Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | ISABEL SALGADO | ||
| Descritores: | APREENSÃO DE VEÍCULO RESERVA DE PROPRIEDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/28/2006 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I- É de admitir a efectivação do direito de reserva de propriedade na esfera jurídica do titular do direito de crédito através da providência cautelar de apreensão de viatura, atenta a interdependência de interesses nos contratos de compra e venda e de mútuo e o princípio da autonomia privada. II- Vedando-se ao financiador o accionamento da cláusula de reserva de propriedade na situação do adquirente do veículo remisso, obteríamos o resultado indesejado de aquele não poder ser desapossado do veículo de que afinal não é proprietário. III- Na interpretação das normas não deve marginalizar-se a ponderação das consequências negativas que advém de uma estrita concepção formalista, devendo viabilizar as expectativas prático -sociais presentes nas convenções das partes. (IS) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO Banco […] e F. […] S.A., ambas sediadas em Lisboa, intentaram procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel e respectivos documentos, contra A.[…] Essencialmente alegaram que: A Requerente Banco […] dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis. A Requerente F. […]S.A., dedica-se à venda de automóveis. A Requerente F. […] S.A. vendeu ao Requerido o veículo automóvel marca […]; a Requerente Banco […] financiou a aquisição do referido veículo, nos termos do contrato de financiamento para aquisição a crédito junto a fls. 6. Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída reserva de propriedade a favor da Requerente F. […]S.A.. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa. O preço total da viatura foi de € 19.403,24 (Esc. 3.890.000$00), tendo o requerido efectuado um desembolso inicial de € 4.090,14 (Esc. 820.000$00). O requerido, não podendo ou não querendo desembolsar a totalidade do valor da aquisição, recorreu ao financiamento para aquisição a crédito, o que a requerente […] se dispôs a fazer-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de € 15.313,10 ( Esc. 3.070.000$00). O contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado entre a Requerente Banco […]e o Requerido estipulou na cl. 8a das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar ao financiamento era de € 21.109,63 (Esc. 4.232.100$00 ). Na cláusula 9a das Condições Particulares do mencionado contrato, o prazo de reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante 60 prestações, no valor de € 351,83 (Esc. 70.535$00) ; o contrato em questão foi assinado em 28-6-2000 e entrou em vigor nesse dia. O Requerido deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas a partir de 10-8-2000, correspondente à 1a prestação. A Requerente Banco […] endereçou uma carta ao Requerido, com data de 20-7-2004, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora, no prazo de oito dias, considerado razoável para o efeito. Uma vez que, apesar das interpelações da Requerente Banco […] o Requerido não pôs termo à mora, aquela, por carta datada de 13-8-2004, notificou o Requerido da resolução do contrato de financiamento. Posteriormente, o Requerido liquidou da 2a à 6a prestações e da 10a à 47a prestações. Até à presente data, o Requerido não entregou às Requerentes o mencionado veículo automóvel. Em consequência da não devolução, as Requerentes desconhecem o estado em que esse veículo se encontra. O requerido foi citado e nada disse. Face à ausência de citação do requerido foram considerados assentes os factos alegados pelos requerentes. Foi proferida decisão a fls. 34 a 38, que julgou improcedente a pretensão dos requerentes. É desta decisão que vem interposto o agravo. O dissentimento dos recorrentes repousa nas seguintes conclusões: 1º - O Agravado deixou de proceder ao pagamento integral das prestações contratualmente estabelecidas a partir de 10.08.2000, correspondente à 1a prestação, tendo liquidado posteriormente os valores correspondentes da 2a à 6a e da l0a à 47a prestações, e tendo sido interpelado para pôr termo à mora, não o fez, pelo que incumpriu o Contrato de Financiamento e as obrigações que originaram a reserva de propriedade. 2º - Por outro lado, as Agravantes fizeram prova dos registos em vigor em relação ao veículo de marca […] entre os quais se encontra o da reserva de propriedade a favor da Agravante F.[…] SA. 3º - De acordo com o pensamento legislativo que presidiu à elaboração do mencionado diploma legal e com o espírito do mesmo, não é necessário que se encontrem reunidos na mesma esfera jurídica o direito de crédito/resolução do contrato e a reserva de propriedade. 4º - Com efeito, o regime instituído pelo Decreto-Lei n.° 54/75, de 12 de Fevereiro, não faz tal exigência. 5º - Tal entendimento encontra-se expressamente acolhido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.02.03, (in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII – 2003, Tomo 1, págs. 102 e 103) que, tendo por objecto uma situação de facto em tudo idêntica ao caso sub judice, refere que "para a apreensão de veículo automóvel nos termos previstos no DL n.° 54/75, não é essencial que haja coincidência entre a titularidade do direito à resolução e a titularidade do registo de reserva de propriedade. Determinante é que, verificados os demais requisitos, haja incumprimento das obrigações que justificaram a reserva de propriedade" – no mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.11.00 (in CJ, 2000, Torno V, pág. 99). Verifica-se, pois, que, no caso concreto, estão reunidos todos os pressupostos de admissão e posterior decretação da providência de apreensão de veículo, previstos nos arts. 15° e 16° do Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro. "Com semelhantes normas, o legislador visou não só acautelar o pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço de aquisição do veículo automóvel, como também outras obrigações, designadamente as emergentes de um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, para aquisição daquele , em que o próprio vendedor também interveio ou de cujo conteúdo ressalta, para o mesmo, um interesse relevante" (cfr. citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.02.03). 6º - No caso concreto, a Agravante F.[…] S.A. tem interesse na satisfação do crédito da Agravante Banco […] – a entidade financiadora – por lhe ter possibilitado a venda do veículo através do financiamento e por tal satisfação lhe criar expectativa de outras vendas por efeito de futuros financiamentos. 7º - Consta do supra citado Acórdão de 13.02.03, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que "é admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir um crédito de terceiro, especialmente quando o mesmo emerge de um contrato de mútuo a prestações cujo respectivo produto é destinado ao pagamento do preço da compra e venda." 8º - Pelo que, apesar de a entidade vendedora, in casu, a Agravante F. […] S.A., ter recebido da entidade financiadora, a Agravante Banco […] o preço da venda, não deixa, por isso, de ter interesse em recorrer ao procedimento cautelar aqui em questão, enquanto titular da reserva de propriedade. 9º - A acolher-se o entendimento adoptado pelo Tribunal a quo, nunca poderia a Agravante F. […] S.A. fazer valer a sua reserva de propriedade, uma vez que, sendo a aquisição da viatura por parte do Agravado, financiada pela Agravante Banco […], o cumprimento do contrato de compra e venda estaria sempre garantido, urna vez que esta entrega de imediato o montante do preço do veículo à Agravante F. […] SA 10º - Pelo que, a referência efectuada a "contrato de alienação" que consta do art. 18°, n.° 1 do Dec. Lei 54/75, de 12 de Dezembro, tem de ser objecto de urna interpretação actualista, concatenada com o disposto no art. 409°, n.° 1 do Código Civil, devendo entender-se que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento das obrigações encontra-se garantido pela reserva de propriedade, in casu, o contrato de financiamento, sob pena de a reserva de propriedade, legalmente constituída, se dever haver por totalmente inútil e de resultar sem garantia o crédito da financiadora da aquisição do veículo. Tal, decorre, igualmente, do citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.02.03, donde consta que "a referência no art. 180, n.' 1 do DL n.° 54/75, ao «contrato de alienação» pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o da compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade" . 11º - Pelo que a Agravante Banco […] enquanto entidade que financiou a aquisição ao Agravado, da viatura objecto da providência cautelar aqui em causa, nos termos do contrato de financiamento junto aos autos de acção declarativa principal como doc. 1, tem legitimidade activa para requerer a presente providência. 12º - O diploma em apreço pretende instituir um meio célere e expedito de acautelar a posição do proprietário do veículo alienado, pelo que, para ser decretada a providência, basta ao Requerente demonstrar que a reserva do veículo está inscrita a seu favor e que não foram cumpridas as obrigações que originaram aquela reserva, o que as ora Agravantes lograram provar. 13º - Deste modo, deve ser determinada a apreensão do veículo automóvel […]e feita a sua entrega ao fiel depositário indicado nos autos. O Sr.Juiz sustentou tabelarmente a decisão II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Resulta provado nos autos por documento e confissão que: A Requerente Banco […] dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis. A Requerente F. […] S.A., dedica-se à venda de automóveis. A Requerente F. […]S.A., vendeu ao Requerido o veículo automóvel marca […] A Requerente Banco […] financiou a aquisição do referido veículo, nos termos do contrato de financiamento para aquisição a crédito junto a fls. 6. Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída reserva de propriedade a favor da Requerente F.[…] S.A.. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa. O preço total da viatura foi de € 19.403,24 (Esc. 3.890.000$00), tendo o Requerido efectuado um desembolso inicial de € 4.090,14 (Esc. 820.000$00). O Requerido, não podendo ou não querendo desembolsar a totalidade do valor da aquisição, recorreu ao financiamento para aquisição a crédito, o que a Requerente Banco […] se dispôs a fazer-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de € 15.313,10 (Esc. 3.070.000$00). O contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado entre a Requerente Banco […] e o Requerido estipulou na cl. 8a das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar ao financiamento era de € 21.109,63 (Esc. 4.232.100$00 ). Na cl. 9a das Condições Particulares do mencionado contrato, o prazo de reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante 60 prestações, no valor de € 351,83 (Esc. 70.535$00); o contrato em questão foi assinado em 28-6-2000 e entrou em vigor nesse dia. O Requerido deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas a partir de 10-8-2000, correspondente à 1a prestação. A Requerente Banco […] endereçou uma carta ao Requerido, com data de 20-7-2004, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora, no prazo de oito dias, considerado razoável para o efeito. Uma vez que, apesar das interpelações da Requerente Banco […] o Requerido não pôs termo à mora, aquela, por carta datada de 13-8-2004, notificou o Requerido da resolução do contrato de financiamento. Posteriormente, o Requerido liquidou da 2a à 6a prestações e da 10a à 47a prestações. Até à presente data, o Requerido não entregou às Requerentes o mencionado veículo automóvel. Em consequência da não devolução, as Requerentes desconhecem o estado em que esse veículo se encontra. II – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Da bondade do recurso. Por organização de raciocínio, convém partir da premissa consabida, segundo a qual, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando conhecer das questões nelas colocadas, à parte das que exijam apreciação oficiosa – artº684, nº3 e 690 do CPC. A questão a apreciar reconduz-se ao enunciado seguinte: É de admitir a efectivação do direito de reserva de propriedade na esfera jurídica do titular de um direito de crédito, que não o vendedor, e nessa medida facultar-lhe o recurso à providência de apreensão de viatura prevista no DL 54/75, de 12/2? A resposta ao tema tem apaixonado a jurisprudência em argumentação variada, sem que, todavia, esteja trilhado o caminho da uniformidade, ou tão pouco, ao que se apura, o da tendência maioritária. No caso vertente, e segundo a factualidade alegada no requerimento inicial, está-se em presença de uma compra e venda financiada, tendo por objecto uma viatura automóvel, coexistindo assim dois contratos autónomos, mas com uma ligação funcional entre si: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, encontrando-se registada a favor da vendedora, a reserva de propriedade sobre a viatura. Os dois contratos coexistem tendo em vista a consecução de uma finalidade económica comum, a facilitação do consumo por recurso ao crédito, mantendo, embora, cada um deles a sua autonomia estrutural e formal. É ponto incontroverso que a reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato – nº 1 do art. 408º C.Civil. Mediante esta cláusula, que traduz a possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa – art. 409º C.Civil, a transferência do direito para a esfera do comprador apenas se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica, portanto, dependente de uma condição suspensiva, estabelecendo as partes uma cláusula condicional suspensiva, (no que consiste o pactum reservati dominii - artº270 do C Civil), qual seja, o de o integral cumprimento pelo adquirente da viatura das obrigações assumidas perante a financiadora. Neste conspecto, sendo nítida a interdependência de interesses entre o triângulo de sujeitos contratuais, é compreensível, no âmbito da intangibilidade da liberdade negocial das partes (artº405 do C Civil), que a reserva de propriedade tutele, não já directamente o interesse da vendedora, através da restituição do veículo, mas, outrossim, esteja apta a garantir o direito de crédito da financiadora que com aquela colabora, coagindo o comprador ao cumprimento integral das obrigações assumidas com a financeira. A autonomia privada, é na verdade, princípio estruturante do direito civil moderno, mormente no que tange ao direito das obrigações, e por via convencional, os sujeitos privados participam, de alguma forma, com o legislador, nas normas que os irão reger, apontando-se assim novos cânones na actividade do intérprete e na metodologia jurídica (1). Donde, como entender o DL 54/75, de 12/2. Defende um quadrante da jurisprudência que: - Só o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade, que é titular do respectivo registo, detém legitimidade para requerer, em processo cautelar, a apreensão do veículo. Se o alienante do veículo e a financiadora da respectiva aquisição forem pessoas diferentes, não pode esta última, ainda que em associação com aquela, instaurar providência cautelar destinada à apreensão do veículo vendido, dado que o titular do respectivo registo, não pode intentar a acção principal de resolução cujo direito lhe assistiria, na medida em que não é credora do preço do veículo. Ressalvado o devido respeito, cremos que, a interacção entre a interpretação actualista do diploma supra, e a consideração do princípio da liberdade de estipulação, viabiliza outra construção jurídica em redor da questão. Aproximando. Reconhece-se que ao tempo da elaboração do diploma, o legislador teve em vista, primordialmente, evitar que o veículo, com o respectivo uso, se deteriorasse ou desvalorizasse e, assim, garantir patrimonialmente o credor hipotecário ou permitir que o vendedor com reserva de propriedade, pudesse recuperar o bem antes da sua inutilização ou perda de valor (2), e que, o seu campo de aplicação se restringisse à apreensão de veículos automóveis hipotecados ou com reserva de propriedade. O panorama das relações jurídico -económicas da época em torno da compra de viaturas automóveis a crédito, limitava-se à venda a prestações, suportando o crédito o próprio vendedor do veículo. Porém, e seria exercício ocioso documentar ao longo das duas últimas décadas a evolução multifacetada deste mercado, prolifera, actualmente, uma miríade de contratos tendentes à prossecução daquela finalidade de consumo, entre os quais, avultam, conforme o caso dos autos, as empresas financiadores do adquirente, através de um mútuo, em união com a vendedora da viatura, que desta forma arrecada de imediato o seu preço. Prescreve o nº 1, do artº 9º do C.C. que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, que se surpreenda no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas. No nº 2 estabelece-se, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, ou seja, do significado da sua expressão verbal. Por último, o nº 3, faz apelo a critérios de objectividade, que o intérprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada. Como decidir, então, em face do que, estando remisso o adquirente da viatura, a financiadora está em situação de accionar a cautelar da apreensão da viatura? Dispõe o art. 15º, nº 1, do citado diploma que, “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veiculo e dos seus documentos”. Por sua vez, prescreve o artº 16°, nº1 que “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”. Conforme resulta do disposto nos arts. 5°, 15° e 16° do Dec.-Lei nº 54/75, no caso de incumprimento pelo requerido das obrigações que originaram a reserva de propriedade, as condições de exercício deste procedimento, são: a) a reserva de propriedade se encontre registada, a favor do requerente, na Conservatória do Registo de Automóveis, em obediência à alínea b) do art.5, nº1 do Dec.-Lei 54/75, de 12/2; b) que o requerido não tenha cumprido as obrigações que assumiu. Constitui um dado de observação, que aumentou exponencialmente o crédito ao consumo, que hoje traduz a situação regra para a aquisição de quaisquer bens, e relevantemente para os veículos automóveis – o recurso ao financiamento pelas instituições criadas exclusivamente para o efeito, podendo, afirmar-se que o comprador do automóvel associa o pagamento do preço do bem com o cumprimento do contrato de financiamento (na satisfação mensal da prestação!), aceitando, portanto, a garantia da reserva de propriedade como a garantia de cumprimento deste contrato, e, optando, as partes, por razões de simplicidade no tráfego jurídico por ela, em detrimento da hipoteca. Ao que é forçoso, então, concluir que: “Seguindo o entendimento tradicional de que a reserva de propriedade nada mais é do que uma cláusula contratual que difere a transmissão da propriedade para momento posterior ao do contrato (e eventualmente a subordina a algo), a reserva não gera um direito diverso do de propriedade e, portanto, a reserva, em si mesma, não é transmissível. O que é facto, porém, é que as situações de créditos garantidos pela reserva de propriedade são tendencialmente equivalentes às de créditos garantidos por garantias reais transmissíveis (hipoteca e penhor, nomeadamente) e que, para que essa equivalência fosse consequente, a reserva deveria ser transmissível como aquelas garantias o são. Isto é: se um crédito garantido por um penhor ou uma hipoteca é transmissível conjuntamente com o penhor ou a hipoteca, a situação de garantia de créditos através da reserva de propriedade, para ser equivalente àquelas, deveria ser transmissível em termos paralelos. Na ausência de disposição legal sobre o ponto e tendo em conta o artigo 409º do Código Civil, não parece que tal transmissibilidade exista. Noutros Direitos, nomeadamente o alemão, porém, a reserva é tida por transmissível” (3). Deste modo, temos para nós, que na leitura do disposto nos artº 15 e 18, 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade a referência ao "contrato de alienação", e em consequência, reconhecer a legitimidade do financiador, não exigindo, portanto, que coexista no mesmo titular, o direito de crédito e, o de beneficiário da reserva, entendimento sustentado em parte da jurisprudência (4). De outra feita ainda, é unanimemente aceite que a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, apoiado estritamente nos elementos literal e lógico (teleológico, sistemático e histórico (5)) despido das consequências práticas que dele possam provir. No tempo de hoje em que actuamos, “ a linha de orientação exacta só pode ser, pois, aquela em que as exigências do sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fechem numa auto-suficiência, a implicar também a auto – subsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante, e antes se abram a uma intencionalidade materialmente normativa que, na sua concreta e judicativa – decisória realização, se oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas, mas que ao mesmo tempo as problematize e as reconstitua pela sua experimentação concretizadora”·(6). Ao aceitar-se a interpretação, segundo a qual, apenas o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade propenderia para ser desprovida de efeito prático, na situação da aquisição do veículo através do financiamento de terceiro, o que incontornavelmente é hoje a regra. Senão vejamos. O vendedor, recebendo do financiador o montante total do preço do veículo está, bem vistas as coisas, impedido de resolver o contrato de alienação, e, doravante, impedido de reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade, registada a seu favor, tanto mais que, como se disse, a atender à vontade das partes que resulta claramente das suas convenções, a reserva foi prevista para garantir o cumprimento do contrato de financiamento. E, não se diga, em desabono, que o vendedor deixa de ter interesse em tal garantia, porquanto, nos caso de crédito ao consumo a interdependência entre os contratos de financiamento e de compra e venda (Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro) é inextrincável, não havendo crédito, não há venda de carro, pois, o adquirente não tem capacidade para o pagar a pronto, não se podendo, portanto, de deixar de reconhecer que o vendedor tem todo o interesse em que, até ao pagamento do financiamento à entidade que lhe está associada, esteja eficazmente constituída a seu favor reserva de propriedade. Vendedora e financiadora colaboram entre si para alcançarem um objectivo comum, dinamizarem e aumentarem os lucros dos seus negócios. Soçobra, pois, quanto a nós, a força argumentativa da interpretação do texto legal em abstracção do caso concreto, que hodiernamente cede o passo à “interpretação orientada pelas coordenadas do sistema e do problema .”(7) Enveredando-se por uma perspectiva redutora do sentido da norma, incumprido o contrato de mútuo, caso, seja vedado ao financiador, (ainda que conjuntamente com o vendedor titular da reserva), accionar o conteúdo de tal convenção, e invocar a resolução do contrato de mútuo, obteríamos em resultado, a absurda situação de o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que afinal não é proprietário, efeito pernicioso que certamente os princípios do sistema não aplaudem. De resto, a interpretação jurídica das normas não deve confinar-se a uma concepção formalista, marginalizando a ponderação das consequências negativas que dela advenham, e de todo em todo, a solução injusta no resultado não pode ser entendia como o propósito do legislador, à luz do estabelecido no artº9, nº3 do C.Civil. Em suma, salvo melhor opinião, o sentido interpretativo da norma que sufragamos, faculta a utilização da medida cautelar de apreensão de viatura pelo financiador, e da acção de resolução principal que lhe seguir, não parecendo contender com qualquer dos princípios de direito, posto que, da sua aplicação não resulta, de igual modo, quebra do equilíbrio das prestações das partes, e viabiliza as expectativas prático-sociais dos sujeitos ínsitas nas convenções que estabeleceram, realizando, afinal, o direito. Assim sendo, não custa acompanhar a pretensão dos agravantes, aceitando a conclusão alcançada de que, perante a prova do incumprimento das obrigações do contrato de mútuo, que originaram a reserva de propriedade, e a declaração resolutória da requerente, estão verificados os requisitos para proceder a providência cautelar solicitada. IV-DECISÃO Do que vem exposto decide-se, em conceder provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida, decretando-se a apreensão da viatura acima identificada a efectivar pelo Tribunal recorrido. Custas da providência a cargo dos agravantes, e sem custas o recurso. Lisboa, 28 de Março de 2006 Isabel Salgado Soares Curado Luís Espírito Santo (vencido com declaração que segue) Voto de Vencido Não vejo motivo para divergir do entendimento doutamente perfilhado no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2005, publicado in www.dgsi.pt, processo nº 05B538, número convencional JSTJ000, o qual é convincente e clarividente acerca da questão jurídica em apreço. Limito-me a deixar registadas, sinteticamente, as razões que imporiam a confirmação da decisão recorrida: 1º - A providência prevista no Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, constitui um procedimento cautelar, instrumental e dependente duma acção principal a intentar no prazo legalmente previsto, sob pena de caducidade. 2º – Para a intentar a acção principal a lei confere legitimidade apenas e só ao titular do registo de reserva de propriedade, ou seja, ao vendedor do veículo automóvel ( artº 18º, nº 1 ). 3º – Não sendo titular de qualquer registo de reserva de propriedade, o mutuante não pode impulsionar tal procedimento cautelar, estando-lhe igualmente vedada a possibilidade de interpor a acção principal de que depende a providência. 4º – Não tem sentido conceber a possibilidade de interposição da acção principal ( de que o procedimento é dependência ) por parte do vendedor pela óbvia razão de que não existe, em termos técnicos, incumprimento do contrato de compra e venda, nem ele é titular dum direito de crédito sobre o comprador. Se já recebeu integralmente o preço da venda, que sentido faz pedir a resolução do contrato de alienação – e muito menos com base no incumprimento dum contrato diverso e do qual não é sujeito da relação jurídica ( o mútuo ) ? 5º – De resto, admitindo que o contrato de mútuo se integrava no âmbito do “ contrato de alienação “, para efeitos do artº 18º, nem sequer se poderia tecnicamente falar de resolução, mas sim de incumprimento, o que é, no mundo jurídico, algo substancialmente diverso. E, note-se que a própria ( hipotética ) resolução do contrato de mútuo não implicaria a restituição do veículo vendido, o que retira toda a similitude entre as duas situações. Se faz sentido apreender a viatura na perspectiva da destruição retroactiva do contrato de alienação, ficando o bem em poder daquele que nunca deixou de ser o seu proprietário, já não se compreende a apreensão judicial do veículo para satisfação dum mero direito de crédito sem qualquer garantia real, não tendo o respectivo titular nada a ver com a propriedade do mesmo. Terá, assim, fundamento jurídico a apreensão do veículo automóvel, ao abrigo do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro (8), para salvaguardar um mero crédito do mutuante, sem qualquer direito ou registo sobre esse bem ( e que podia ter-se legitimamente socorrido duma garantia real – a hipoteca – e não o fez ) ? 6º – Terá algum sentido, em termos técnico-jurídicos, permitir que o mutuante beneficie indirectamente duma reserva de propriedade que não constituiu, servindo-se da posição do vendedor reservatário, cujo interesse contratual se encontra totalmente realizado, e que só por mero conluio ou solidariedade comerciais se envolve neste processo ( em relação ao qual nada tem a esperar ou receber ) ? 7º – Falar aqui em interpretação actualista é um sofisma. Uma coisa é interpretar a lei fazendo relevar as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada ; outra, totalmente diferente, é pretender tirar dela ou que ela não tem para dar ( e que é plenamente satisfeito através doutros institutos jurídicos ao dispor dos contraentes ). 8º - A liberdade de estipulação negocial é um dos pilares do direito privado. Não tem, porém, por natureza, virtualidade para alterar os requisitos legais exigidos para as providências cautelares típicas, nem para interferir na correcta interpretação dos textos legislativos. _____________________________ (1).-Fernando José Bronze in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, II, pag.82 (2).-Neste sentido, Moitinho de Almeida, in O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 1981, pag.9 e 10. (3).-Pinto Duarte in"Alguns Aspectos Jurídicos dos Contratos Não Bancários de Aquisição e Uso de Bens", Revista da Banca, nº22, pág 54. (4).-Ac.STJ de 23/11/2000 in CJ V, pag.100; Acs RL de 23/11/2000, 13/2/03, 5/5/05, e 20/10/05 in www.dgsi/pt.jrl (5).-Manuel de Andrade “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação da Leis”, 1978, 3ª edição. (6).-Castanheira Neves in Metodologia, 1993, pag.123 (7).-Ac.STJ de 7/12/94 in BMJ 442, pag.202. (8).-Ao completo arrepio do que as normas deste diploma legal estipulam. |