Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6952/2006-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer evento (artigo 409.º/1 do Código Civil).
II- Assim, pressupondo, por força da aludida disposição, que o alienante é o titular da reserva de propriedade, o Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro considera sujeito a registo a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis (artigo 5.º/1, alínea b), permitindo, uma vez não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, que o titular do respectivo registo requeira em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula (artigo 15.º/1), prescrevendo que, dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, aquele titular deve propor acção de resolução do contrato de alienação (artigo 18.º/1) e finalmente, no que respeita à competência territorial, dispondo que “ o processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”.
III- Assim, o proprietário a que alude este último preceito é o titular do registo de reserva de propriedade estipulada em contrato de alienação de veículos automóveis, o que não é o caso do titular de registo de reserva de propriedade constituído a favor do mutuante que financia ao mutuário a aquisição de veículo automóvel.
IV- Por isso, a disposição aplicável em matéria de competência territorial para o caso de mutuante que tem a seu favor inscrita registo de reserva de propriedade de veículo automóvel é a disposição constante do artigo 74º/1 do C.P.C. conjugada com a regra constante do artigo 83º/1, alínea c) do C.P.C. que prescreve que “ a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu” sendo certo que essa acção é a acção de resolução do contrato de financiamento e não a acção de resolução do contrato de alienação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. S.[…],SA intentou providência cautelar para apreensão de veículo e respectivos documentos ao abrigo do disposto no artigo 15º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro demandando R.[…] e S.[…] ambos residentes em […] Vila Verde.

2. O Tribunal, conhecendo oficiosamente da excepção de competência em razão do território (artigo 110.º,nº1 do C.P.C. com a redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril), julgou-se incompetente determinando a remessa dos autos para o tribunal da residência dos requeridos visto que a acção destinada a exigir a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, não se verificando, no caso, as situações em que o A. pode demandar o réu noutro domicílio: ver artigo 74.º/1 do C.P.C.( redacção da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril).

3. De facto, a acção principal, de que depende a providência cautelar de apreensão de veículo e documentos, é a acção de resolução do contrato de alienação que deve ser proposta pelo titular do registo de reserva de propriedade. Assim  o diz expressamente a parte final do artigo 18.º/1 do Decreto-Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro: “ dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido […];  dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”. No que respeita aos procedimentos cautelares, a regra geral é a que consta do artigo 83.º/1, alínea c) do C.P.C. segundo a qual “ para os outros procedimentos cautelares é competente o tribunal em que deve ser proposta a acção respectiva”. Conclui-se, assim, que, sendo a acção respectiva a acção de resolução do contrato de alienação, o tribunal territorialmente competente para o procedimento cautelar é o do domicílio do réu.

4. No entanto a requerente insurge-se contra esta solução referindo que a decisão não atentou na circunstância de a norma constante do artigo 74.º do C.P.C. não ser aplicável à providência cautelar requerida visto que, no que respeita à competência territorial, o próprio Decreto-lei nº 54/75 contém norma especial que não foi revogada pelo artigo 74º do C.P.C. com a sua actual redacção. Essa norma especial, que consta do artigo 21º do DL 54/75, diz que “ o processo de apreensão  e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”. Ora, assim  sendo, a competência em razão do território pertence, não ao tribunal do domicílio do réu (artigo 74.º do C.P.C.) mas ao tribunal da residência habitual ou sede do proprietário (artigo 21.º do DL 54/75).

5. A requerente assume-se proprietária do veículo porque foi constituída a seu favor reserva de propriedade. No entanto, a requerente limitou-se a celebrar com os requeridos contrato de crédito ( a requerente é uma sociedade comercial anónima que se dedica, entre outras, à actividade de financiamento de aquisições a crédito, nomeadamente de veículos automóveis) destinado a financiar a aquisição, por parte dos requeridos, de uma determinada viatura automóvel (ver artigos 1º a 3º do requerimento inicial).

6. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das  obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento (artigo 409.º do Código Civil);  daí que a cláusula de reserva de propriedade apenas possa ser constituída a favor do alienante e é por isso que, pressupondo o Decreto-Lei nº 54/75 a coincidência necessária por força da lei (artigo 409º do Código Civil) entre alienante e titular do registo de reserva de propriedade, se prescreve que o titular do registo de reserva de propriedade pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula (artigo 15º do DL 54/75), competindo a esse mesmo titular propor a acção de resolução do contrato de alienação (artigo 18º/1)  sendo o tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário o tribunal competente para o processo de apreensão e para as acções relativas aos veículos apreendidos (artigo 21.º do Decreto-lei nº 54/75).

7. Acontece que tem vindo a ser admitido o registo de reserva de propriedade a favor do mutuante contra expressa previsão do artigo 409º do Código Civil que não admite a validade de uma tal cláusula. Nestas situações, o mutuante invoca a reserva de propriedade constituída a seu favor considerando aberto o  caminho para a apreensão de veículo e para a acção declarativa de resolução do contrato de financiamento, mas  não do contrato de alienação em que não interveio.

8. No caso vertente não temos de nos ocupar da questão de saber se a pretensão da requerente pode ser ou não deferida (o nosso entendimento consta do Ac. de 22-6-2006, P. 4927/2006 in www.dgsi.pt). A questão a decidir é a de saber qual é afinal o tribunal competente em razão do território, atentos os elementos de facto de que os autos nos dão conta, ou seja, considerando que a requerente não foi a alienante, mas apenas a mutuante que obteve registo de reserva de propriedade a seu favor.

9. Face ao que referimos anteriormente o proprietário a que alude o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, outro não pode ser se não o alienante que reservou para si a propriedade da coisa conforme prescreve o artigo 409.º do Código Civil, pois, como se disse, a lei não admite reserva de propriedade constituída a favor de quem não seja o alienante. E obviamente existem boas razões para uma tal opção legal, ou seja, não se permitir a estipulação de uma tal cláusula a favor de terceiro.

10.  Não é, portanto, aplicável à situação em apreço a aludida disposição legal que tem em vista o proprietário /alienante; assim, e porque a requerente pretende a apreensão do veículo para depois pedir certamente a declaração resolução do contrato de financiamento que outorgou com os requeridos ( e não do contrato de alienação que lhe é seguramente alheio), somos necessariamente remetidos para as regras gerais de competência em razão do território fixadas no Código de Processo Civil já que a norma expressamente considerada no Decreto-Lei nº 54/75 não é aplicável à presente situação.

11. Assim, o tribunal competente em razão do território à luz das disposições aplicáveis é, portanto, o tribunal do domicílio dos RR, como se decidiu (artigos 74.º/1 e 83.º/1, alínea c) do C.P.C).

12.  Contra este entendimento invoca a financiadora recorrente o argumento que resulta do facto de, a ser assim, se aplicar retroactivamente a lei pois as partes estipularam pacto de aforamento no artigo 15º das condições gerais de financiamento para aquisição a crédito que diz: “ para resolução de eventuais litígios, de natureza declarativa ou executiva, emergentes do presente contrato, fica estipulado o foro da comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer outro”. Um tal pacto era válido e eficaz quando foi celebrado (artigo 100.º do Código de Processo Civil) e a lei nova , embora de aplicação imediata aos processos pendentes, não possui qualquer eficácia retroactiva, querendo com isto dizer-se, prossegue a recorrente, que “ a entrada em vigor da lei nova aplica-se de imediato, mas não produz efeitos sobre situações passadas, ou seja, situações jurídicas validamente constituídas ao abrigo da lei antiga”.

13. O referido pacto não é mais do que uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal que a consente (artigo 100º do C.P.C.) cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que é encarada a aplicabilidade das demais normas atinentes à competência territorial. Ora, neste plano, o entendimento é o de que “ a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes, ou seja, em causas anteriormente postas em juízo” ( Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2º edição, 1985, pág. 47). Daqui decorreria que, tratando-se de acção pendente, a matéria atinente à competência relativa seria apreciada à luz da nova lei processual pois só são irrelevantes as modificações de direito, em matéria de competência, se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou se lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (artigo 22º da lei nº 3/99, de 13 de Janeiro). Ou seja, são relevantes as modificações de direito em matéria de competência territorial.

14. No entanto , a Lei 14/2006, de 26 de Abril excluiu as acções pendentes da aplicação da lei nova prescrevendo  o artigo 6º que “ a presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instaurados ou apresentados depois da sua entrada em vigor”.  Assim, se no domínio da regra geral se deveria entender aplicável a lei nova às acções pendentes, ressalvados os casos julgados, já, por força desta última disposição, a lei nova não se aplica aos processos pendentes, mas apenas às acções intentadas depois da sua entrada em vigor.

15. É o caso da presente acção. Não  há, como se vê, nenhuma aplicação retroactiva como sucederia defendendo-se a ideia de que, nas acções pendentes, as regras de competência territorial se fixam no momento em que a acção é proposta, não relevando, portanto, as alterações verificadas durante a pendência, entendimento que não se afigura conforme, como se disse, ao disposto no referido artigo 22º da Lei nº 3/99;  não há, portanto,  aplicação retroactiva porque a lei não se aplica ás acções pendentes e, por isso, é à luz das regras de competência vigentes no momento em que a acção é proposta que deve ser aferida a competência em razão do território. O pacto de aforamento não é, como também se disse, mais do que uma regra de competência cuja validade deve ser aferida à luz das regras de competência em vigor no momento em que a acção é proposta.

[…]

Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente

Lisboa, 14 de Setembro de 2006

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)