagamento, previsto no artigo 194.º do CIRE, bem como o princípio da proporcionalidade que lhe está ínsito.
XXXIV.– Nestes termos, deveria o douto Tribunal a quo ter optado pela não homologação do Acordo de Pagamento, porquanto do mesmo consta uma violação inequívoca e não negligenciável das regras procedimentais, máxime o princípio da igualdade entre os credores.
XXXV.– A ora Recorrente votou desfavoravelmente o acordo de pagamentos, e requereu a não homologação do mesmo, uma vez que tal acordo a coloca numa posição previsivelmente menos favorável do que a sua inexistência, nos termos e para os efeitos do artigo 216.º n.º 1, alínea a) do CIRE.
XXXVI.– Pois que, previamente à instauração, por parte dos Devedores, da presente ação, corria termos a Execução n.º 3112/18.0T8LRS, no Juízo de Execução de Loures - Juiz 1, em que é Exequente a ora Credora, e no âmbito da qual via, a mesma, o seu crédito a ser gradualmente ressarcido, mediante, designadamente, penhora de rendimentos periódicos.
XXXVII.– Encontrava-se, igualmente, penhorado à ordem de tal processo, o imóvel propriedade dos Devedores.
XXXVIII.– Acresce que, contrariamente ao alegado por estes, o imóvel da sua propriedade tem um valor comercial bastante superior ao valor patrimonial tributário.
XXXIX.– Sendo que, inclusivamente, à data da prolação do Despacho de Nomeação de Administrador Judicial Provisório, encontrava-se o referido imóvel em venda, na plataforma E-Leilões, pelo valor base de 350.000,00€.
XL.– Assim, previsivelmente, com a venda do imóvel, seriam liquidados, integralmente, tanto o crédito garantido, como o crédito detido pela ora Recorrente.
XLI.– Assim sendo, o Acordo de Pagamento apresentado pelos Devedores coloca a Credora numa posição previsivelmente menos favorável do que a sua inexistência.
XLII.– Até uma situação de Insolvência, com a inerente liquidação de património e cessão de rendimentos à Fidúcia, seria eventualmente mais benéfica para os Credores, pois veriam, com toda a certeza, pelo menos parcialmente e rateadamente, os seus créditos liquidados numa perspetiva de curto prazo.
XLIII.– Face a tudo o que foi acima explanado, deveria o Tribunal a quo ter optado pela não homologação do Acordo de Pagamentos apresentado pelos Devedores, o que não fez.
XLIV.– De referir, ainda, que, à data da apresentação, pela ora Recorrente, do requerimento para não homologação do acordo de pagamentos, não havia ainda sido proferida a sentença homologatória ora em crise, sendo-lhe, portanto, prévio.
XLV.– Sendo que, além de não ter sido o requerimento supramencionado alvo de qualquer apreciação, é mencionada, na fundamentação da sentença recorrida que não foi solicitada a não homologação do plano por um interessado, o que se afigura falso.
XLVI.– Assim, deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado acerca do requerimento apresentado pela ora Recorrente, bem como, tê-lo levando em conta aquando da prolação da sentença homologatória do Acordo de Pagamento.
XLVII.– Face ao exposto, é claro o incorrimento da sentença recorrida em nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil, a qual desde já se argui.
XLVIII.– Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que declare o encerramento do processo negocial, na medida em que se mostrava ultrapassado o prazo para conclusão das negociações, sem que tivesse sido alcançado um acordo de pagamento ou, alternativamente, que ordene a não homologação do Acordo de Pagamento apresentado pelos Devedores, por violar o princípio da igualdade entre os Credores e por colocar a Credora numa posição previsivelmente menos favorável do que a sua inexistência».

Em contra-alegações, os devedores pugnaram pela improcedência da apelação e manutenção da decisão recorrida.

Em despacho de admissão de recurso, o tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade invocada em alegações, entendendo inexistir na sentença proferida qualquer vício de omissão de pronúncia, porquanto a mesma foi proferida em 13/07/2023 e o requerimento apresentado pela recorrente, a solicitar a não homologação do plano de pagamento, foi apresentado em 17/07/2023.

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, após prolação de despacho da Relatora, foram colhidos os vistos legais.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, conforme decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em aferir:
           
(i)- Do decurso e esgotamento do prazo para a conclusão das negociações;
(ii)- Caso assim se não entenda, da alegada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia;
(iii)- Da não homologação do Acordo de Pagamento por alegada violação do princípio da igualdade entre credores.

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III-/ Fundamentação de facto:
Para além dos factos acima relatados com interesse para a decisão a proferir, na decisão em recurso, foi considerado que:

1–Concluídas as negociações foi votado o plano apresentado pela devedora, nos seguintes termos:
a.- Total de créditos relacionados € 653.880, 28.
b.- Votaram credores que representam créditos no valor de € 652.880, 28 representativo de 99, 85% dos créditos com direito a voto.
c.- Aprovaram o plano créditos 51,48 % (€ 336 606, 08);
d.- Votos contra o plano, 48,37% (€ 316 274, 20);
e.- Abstenções 0, 15% (€ 1000, 00);
f.- Créditos subordinados 0.

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IV-/ Do mérito do recurso:

(i)-Do prazo para a conclusão das negociações (conclusões recursivas I a XX):
Principia a recorrente as suas alegações de recurso, por, mais uma vez, o que já havia feito nos autos, alegar que o plano de pagamento apresentado nos autos pelos devedores em 15/05/2023 de mera proposta se tratava, e não um efetivo acordo votado pelos credores. Assim, não tendo aquele acordo sido alcançado dentro do prazo das negociações deveria o tribunal recorrido ter encerrado o processo, o que, naturalmente, inviabilizava a sua homologação.

Vejamos então.

Com a necessidade de restringir o PER a empresários, o Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30/06 veio introduzir no CIRE, aditando ao mesmo os artigos 222.º-A e ss., um novo instrumento de negociação no âmbito da insolvência das pessoas singulares, designado como Plano Especial para Acordo de Pagamento (PEAP). No Preâmbulo do projeto de alteração foi consignado que “apostou-se na credibilização do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação, reforçou-se a transparência e a credibilização do regime e desenhou-se um PER dirigido às empresas, sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes”, dali decorrendo que se procurou que o PEAP fosse um procedimento muito similar ao PER, mas aplicável apenas aos devedores que não são empresas.
As normas que regulam esse instituto, e que a este recurso importam, são então as seguintes:
O art.º 222.º-D, com a epígrafe «Tramitação subsequente» que nos diz no seu n.º 5” «(….) - Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o administrador judicial provisório nomeado e o devedor, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius».
E o art.º 222.º F do CIRE, com a epígrafe «Conclusão das negociações com a aprovação de acordo de pagamento», que assim dispõe «1 - Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa do mesmo pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal acordo de pagamento, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos. 2 - Concluindo-se as negociações com a aprovação de acordo de pagamento, sem observância do disposto no número anterior, o devedor remete-o ao tribunal, sendo de imediato publicado anúncio no portal Citius advertindo da junção do plano e correndo desde a publicação o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações».
E finalmente o n.º 1 do art.º 222.º-G regula, sob a epígrafe, «Conclusão do processo negocial sem a aprovação de acordo de pagamento», que «- Caso o devedor ou as maiorias dos credores previstas no n.º 3 do artigo anterior concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível por meios eletrónicos, e publicá-lo no portal Citius»

Se atendermos estritamente ao assim estabelecido, e da sua conjugação, temos então que o acordo é remetido ao tribunal, após estarem concluídas as negociações (para o que a lei faculta o prazo de dois, máximo, três meses, o que, se for ultrapassado, impõe o encerramento do processo negocial) e após a sua aprovação pelos credores, por unanimidade ou por maioria. Dependendo a aprovação do voto dos credores, não vemos então como se possa ultrapassar a conclusão de que é dentro do prazo das negociações que deve ser feita a votação desse acordo.
Donde, e em resumo (como, de resto, afirmamos já no acórdão por nós relatado em 03/12/2020, publicado na dgsi) temos como certo que a aprovação do acordo de pagamento terá de ser sujeita a votação até ao fim do prazo das negociações, e apenas o acordo aprovado deve ser remetido ao tribunal por força do consagrado na essência do normativizado no aludido art.º 222.º F do CIRE.

Estamos conscientes que tal questão não é líquida e que a leitura do n.º 2 da norma inserta no art.º 222.º F do CIRE, pela ambiguidade do seu texto e redação, é alvo de várias críticas e deveria ser aclarada.

A este propósito, Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. II, págs. 407 e 408) diz-nos que «Não deixa de ser estranho que o regime preveja duas aprovações do acordo de pagamento: uma, durante as negociações («Concluindo-se as negociações com a aprovação de acordo de pagamento, sem observância do disposto no número anterior (…)»); outra, após as negociações («e correndo desde a publicação o prazo de 10 dias»).
No entanto, parece estar subjacente a este regime legal a ideia de que o devedor irá remeter a tribunal e sujeitar a votação um acordo de pagamento que tenha obtido aprovação durante as negociações, embora sem terem sido cumpridas as exigências do art.º 222.º F, 1. Se as negociações não permitem dar por provado um acordo de pagamento e o devedor, ainda assim, remete um «acordo» a tribunal, é muito provável que a votação não permita atingir alguma das maiorias previstas no art.º 222.º F,3.
De qualquer modo, impunha-se uma clarificação do regime.
A abertura do prazo para solicitar a não homologação em simultâneo com o início do decurso do prazo para votação é criticável porque ainda não é sequer possível dizer se o acordo será ou não aprovado.
O trabalho realizado para fundamentar o pedido de não homologação pode ser desnecessário se o acordo não se considerar aprovado».
Por seu lado, para Catarina Serra (em “Lições de Direito da Insolvência”, edição 2019 Almedina, p. 588, nota 906) «Esta norma é um dos exemplos mais flagrantes dos resultados/acidentes decorrentes da “costura” legislativa (…). Transpondo-se sem grande atenção parte da norma do art. 17º F nº 3 para a norma do art. 222º F nº 2, esta além de se referir indevidamente a “plano”, refere-se ao início do prazo de votação quando o pressuposto desta norma é que o acordo de pagamento já tenha sido aprovado. A única possibilidade de atribuir sentido ao preceito é interpretá-lo à luz do regime anterior do PER em que, pura e simplesmente, não se definia prazo para a votação (não havia possibilidade de junção de nova versão de plano nem havia por isso prazo que corresse desde a publicação do anúncio da junção ou não junção) e se entendia que ela tinha lugar no decurso (e até ao final) do prazo previsto para as negociações. A única parte realmente proveitosa do art. 222º F nº 2 é a determinação de que, concluindo-se as negociações com aprovação de acordo de pagamento sem unanimidade, o devedor remete o acordo ao tribunal para homologação ou recusa dela, sendo, pois, a única que deve e pode ser aproveitada. Tal como antes, mesmo que a lei o não diga expressamente, deve continuar a admitir-se que, no decurso da votação e até ao final do prazo das negociações, os credores solicitem a não homologação do acordo nos termos e para os efeitos dos arts. 215º e 216º.» (sublinhado nosso).
Em por ser assim, no Acórdão do TRP de 11/07/2018, disponível na dgsi, relatado por Fátima Andrade, cujos argumentos subscrevemos já em anterior acórdão, e aqui reiteramos, diz-se que «Ora, sendo pressuposto da remessa a tribunal do acordo de pagamento (e não plano, conforme consta na letra da lei deste segundo segmento em análise) a prévia sujeição do mesmo a votação, resulta a nosso ver incompreensível e contrário à lógica do regime definido, a menção (no caso de votação sem unanimidade) à publicação do acordo de pagamento (e não plano) para votação no prazo de 10 dias a contar de tal publicação, bem como a possibilidade de em tal prazo poder qualquer interessado solicitar a não homologação desse mesmo acordo de pagamento nos termos e para efeitos do artigo 215º e 216º. Pois que o acordo de pagamento já foi votado.
Havendo apenas, após observância do nº 3 do artigo 222º-F que proceder à sua homologação ou recusar a mesma, nos termos previstos no nº 5 deste mesmo artigo.
Assim entende-se necessária uma interpretação ab-rogante [3] deste artigo 222º-F nº 2 ao abrigo do artigo 9º do CC, por forma a conferir coerência ao regime instituído no PEAP, nomeadamente no que respeita à votação do acordo do pagamento que sempre ocorrerá em momento prévio à sua remessa a tribunal. Implicando que após a remessa cabe apenas ao tribunal verificar os pressupostos de que depende a sua homologação ou recusar a mesma». (sublinhado nosso).
Também o acórdão de 13/07/2020, do TRC, relatado por Emídio Santos e igualmente disponível na dgsi, vai no sentido do que aqui dizemos «I – O n.º 5 do artigo 222-º-D do CIRE é de interpretar no sentido de que o prazo aí previsto é um prazo para a conclusão das negociações e para o devedor e os credores alcançarem a aprovação de um acordo de pagamento. II – O n.º 2 do artigo 222.º-F do CIRE labora no pressuposto de que a aprovação do acordo de pagamento nele prevista foi alcançada dentro do prazo de conclusão das negociações. (….)».

Não desconhecemos a jurisprudência afirmada em sentido contrário ao aqui defendido, nomeadamente o Acórdão da RLG de 20/09/2018, relatado por Maria Luísa Ramos, disponível na dgsi, assim sumariado «Nos termos do nº2 do artº 222.º-F do CIRE, no âmbito do processo judicial Especial para Acordo de Pagamento, publicado anúncio no portal Citius advertindo da junção do Plano o prazo de votação de 10 dias corre desde a publicação, contando-se para além do prazo das negociações e não dentro do prazo destas», que foi alvo da decisão de oposição de julgados no acórdão do STJ, a que, de resto, faz apelo a decisão recorrida, datado de 08/02/22, relatado por António Barateiro Martins e também publicado na dgsi, onde foi entendido que «No caso das negociações (no PEAP) não se concluírem com a aprovação unânime do acordo de pagamento, a votação do acordo de pagamento ocorre após a publicação no portal Citius do anúncio da junção do acordo de pagamento, nos 10 dias seguintes a tal publicação, ou seja, em tal hipótese, a votação do acordo de pagamento (o prazo ou termo até ao qual pode ser votado o acordo de pagamento) não tem que ocorrer até ao fim do prazo das negociações (não tem que ocorrer na limitação temporal das negociações)».
Salvo o devido respeito por esse diferente entendimento, certo é que o mesmo não é de moldes a fazer-nos inverter a nossa posição.
Não obstante as incongruências do sistema, certo é que do texto legal e com apoio no mesmo, no que se refere ao PEAP, não podemos hoje afirmar que existe também, como no regime do PER (dado que com a alteração resultante do Decreto-Lei n.º 84/2019, de 28/06 que modificou a redação do artigo 17.º-F do CIRE, dúvidas não há que hoje o prazo de votação acresce ao prazo de negociações), uma clara distinção e um efetivo desligamento entre as negociações, e o prazo para as mesmas, e o acordo e prazo para a sua votação. Se foi essa a intenção do legislador de 2017, não nos parece que a mesma tenha tido reflexo no texto da lei, pois que o atual art.º 222.º-F do CIRE, pelo menos em parte, reproduz, na sua essência, o regime do PER previsto no artº. 17.º na sua anterior redação (prévia ao Decreto-Lei n.º 84/2019). Da redação dos n.ºs 1 e 2 do art.º. 222.º-F do CIRE resulta claramente uma aprovação prévia do acordo de pagamento, e, como tal, com ela implícita, uma votação desse acordo (pois só assim saberemos se foi aprovado). Por isso mesmo, quando em total falta de rigor, se diz que a partir da publicação do “plano” por anúncio no portal Citius corre o prazo de votação de 10 dias, quando o próprio normativo obriga a uma aprovação prévia do acordo para remessa a tribunal, estamos em crer que a norma é, em si própria, e na sua essência, contraditória.
Como dissemos já, o regime hoje previsto para o PEAP corresponde, em linhas gerais, ao antigo regime do PER, onde se defendia então que a votação do plano integrava a fase das negociações. Hoje, no PEAP, continua a distinguir-se entre a conclusão das negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento e sem essa unanimidade na aprovação, dependendo sempre a remessa ao tribunal da sua prévia aprovação e, consequentemente, não vemos outra possibilidade, da sua votação (parece-nos evidente, reitera-se, que só poderá existir aprovação se existir uma votação que lhe esteja associada). É isto que decorre do texto da lei, não fazendo assim sentido, quanto a nós, a alusão feita no n.º 2 do art.º 222.º F a nova votação, pois que certamente não foi intenção do legislador que existissem duas votações para o mesmo acordo, que devem, de resto, ser alvo de documento elaborado pelo AI, tal como resulta do n.º 4 do aludido art.º 222.º F. Não podemos assim acompanhar a argumentação de que existe hoje no PEAP uma diferenciação entre negociação e votação/aprovação do acordo de pagamento, restringindo-se o prazo perentório previsto no n.º 5 do art.º 222.º-D à negociação em sentido estrito. Sufragamos, pois, o entendimento vertido por Catarina Serra na obra acima citada, quando interpreta o n.º 2 do art.º 222.º-F à luz do regime anterior do PER, em que o prazo de votação tinha lugar até ao final do prazo previsto para as negociações. Só assim ficará harmonioso o sistema, determinando que até ao final das negociações os credores votem o acordo com vista à sua aprovação, por unanimidade ou maioria, votação que, expressa em documento, é depois remetida ao tribunal para que o mesmo possa homologar, ou não, o dito acordo.
Na interpretação daquele normativo, à luz do art.º 9.º do CC, embora a letra da lei não seja o critério único de interpretação, pois que deverá reconstituir-se, a partir dos textos, o pensamento legislativo e as circunstâncias em que a lei foi elaborada, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e presumindo-se sempre que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, sabendo exprimir o seu pensamento de forma adequada, tendo por certo que o pressuposto da remessa a tribunal do acordo de pagamento, como resulta da letra da lei, desde logo da sua epígrafe, é a prévia sujeição do mesmo a votação, nenhum sentido faz a alusão à votação no prazo de 10 dias após a publicação. No texto de Jorge Leal (Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), algumas considerações) é referido que «Ponto é, tal como no PER, que seja aprovado, dentro do prazo legal de negociação, um acordo de pagamento a submeter, posteriormente e nos termos ora regulados, à votação (n.ºs 2 e 4 do art. 222.º-F). Tudo sem prejuízo da possibilidade da supra referida aprovação unânime do acordo de pagamento, a qual, esta sim, deverá ser formalizada dentro do prazo de negociação».
Insistimos que não vemos como possa ser aprovado, dentro do prazo legal de negociação, um acordo de pagamento a submeter, posteriormente, à votação. Se aquela aprovação prévia, para existir, exige uma votação, para que se faz então uma segunda votação? Ou apenas se faz a segunda e se ignora a prévia alusão da primeira a acordo aprovado?
 Temos por certo que a interpretação ab-rogante ou revogatória, a que faz apelo o acórdão do TRP acima citado, dado que implica a negação de uma disposição legal, apenas deve ser concebível em casos extremos, nomeadamente quando existe absoluta contradição entre normas, impondo-se eliminar uma delas, ou um trecho da mesma, em harmonia com todo o sistema legal.
Baptista Machado, (na obra “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador “, pág. 186) escreve e ensina que «Por vezes, embora raramente, será preciso ir mais além e sacrificar, em obediência ainda ao pensamento legislativo, parte duma fórmula normativa, ou até a totalidade da norma. Trata-se de fórmulas legislativas abortadas ou de verdadeiros lapsos. Quando a fórmula normativa é tão mal inspirada que nem sequer consegue aludir com uma clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, poderá falar-se de interpretação correctiva. O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador. A interpretação revogatória ou ab-rogante terá lugar apenas quando entre duas disposições legais existe uma contradição insanável.».
Também Oliveira Ascensão (na obra “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, págs. 369 e 370), refere que «Podemos chegar também à interpretação ab-rogante. Aí o intérprete não mata a regra, verifica que ela está morta. Após a busca do sentido possível, tem de concluir que há uma contradição insanável, donde não resulta nenhuma regra útil. A fonte tem, pois, de ser considerada como inexistente. (…) O que acontece é que, por ter escapado ao legislador uma incongruência na regulamentação ou uma incompatibilidade entre vários textos, há desde o início uma falta de sentido. (…) se conflito de fontes, pode chegar a considerar as duas fontes estéreis, afinal».

Tudo ponderado, e revertendo aos autos, no enquadramento concreto em que aqui nos movemos, não fazendo qualquer sentido quanto a nós, na harmonia do sistema jurídico, a existência de duas aprovações do acordo de pagamento (implicando assim que em cada uma delas teria de incidir uma diferente votação), estando subjacente ao regime legal a ideia de que o devedor irá remeter a tribunal um “acordo” de pagamento que tenha obtido aprovação durante as negociações, ainda que sem unanimidade, e não uma simples proposta de acordo, forçoso será então constatar que norma do art.º 222º F nº 2, além de aludir erradamente a “plano”, refere também, contraditoriamente, o início de um prazo de votação quando o seu pressuposto é que o acordo de pagamento já tenha sido aprovado. Donde, para nós, apenas faz sentido, em coerência com todo o regime jurídico que encerra o PEAP, aproveitar aquela norma quando diz que, concluindo-se as negociações com aprovação de acordo de pagamento sem unanimidade, o devedor remete o acordo ao tribunal para homologação ou recusa dela, fazendo-se letra morta do restante preceito, à luz daquele art.º 9.º do CC, impondo-se, como alude o acórdão do TRP de 11/07/2018, na linha do defendido por Catarina Serra na sua obra, uma interpretação ab-rogante deste artigo 222º-F nº 2 nessa parte.

E, a ser assim, como para nós o é, tendo presente esta interpretação, na conjugação dos normativos citados, verificamos então, no caso dos autos, que o prazo das negociações foi concluído sem a aprovação de acordo de pagamento, logo, sem a sua votação, impondo-se consequentemente ao tribunal recorrido que tivesse encerrado o processo negocial, ao abrigo do n.º 1 do artigo 222.º-G do CIRE, na parte em que este dispõe que, caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D sem se alcançar um acordo de pagamento, o processo negocial é encerrado, perdendo devedor e credores a faculdade de continuar com as negociações com vista a concluir um qualquer acordo de pagamento.
Atento o caráter imperativo da limitação temporal das negociações, obstaria assim à homologação do acordo, por violação não negligenciável de regras procedimentais, à luz do art.º 215.º do CIRE, que fosse considerada naquela homologação um acordo aprovado em violação de tal limite temporal. Veja-se que o art.º 215.º do CIRE dispõe que «O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação», e ainda que a lei não defina o que são «vícios não negligenciáveis», tem-se entendido que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, nomeadamente, e como é aqui o caso, a ultrapassagem do prazo perentório previsto no n.º 5 do art.º 222.º-D referente à negociação/votação do acordo de pagamento em PEAP.

Em conclusão, e sem mais, ficando prejudicadas as restantes questões suscitadas no processo, as considerações tecidas levam-nos a aceitar a argumentação apresentada pela apelante, e, procedendo as suas alegações recursivas, impõe-se a revogação da decisão recorrida por ter sido ultrapassado o prazo das negociações sem que tivesse sido celebrado acordo de pagamento, o que obrigaria ao encerramento do processo e obstaria à homologação de um acordo.

*
V-/ Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação, assim revogando a decisão recorrida, que se altera por outra a determinar o encerramento do processo.
Custas pelos recorridos.
Registe e notifique.


Lisboa, 14/12/2023

Paula Cardoso
Rosário Gonçalves
Nuno Teixeira