Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10009/19.5T8LSB-H.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
CASO JULGADO FORMAL
DIREITOS SOCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil
I – Como decorre do artigo 595º, nº 3, 1ª parte do CPC, qualquer decisão sobre incompetência absoluta só constitui caso julgado formal “quanto às questões concretamente apreciadas”.
II – A decisão em que o juiz aprecia a questão da incompetência absoluta em razão da matéria arguida pelo requerido de uma providência cautelar comum, depois de no despacho de decretamento da providência (sem audiência do requerido) ter declarado que o tribunal era competente, não viola o caso julgado formal.
III – A competência afere-se em função dos termos da acção, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respectivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão.
IV – Quando na alínea c) do nº 1 do art.º 128º da Lei de Organização do Sistema Judiciário se refere “acções relativas ao exercício de direitos sociais”, está a pensar-se e a referir-se às acções que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais, quer mesmo terceiros.
V – Se a causa de pedir da pretensão cautelar, expressamente formulada no requerimento inicial, se funda na violação dos deveres fiduciários de lealdade do requerido, enquanto ex-administrador das sociedades requerentes, a competência material para o respectivo conhecimento está deferida aos juízos de comércio, nos termos do disposto no artigo 128º, nº 1, alínea c) e nº 3 da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. T… – , S.A., T… ASDS, LDA., T… II, LDA., T… III, T… S, LDA., O…, LDA. e M…, LDA., requereram o presente procedimento cautelar comum contra PLS, peticionando que, sem audiência prévia do Requerido, se ordene que este:
a) diretamente ou por intermédio de sociedades-veículo ou testas-de-ferro, se abstenha de retirar o acesso das Requerentes ao nome de domínio <T....com> ou praticar algum outro ato lesivo das Requerentes por referência a tal domínio, sob cominação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €500.000,00;
b) forneça às Requerentes, no prazo de 5 dias, a atual palavra-passe e os demais dados da conta de acesso ao domínio <t….com>, sob cominação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €500.000,00;
c) diretamente ou por intermédio de sociedades-veículo ou testas-de-ferro, se abstenha de criar pessoas coletivas e de registar marcas com o vocábulo “T…”, sob cominação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €100.000,00;
d) diretamente ou por intermédio de sociedades-veículo ou testas-de-ferro, se abstenha de provocar quaisquer outros danos comerciais às Requerentes, sob cominação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €50.000,00.
Mais requereram, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 364.º, n.º 3, do CPC, a apensação do presente procedimento cautelar ao processo n.º 10009/19.5T8LSB, que corre termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 6.
Alegaram as Requerentes, em síntese que:
- o Requerido foi administrador da T… TI, que era a holding do Grupo T…, e foi gerente das demais Requerentes, as quais, em conjunto com a T… TI, compunham anteriormente o referido Grupo T….1;
- o Requerido está a preparar-se para retirar o acesso das Requerentes ao nome de domínio e sítio de internet <t….com>, o que impedirá o Grupo T… de aceder a toda a sua informação e de comunicar com os clientes, os fornecedores e os demais parceiros, bem como tem constituído sociedades-veículo e apresentado pedidos de registo de marcas na União Europeia, nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, utilizando o nome das Requerentes – o vocábulo “T…” –, assim tentando gerar confusão nos clientes e dificultar a expansão comercial do Grupo T…;
- é através do domínio <t….com> que o Grupo T… gere e exerce a sua atividade, sendo este domínio imprescindível para a atividade do Grupo T…;
- foi o Requerido que procedeu ao registo do nome de domínio <t….com>, em 20.11.2000, junto da entidade de gestão e registo de nomes de domínio G… Inc.;
- apesar de o nome de domínio <t….com> ter sido registado pelo Requerido, este nunca o utilizou em nome individual, porquanto o mesmo sempre foi destinado à utilização exclusiva das Requerentes, tendo sido registado em benefício exclusivo destas;
- na sua qualidade de administrador das Requerentes, o Requerido tinha conhecimento dos dados de acesso à conta junta da G… Inc., nomeadamente conhecimento do endereço de email associado a tal conta e da respetiva palavra-passe;
- em data não concretamente apurada, mas que terá ocorrido entre Maio de 2018 e Agosto de 2019 – de acordo com a informação recolhida muito recentemente pelas Requerentes –, aproveitando-se do conhecimento do endereço de email e da respetiva palavra-passe, o Requerido retirou acesso às Requerentes à sua conta da G… Inc., alterando o endereço de email de acesso a tal conta e a respetiva palavra-passe;
- tanto quanto as Requerentes conseguiram apurar – também através da base de dados on-line sobre nomes de domínio W…12 –, em dezembro de 2022, a gestão do nome de domínio <t…..com> foi atualizada, tendo sido nessa data transferida da G… Inc. para outra entidade de gestão e registo de nomes de domínio, a N…C…, Inc.;
- sendo que também junto desta entidade o Requerido contratou um serviço de privacidade – denominado W…13 – para ocultar os seus dados pessoais, novamente substituindo a identificação do atual titular do nome de domínio <t….com> pelos dados (nomeadamente, morada e endereço de correio eletrónico) deste serviço;
- apenas muito recentemente as Requerentes tomaram conhecimento de todas estas alterações à gestão e às configurações do nome de domínio <t….com> feitas pelo Requerido, as quais (…) indiciam que o Requerido se prepara para impedir as Requerentes de aceder ao seu website, aos seus emails, aos seus contactos e a toda a documentação e informação digital do Grupo.
Concluíram, assim, que não só se encontrava preenchido o requisito da provável existência do direito das Requerentes (fumus boni juris) previsto nos artigos 362.º, n.ºs 1 e 2, e 365.º, n.º 1, do CPC, por referência aos artigos 64.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, como também se encontrava preenchido o requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora) previsto nos artigos 362.º, n.º 1, e 365.º, n.º 1, do CPC.
Conclusos os autos para despacho, foi designada data para inquirição das testemunhas arroladas pelas Requerentes, finda a qual foi proferida decisão que, julgando procedente por provado o procedimento cautelar comum, determinou, consequentemente, o cumprimento pelo Requerido de todos os pedidos formulados pelas Requerentes, supra referidos. Nesse despacho, no que respeita ao saneamento do processo, ficou consignado que: “O Tribunal é competente. O processo é o próprio. As partes apresentam-se com personalidade e capacidade sendo legítimas. Não há nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem a que se decida.”
Citado do procedimento cautelar deferido, veio o Requerido deduzir oposição, articulado onde, entre o mais, excepcionou a incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, pelo que pediu a respectiva absolvição da instância, com as demais consequências legais.
Após as Requerentes terem respondido à matéria da excepção deduzida, em 02/12/2023 foi proferido despacho (refª 43080583) que apreciou a arguida excepção dilatória de incompetência absoluta, tendo o Tribunal concluído pela sua verificação e, como tal, absolvido o Requerido da instância.
Inconformadas com esta última decisão, dela interpuseram recurso as Requerentes, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Terminam as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
(…)[1]
S. Mediante o presente procedimento cautelar comum, vieram as Recorrentes alegar uma série de condutas do Recorrido levadas a cabo em violação dos seus deveres de lealdade para com as Recorrentes;
T. Vieram ainda alegar e demonstrar um receio justificado de o Recorrido, dentro daquele que é o seu normal modus operandi, causar novos danos, graves e dificilmente reparáveis, às Recorrentes e ao interesse público, uma vez que o Recorrido tem vindo a pôr em prática uma estratégia de disrupção e criação de danos e contingências, impedindo as Recorrentes de aceder ao seu nome de domínio e apropriando-se de sinais distintivos do Grupo T….
U. Esta intenção do Recorrido foi reconhecida pelo Tribunal a quo, com apoio nos factos que deu por indiciariamente provados, em concreto nos pontos 3, 17 a 24 (no que respeita ao domínio <t….com>) e 29 a 45 (no que respeita à marca “T…”) da Decisão de Decretamento da Providência.
V. No que respeita ao nome de domínio <t….com>: salienta-se que o Recorrido poderá, em meros segundos e com poucos cliques, retirar o acesso das Recorrentes ao seu domínio e, consequentemente, ao seu site (www.T....com) – através do qual o Grupo T... se dá a conhecer comercialmente – e os e-mails @T....com – através dos quais comunica com os seus clientes, fornecedores, parceiros, entidades nacionais e supranacionais (como a Autoridade Tributária e a Comissão Europeia) e que estão, ainda, associados a todas as contas digitais que o Grupo T... possui (por exemplo, contas bancárias, contas de acesso ao telemóvel e à internet, contas da cloud, contas de acesso a sites de fundos europeus, etc.). Em termos simples: o Recorrido pode, de um momento para o outro, paralisar por completo e por tempo indeterminado a atividade do Grupo T..., tornando-as suas “reféns”.
W. Tal conduta causará danos certamente incontornáveis, imensuráveis e de reparação altamente questionável para as Recorrentes – que poderão nunca mais recuperar informação e documentos da sua atividade, perdendo, com isso, clientes, fornecedores, parceiros e oportunidades de negócios – e para o interesse público – uma vez que as Recorrentes atualmente fornecem serviços à NATO e estão envolvidas no cenário de guerra na Ucrânia.
X. Tudo isto foi indiciariamente reconhecido na Decisão de Decretamento da Providência, nos pontos 3 a 24 e 49 da matéria de facto dada como provada na Decisão de Decretamento da Providência (correspondentes aos §§ 13 a 32 do Requerimento Inicial).
Y. No que respeita à utilização de sinais distintivos do Grupo T... através de sociedades-veículo: o Recorrido tem vindo a criar sociedades-veículo noutras jurisdições, através das quais já tentou registar marcas com o vocábulo “T...” no Reino Unido e nos Estados Unidos.
Z. O Grupo T... comercializa os seus produtos por todo o mundo, utilizando a marca “T...” em todas as geografias em que atua, pelo que a atuação do Recorrido é suscetível de criar confusão nos seus atuais e potenciais clientes, parceiros e fornecedores, impedindo as Recorrentes de comercializar os seus produtos e serviços à escala global e prejudicando a sua expansão.
AA. O que foi igualmente reconhecido na Decisão de Decretamento da Providência nos pontos 25 a 47 da matéria de facto dada como provada na Decisão de Decretamento da Providência (correspondentes aos §§ 33 a 57 do Requerimento Inicial).
BB. O Recorrido não tem qualquer interesse individual respeitável na utilização do domínio <T....com> ou na marca “T...”, uma vez que não exerce qualquer atividade nem é titular, administrador ou gerente de qualquer sociedade do Grupo T....
CC. Como foi indiciariamente reconhecido pelo Tribunal a quo, o Recorrido nunca utilizou o nome de domínio <T....com> ou a marca “T...” em nome individual, mas apenas na qualidade de administrador ou gerente das Recorrentes (cfr. pontos 4, 12, 25 e 28 da matéria de facto dada como provada na Decisão de Decretamento da Providência).
DD. De onde resulta que o Recorrido tem levado a cabo todos estes atos com o propósito único e exclusivo de prejudicar as Recorrentes, de paralisar a sua atividade e prejudicar a sua expansão, tornando-as suas “reféns” e utilizando tal situação como moeda de chantagem.
EE. Tais danos, uma vez materializados, seriam ressarcíveis nos mesmos termos em que o são os demais danos já reclamados no âmbito dos autos principais aos quais o presente procedimento cautelar se encontra apensado.
FF. Mas, como ficou também indiciariamente provado na Decisão de Decretamento da Providência, “[o] Requerido nunca terá bens suficientes para compensar as Requerentes dos danos por si causados (seja pelo valor dos danos, seja pela circunstância de o Requerido ter um historial de ocultação de bens, estando-se a tornar mais sofisticado na ocultação dos seus atos através da utilização de sociedades constituídas no Estado norte-americano do Delaware e de serviços de ocultação de dados pessoais)” (cfr. ponto 48 da matéria de facto dada como provada na Decisão de Decretamento da Providência).
GG. Por forma a evitar um adensamento desses danos, as Recorrentes requereram ao Tribunal a quo o decretamento de providência cautelar comum que ordenasse as medidas destinadas, precisamente, a evitar a materialização de mais danos.
HH. Requerendo também, atenta a conexão supra referida, a apensação do presente procedimento cautelar aos autos principais do processo n.º 10009/19.5T8LSB, no âmbito do qual se discute a responsabilidade do Recorrido pelos danos já causados em virtude das suas condutas desleais, das quais aquelas aqui em causa são mais um exemplo.
II. Perante isto, pela Decisão de Decretamento da Providência, proferida sem contraditório prévio, o Tribunal a quo julgou integralmente procedente, por provado, o presente procedimento cautelar comum, ordenando as providências requeridas
JJ. Por meio da Decisão de Incompetência, veio o Tribunal a quo julgar procedente a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria alegada pelo Recorrido, absolvendo-o da instância.
KK. O Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, violando as regras de competência aplicáveis, em particular o disposto no artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (“LOSJ”) e no artigo 364.º, n.º 3 do CPC (conclusões LL a SSS); o disposto no artigo 613.º, n.º 1, do CPC, relativo ao esgotamento do seu poder jurisdicional (conclusões BBBB a CCCC); valorando uma alegação claramente inadequada e extemporânea do Recorrido, com isso, permitindo o exercício de um direito claramente precludido (conclusões DDDD a HHHH); e o caso julgado formal formado pela Decisão Cautelar, a que se reportam os artigos 620.º, n.º 1 e 628.º do CPC e, com isso, os princípios constitucionais do acesso à tutela jurisdicional efetiva, da segurança e da confiança (conclusões IIII a RRRR).
LL. As nossas jurisprudência e doutrina têm sufragado que a competência é um pressuposto processual aferido por referência ao objeto do processo (pedido e causa de pedir) tal como configurado pelo autor/requerente – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
MM. Nessa lógica, tem-se entendido que é pela petição inicial (que contém o pedido e a causa de pedir) que o Tribunal deve decidir da sua competência, sendo, para efeito, irrelevantes os fundamentos de defesa trazidos aos autos pelo réu/Recorrido no respetivo instrumento de defesa – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
NN. À luz do Requerimento Inicial, é claro que o pedido e a causa de pedir (o objeto dos presentes autos tal como configurado pelas Recorrentes) assenta numa série de condutas levadas a cabo pelo Recorrido que são subsumíveis à violação dos deveres de lealdade que sobre este último impendiam, à luz do disposto nos artigos 64.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 1 do CSC.
OO. Com efeito, é pacífico na nossa jurisprudência e doutrina que os deveres de lealdade dos administradores e gerentes não se extinguem com a cessação do vínculo de administração, mas antes perduram após tal cessação (por imposição do princípio da boa-fé) – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
PP. Assim, as Recorrentes alegaram, no Requerimento Inicial, uma série de comportamentos desleais do Recorrido (cfr. §§ 8 a 57 do Requerimento Inicial).
QQ. Merecem particular destaque os §§ 24 e 25 do Requerimento Inicial, dos quais resulta claro que o que está em causa não é um litígio sobre a “propriedade” de um domínio de internet, mas sim um litígio sobre o comportamento de um administrador/gerente, que tendo conhecimento dos dados de acesso ao domínio de internet por força do exercício das suas funções, atua em conflito de interesses, utilizando esses dados de acesso em benefício próprio e em prejuízo da sociedade.
RR. E ainda o § 43 do Requerimento Inicial, do qual resulta, uma vez mais, que o presente litígio tem o seu cerne nos atos desleais de um ex-administrador/gerente que se vale do anterior exercício dessas funções para levar a cabo atos com intuito exclusivamente danoso.
SS. É também nesse sentido que aponta o teor dos pedidos deduzidos pelas Recorrentes, consubstanciados na condenação do Recorrido na abstenção destas condutas violadoras dos seus deveres sociais.
TT. Da leitura da Decisão de Decretamento da Providência retira-se que, perante o Requerimento Inicial, também o Tribunal a quo enquadrou o presente procedimento cautelar no âmbito da violação dos deveres de lealdade por parte do Recorrido (cfr. fundamentação de Direito, p. 27 da Decisão de Decretamento da Providência).
UU. Na modesta opinião das Recorrentes, foram estes os pressupostos que levaram o Tribunal a quo a declarar-se competente para a decisão que veio a proferir ainda antes de exercido o contraditório do Recorrido.
VV. Veio o Tribunal a quo, posteriormente, na Decisão de Incompetência, referir que, moldado o litígio com a Oposição, concluiu pela incompetência material, por considerar que daquela emerge a controvérsia sobre a propriedade do nome de domínio e marca “T...”.
WW. Não obstante sucessivamente reconhecer, de forma contraditória, que tais condutas podem suscitar o apuramento da responsabilidade do Recorrido por violação de deveres fiduciários (cfr. pp. 5 a 7 da Decisão de Incompetência).
XX. O presente procedimento cautelar tem o seu cerne na violação de deveres fiduciários que se impunham ao Recorrido, pelo que é logo aqui que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo incorre num erro de julgamento.
YY. Dispõe o artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ que “[c]ompete aos juízos de comércio preparar e julgar (…) [a]s ações relativas ao exercício de direitos sociais”.
ZZ. É unanimemente entendido entre as nossas jurisprudência e doutrina que as ações que tenham por base a atuação culposa e geradora de prejuízos por parte dos administradores ou gerentes se enquadram numa atuação que “exprime o exercício de um direito social” e que, nessa medida, são subsumíveis ao disposto na citada alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
AAA. Por força do n.º 3 do mencionado artigo 128.º da LOSJ, tal competência abrange o conhecimento das pretensões cautelares nesse campo – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
BBB. Do exposto resulta que a competência material para a decisão do presente procedimento cautelar é dos juízes de comércio, atento o seu objeto tal como configurado pelas Recorrentes, o disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3 da LOSJ e a jurisprudência e doutrina supra elencadas.
CCC. Acresce que, ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, com a sua competência não interfere a pretensa «controvérsia que respeita à propriedade do nome de domínio <T....com> e da marca “T...”».
DDD. Como resulta claramente dos §§ 24, 25 e 43 do Requerimento Inicial supra citados, a causa de pedir não reside no direito de propriedade sobre um nome de domínio ou uma marca, mas sim nos comportamentos do Recorrido em violação do seu dever fiduciário de lealdade.
EEE. Os referidos factos foram dados como indiciariamente provados pelo Tribunal a quo, nos pontos 17, 34 e 35 da matéria da de facto dada por provada na Decisão de Decretamento da Providência, tendo sido por aquele devidamente valorados e censurados, precisamente, à luz da violação dos deveres de lealdade dos administradores que sobre o Recorrido recaíam.
FFF. De onde se conclui que o Tribunal a quo enquadrou devidamente o litígio como um litígio sobre violação do dever fiduciário de lealdade.
GGG. Ainda que assim não fosse – o que por exacerbada cautela de patrocínio se equaciona – a nossa jurisprudência (cfr. supra citada) tem entendido que, sempre que a causa tenha vários objetos, o tribunal será competente para o conhecimento de todos eles, se o for para o objeto dominante ou principal.
HHH. Sendo que, como se viu, o objeto dominante ou principal dos presentes autos é a violação de deveres fiduciários de lealdade por parte do Recorrido.
III. Conclui-se que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, violando o disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3 da LOSJ e contrariando a doutrina e jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
JJJ. Também não assiste razão ao Tribunal a quo quando afirma a sua incompetência material com base numa pretensa divergência entre o objeto deste procedimento cautelar e da ação principal à qual se encontra apensado.
KKK. A título prévio, evidencie-se que não corresponde à verdade que na presente sede “o direito a proteger [seja] o direito de propriedade que as Requerentes se arrogam sobre o domínio e marca T..., que este também disputa, e não o dever de lealdade de ex administrador”.
LLL. Como acima se referiu (conclusões NN a UU), o objeto dos presentes autos (como enquadrado pelas Recorrentes e reconhecido indiciariamente pelo Tribunal a quo) não reside no direito de propriedade sobre um nome de domínio ou uma marca, mas sim nos comportamentos do Recorrido em violação dos seus deveres fiduciários de lealdade.
MMM. Sem conceder, acrescente-se, em todo o caso, que a suposta (mas inexistente) divergência sempre seria irrelevante para a determinação da competência por conexão, uma vez que não se extrai da lei nenhum comando de identidade entre o pedido da ação principal e o pedido da providência cautelar que corre por apenso àquele nos termos do n.º 3 do artigo 364.º do CPC – cfr. jurisprudência supra citada a este respeito.
NNN. Pelo contrário, é entendimento unânime nas nossas jurisprudência e doutrina que o procedimento cautelar não se confunde, quanto à sua natureza, regras ou objeto, com a ação adequada a reconhecer um direito, a prevenir/reparar a sua violação ou a realizá-lo coercivamente – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
OOO. Em particular, é evidente que, ao contrário das providências cautelares antecipatórias, as providências cautelares conservatórias (e portanto, também naquela que é aqui requerida) têm, necessariamente, um objeto e um pedido distintos da ação principal. Isso mesmo (i) resulta do teor do n.º 1 do artigo 362.º do CPC; (ii) é evidenciado pelos procedimentos cautelares especificados de caráter conservatório previstos no CPC, como o arresto ou o arrolamento cujos pedidos neles deduzidos não coincidem com os das respetivas ações principais (na ação principal que tenha por apenso um arresto não se pede o arresto definitivo dos bens e na ação principal que tenha por apenso um arrolamento não se pede o arrolamento definitivo dos bens/documentos); e é (iii) sufragado pela jurisprudência e doutrina supra citadas.
PPP. Mais, é reconhecido entre as nossas jurisprudência e doutrina que, no âmbito de uma ação de responsabilidade civil para o ressarcimento de danos causados por condutas ilícitas e culposas se pode requerer o decretamento de providência cautelar destinada a evitar a materialização de mais danos ou o agravamento de outros – cfr. jurisprudência supra citada.
QQQ. É isto, precisamente, que se pretende no presente procedimento cautelar: evitar que o Recorrido provoque danos acrescidos às Recorrentes. Sendo que, os danos entretanto provocados e os que ainda se venham a materializar serão oportunamente reclamados no âmbito da ação de indemnização à qual os presentes autos se encontram apensados.
RRR. É deste vínculo que resulta a conexão relevante para efeitos de apensação e competência por conexão do Tribunal a quo.
SSS. Ao declarar-se materialmente incompetente para conhecer do presente procedimento cautelar, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 364.º, n.º 3 do CPC.
TTT. No âmbito da Decisão de Decretamento da Providência, o Tribunal a quo declarou-se expressamente competente.
UUU. O que fez, seguramente, por ter considerado estar em jogo a violação do dever fiduciário de lealdade consagrado no artigo 64.º, n.º 1, alínea b) do CSC.
VVV. Atenta que a declaração de competência surge conjugada com o enquadramento do litígio no Direito das Sociedades Comerciais, na modesta opinião das Recorrentes, ao declarar-se expressamente competente, o Tribunal a quo não se limitou a “efetuar a denominada apreciação tabelar das questões prévias, nulidades, exceções detetáveis na ocasião”.
WWW. Em reforço, acrescente-se que, como resulta do artigo 595.º, n.º 1, alínea a) do CPC, citado pelo próprio Tribunal a quo, aquando do saneamento, impõe-se o conhecimento de todas as questões que em “face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente”.
XXX. Como resulta do disposto nos artigos 96.º, alínea a) e 97.º do CPC, a incompetência material constituiu um caso de incompetência absoluta, sendo, nessa medida, de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
YYY. Considerando que a competência material é aferida em função do pedido e causa de pedir tal como configurados pelo autor (neste caso, pelas Recorrentes), impunha-se ao Tribunal a quo, aquando da Decisão de Decretamento da Providência, decidir da sua competência.
ZZZ. Pelo que, salvo o devido respeito, tudo aponta para que, ao declarar a sua competência, o Tribunal a quo tenha efetivamente ponderado a questão.
AAAA. Como se lhe impunha, o Tribunal a quo decidiu e declarou-se expressamente competente para conhecer do presente procedimento, fazendo-o, seguramente, na convicção de que o Recorrido violou o seu dever de lealdade, estando, nessa medida, a coberto da jurisdição dos tribunais de comércio, como avulta da motivação da Decisão de Decretamento da Providência.
BBBB. A decisão mediante a qual o Tribunal a quo se declarou competente para conhecer do presente procedimento, na Decisão de Decretamento da Providência, é uma verdadeira decisão interlocutória, pelo que, dela decorrem os efeitos que o Direito atribui às decisões do Tribunal, designadamente e para o que aqui releva: o esgotamento do poder jurisdicional (cfr. artigo 613.º, n.º 1 CPC).
CCCC. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo excedeu o seu poder jurisdicional, em violação do disposto no artigo 613.º, n.º 1 do CPC.
DDDD. Atento o supra exposto, dúvidas não podem subsistir quanto a ser o recurso o meio adequado para, querendo, o Recorrido impugnar a decisão mediante a qual o Tribunal a quo se declarou competente para conhecer o presente procedimento, nos termos do disposto no artigo 372.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
EEEE. Decorrido o prazo de 15 dias que dispunha para o efeito (cfr. artigo 638.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC), o Recorrido não interpôs recurso daquela decisão.
FFFF. Perante a declaração expressa do Tribunal a quo quanto à sua competência na Decisão de Decretamento da Providência, querendo impugná-la, o Recorrido tinha o ónus de o fazer utilizando o meio adequado para o efeito e dentro dos prazos legalmente previstos para o efeito.
GGGG. Atenta a ausência de impugnação adequada, a Decisão de Decretamento da Providência produziu os seus efeitos, tendo-se formado, quanto à matéria da competência, caso julgado formal, conforme resulta do disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 628.º do CPC.
HHHH. Pelo que, o Tribunal a quo não deveria ter dado provimento à exceção dilatória de incompetência material invocada pelo Recorrido, porquanto, nessa altura, se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional quanto a essa matéria, sendo, além do mais, a arguição do Recorrido extemporânea.
IIII. A decisão mediante a qual o Tribunal a quo se declarou competente para conhecer do presente procedimento, na Decisão de Decretamento da Providência, é uma verdadeira decisão interlocutória, pelo que, dela decorrem os efeitos que o Direito atribui às decisões do Tribunal, designadamente: (o já mencionado) o esgotamento do poder jurisdicional (cfr. artigo 613.º, n.º 1 CPC) e a formação de caso julgado formal, na ausência de impugnação adequada (cfr. artigos 620.º e 628.º do CPC).
JJJJ. O Recorrido não observou o ónus que sobre ele recaía de, querendo, recorrer daquela decisão, pelo que, dúvidas não devem subsistir quanto à formação de caso julgado formal sobre a decisão de competência do Tribunal a quo constante da Decisão de Decretamento da Providência.
KKKK. Ao decidir como decidiu na Decisão de Incompetência, pronunciando-se sobre matéria objeto de decisão prévia, o Tribunal a quo violou caso julgado formal previamente formado e, nessa medida, o disposto nos artigos 620.º e 628.º do CPC.
LLLL. Como tem sido unanimemente alertado pela nossa jurisprudência, designadamente constitucional, a força e autoridade de caso julgado visam acautelar a segurança jurídica e a certeza do direito – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
MMMM. Por esse motivo, o Tribunal Constitucional vem reafirmando a intangibilidade do caso julgado como subprincípio do princípio da segurança e certeza jurídicas, próprias do modelo do Estado de Direito Democrático, emergente do artigo 2.º da CRP – jurisprudência e doutrina supra citadas.
NNNN. Com a Decisão de Decretamento da Providência, as Recorrentes criaram uma justificada confiança quanto ao enquadramento da causa de pedir, quanto à competência e quanto à tutela conferida através da providência cautelar, que veio a ser frustrada com a prolação da Decisão de Incompetência, incidente sobre matéria coberta por decisão anterior do mesmo Tribunal.
OOOO. Ao violar o caso julgado formal previamente formado e excedendo o seu poder jurisdicional já esgotado, o Tribunal a quo violou os princípios constitucionais da segurança jurídica e tutela da confiança, enquanto subprincípio do princípios do Estado de Direito Democrático.
PPPP. O Tribunal a quo violou ainda o princípio da tutela jurisdicional efetiva, com assento constitucional no artigo 20.º da CRP, ao serviço do qual se encontra, também, a força de caso julgado – cfr. jurisprudência e doutrina supra citadas.
QQQQ. Ao pronunciar-se novamente sobre questão já previamente decidida, o Tribunal a quo colocou em causa o direito das Recorrentes a uma tutela judicial eficaz e efetiva, não só porque questionou a efetividade de decisões anteriormente tomadas e cristalizadas, mas também porque, com isso, sujeitou a tutela das Recorrentes a dilações indevidas, em virtude da necessária interposição do presente recurso.
RRRR. De onde se conclui que a Decisão de Incompetência viola, também, os princípios da segurança jurídica e tutela da confiança (decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático, com assento constitucional no artigo 2.º da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (com assento constitucionalmente expressa no artigo 20.º da CRP), que abrangem, naturalmente, a tutela cautelar.
O Recorrido deduziu contra-alegações, que concluiu pela improcedência do recurso de apelação.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelas Recorrentes, a questão fundamental deste recurso é a de saber se os juízos de comércio são competentes, em razão da matéria, para conhecer do presente procedimento cautelar comum, através do qual se pretende que o Requerido se abstenha de determinadas condutas referentes ao uso do nome de domínio <T....com> ou praticar algum outro acto lesivo das Requerentes por referência a tal domínio, bem como de registar marcas com o vocábulo “T...”.
Mas, independentemente da resposta que se dê àquela questão, importa antes de mais apurar se, ao apreciar a incompetência absoluta em despacho posterior àquele em que deferiu a providência requerida – no qual, em despacho tabelar, julgou o tribunal competente –, o tribunal recorrido violou o caso julgado formal formado pela decisão cautelar, bem como se excedeu o seu poder jurisdicional, violando consequentemente os princípios da segurança e certeza jurídicas e da tutela jurisdicional efectiva emergentes do artigo 2º da Constituição Portuguesa.

3. A factualidade a considerar é a que resulta do exposto no relatório supra, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

4. Os procedimentos cautelares comuns, sendo simples instrumentos jurídicos destinados a acautelar o efeito útil das acções de que dependem, carecem, para serem concedidos, da probabilidade séria da existência de um direito e de se mostrar suficientemente fundado o receio da sua lesão (artigo 368º, nº 1 do CPC). E, como todos os procedimentos cautelares, têm, em regra, carácter instrumental e subordinado relativamente à acção já proposta ou a propor, destinada a tutelar, em definitivo, o direito invocado pelo requerente. Ou seja, “as providências não constituem um fim em si mesmas, mas antes um meio para se acautelar um determinado efeito jurídico”.[2] Por isso, salvo quando tenha sido decretada a inversão do contencioso (artigo 364º, nº 1 do CPC), as providências cautelares não possuem a idoneidade de se transformarem numa tutela definitiva do direito do requerente, que não pode obter por essa via mais do que poderia alcançar através da sentença definitiva, estando o tribunal inibido de “decretar uma providência cautelar cujos efeitos sejam irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a acção principal.”[3] De todo o modo, embora não se exija uma perfeita identidade entre a providência e a acção principal, aquela deve apresentar-se com uma função instrumental relativamente à medida definitiva.[4]
4.1. No caso dos autos, feita uma apreciação liminar do requerimento inicial, o tribunal a quo inquiriu as testemunhas arroladas pelas Requerentes e decretou a providência requerida. Após a citação do Requerido, tendo este deduzido oposição, veio arguir a excepção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria. Na sequência de tal arguição, foi proferido despacho que declarou a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, e, consequentemente, absolveu o Requerido da instância.
Entendem as Recorrentes que o Tribunal, ao decretar a providência, declarou-se expressamente competente, o que fez depois de ponderar a questão, isto é, na convicção de que o Recorrido havia violado o seu dever de lealdade, estando, nessa medida, a coberto da jurisdição de comércio, como resulta da motivação daquela decisão. Por essa, razão, sustentam que com a prolação da decisão de decretamento da providência, ficou esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo quanto à sua competência material. Daí que, ao proferir a decisão de incompetência absoluta do tribunal – objecto do presente recurso – o Tribunal a quo violou o caso julgado formal e consequentemente os princípios da segurança e certeza jurídicas e da tutela jurisdicional efectiva.
Cremos, no entanto, que, no que respeita a esta questão prévia, não assiste razão aos Recorrentes, desde logo, porque o Tribunal, como bem se refere na decisão impugnada, “limitou-se a efectuar a denominada apreciação tabelar das questões prévias, excepções detectáveis na ocasião, [não] revestindo tal apreciação o valor de caso julgado formal”.
Com efeito, como decorre do artigo 595º, nº 3, 1ª parte do CPC, qualquer decisão sobre incompetência absoluta só constitui caso julgado formal “quanto às questões concretamente apreciadas”.[5] Como exemplificam CASTRO MENDES e TEIXEIRA DE SOUSA, “se se levantou a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses, mas o tribunal resolveu-a no sentido de estes a possuírem para a questão sub judice, pode posteriormente levantar-se a questão da incompetência em razão da matéria ou da hierarquia.”[6] Ou como realçam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, na nota 4 do comentário ao artigo 595º, “o caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou excepções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não valendo como tal a mera declaração genérica sobre a ausência de alguma ou da generalidade das excepções dilatórias (nº2) (v.g. “o tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia; as partes são dotadas de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas; nada obsta à apreciação do mérito da causa…”)[7]. Foi precisamente o que ocorreu nos presentes autos, ao fazer-se consignar no despacho que decretou a providência requerida, que “O Tribunal é competente. O processo é o próprio. As partes apresentam-se com personalidade e capacidade sendo legítimas. Não há nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem a que se decida.”, não se verificando, pois caso julgado formal, como afirmado pelas Recorrentes.
Como tal, também não se havia esgotado o poder jurisdicional quanto à questão da competência, designadamente em razão da matéria. Na verdade, enquanto a decisão não transitar em julgado, a incompetência absoluta do tribunal pode ser suscitada não apenas na contestação, mas em momento posterior, em qualquer estado do processo. Como preceitua o nº 1 do artigo 97º do CPC, “a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, excepto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferido sobre o fundo da causa.” Assim, tendo sido citado o réu, se este na contestação alegar a incompetência absoluta do tribunal, o juiz ou conhece imediatamente da excepção (depois de o autor ter tido a oportunidade de sobre ela se pronunciar), ou reserva o seu conhecimento para o despacho saneador (artigo 98º do CPC). Caso se trate de incompetência material respeitante aos tribunais judiciais, a excepção só poderá ser arguida ou oficiosamente conhecida até ser proferido o despacho saneador, ou se a tramitação da causa o não prever, até ao início da audiência final (artigo 97º, nº 2 do CPC).
No caso dos autos foi precisamente essa a situação ocorrida: após ter sido citado para os termos do procedimento cautelar – que havia sido decretado sem audiência prévia do Requerido –, este deduziu oposição no âmbito da qual invocou a excepção da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, tendo as Requerentes apresentado resposta à arguida excepção. Temos, pois, que a excepção dilatória de incompetência absoluta foi arguida e apreciada pelo tribunal nos prazos e termos legais, sem que tivessem sido violadas as normas constantes dos artigos 613º, nº 1, 620º, nº 1 e 628º todos do CPC, por a decisão cautelar não formar caso julgado formal relativamente à questão da competência do tribunal e por não estar esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a mesma questão.
Acresce que o despacho objecto de recurso também não infringiu quaisquer princípios constitucionais, nomeadamente, os princípios de acesso à tutela jurisdicional efectiva, da segurança e da confiança. Como já foi decidido pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 54/2024, de 18 de Janeiro de 2024, no proc. 1137/2022, a protecção das regras de competência jurisdicional não ofende qualquer preceito fundamental, na medida em que a fixação de critérios de competência não tem por propósito dificultar o acesso à via jurisdicional, mas a facilitação do contraditório, o acesso à Justiça e a justa composição do litígio. Não há qualquer ofensa ao direito a um processo equitativo pela viabilidade de, antes do trânsito em julgado da decisão que decidiu sobre o mérito da causa, se permitir a arguição e declaração de incompetência absoluta do tribunal, desde logo porque os casos em que se admite a declaração de incompetência absoluta depois da prolação da sentença de mérito são, em regra geral, aqueles em que a ordem judiciária decidente carece de jurisdição, seja porque a causa está atribuída a outra ordem jurisdicional, seja porque não há competência internacional dos órgãos jurisdicionais portugueses. Nessa medida, como sustenta o Tribunal Constitucional no referido acórdão, a viabilidade de declaração de incompetência em fase de recurso impede que se cristalize no ordenamento jurídico um acto jurisdicional inapto a produzir efeitos. Por outro lado, o legislador salvaguardou o aproveitamento dos actos processuais que não sejam feridos pela falta de poderes de jurisdição, tutelando, na medida do possível, as expectativas entretanto depositadas no processo tramitado por tribunal incompetente, admitindo que o autor requeira a remessa dos articulados ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, não se inutilizando o esforço e custos associados à litigância no tribunal incompetente. Ora, o tribunal a quo, mais não fez do que apreciar, na altura devida, a questão da incompetência absoluta em razão da matéria, depois de o Requerido a ter arguido, na primeira vez que interveio no processo. Ou seja, limitou-se a apreciar a questão da incapacidade material, levantada nessa altura, e não antes, em conformidade com o disposto nos artigos 97º, nº 2 e 98º do CPC.
4.2. Apreciadas ambas as questões prévias colocadas pelas Recorrentes, é altura de responder à questão principal, senão a única, e que é a de saber se se mantém ou não a competência material de os Juízos de Comércio tramitarem o procedimento cautelar comum requerido pelas ora Recorrentes.
Sobre a questão da competência, dizem as Recorrentes que se afere pelo pedido e pela causa de pedir, pelo que tendo sido atribuído ao Requerido, no requerimento inicial, a prática de uma série de condutas subsumíveis à violação dos deveres de lealdade – à luz do disposto nos artigos 64º, nº 1, alínea b) e 72º, nº 1, ambos do Código das Sociedades Comerciais (CSC) – que sobre este impediam enquanto administrador das Requerentes, o presente procedimento cautelar terá o seu cerne na violação de deveres fiduciários que se impunham ao Recorrido. Assim sendo, concluem que o tribunal a quo é materialmente competente por força do disposto no artigo 128º, nº 1, alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), bem como por força do preceituado no artigo 364º, 3 do CPC.
Com efeito, é um dado assente quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a competência se afere “em função dos termos da acção, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respectivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão”.[8]
No caso dos autos, a pretensão cautelar das sociedades Requerentes, como já se havia dito, visa impedir o Requerido, ex-administrador daquelas, de praticar determinadas condutas referentes ao uso do nome de domínio <T....com> ou de praticar algum outro acto lesivo das Requerentes por referência a tal domínio, bem como de registar marcas com o vocábulo “T...”. E fundam essa sua pretensão, essencialmente, na violação por parte do Requerido, na qualidade de ex-administrador das sociedades Requerentes, dos deveres de lealdade posteriores à cessação do vínculo de gerência, cuja manutenção após a cessação do vínculo é uma mera aplicação ao direito das sociedades do princípio geral da boa-fé na relação contratual, nomeadamente do instituto da pós-eficácia das obrigações ou culpa post pactum finitum.
Na verdade, segundo o nº 1 do artigo 72º do CSC, a violação dos deveres legais gerais – deveres de cuidado e de lealdade (artigo 64º) – por parte dos administradores em relação à sociedade, constitui comportamento ilícito que, verificados os restantes pressupostos, implica também responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade.[9] Esta responsabilidade perante a sociedade é efectivada através da chamada acção social, a qual pode assumir duas modalidades: i) a acção social ut universi, prevista no artigo 75º do CSC, e que é proposta pela própria sociedade; e, ii) a acção social ut singuli, prevista no artigo 77º do CSC, que, quando a sociedade não delibere propor a acção, pode ser subsidiariamente proposta por sócios que tenham uma determinada percentagem do capital.[10]
Ora, a questão de saber qual é o tribunal competente, em razão da matéria, para julgar as acções de responsabilidade dos administradores tem merecido da doutrina e da jurisprudência respostas divergentes. Assim, para LEBRE DE FREITAS, o exercício do direito à indemnização (pela sociedade, pelo sócio ou por credor), não visa assegurar o regular funcionamento actual da sociedade, mas antes reparar danos verificados em consequência da actuação passada dos seus administradores ou gerentes, não constituindo, por isso, um direito social, mas um direito da sociedade contra terceiro devedor. Entende, por isso, que cabe aos tribunais de competência genérica conhecer da acção social ut universi.[11] Já para COUTINHO DE ABREU e MARIA ELISABETE RAMOS, “em face do direito positivo, os juízos do comércio são competentes para julgar a acção social ut universi”, cuja causa de pedir “é consubstanciada pelos factos que integram os pressupostos jurídico-societários da responsabilidade perante a sociedade”. Além disso, acrescentam, “a expressão “direitos sociais” [constante da alínea c) do nº 1, do artigo 128º da LOSJ] não impede uma interpretação de modo a abranger (também) o exercício de direitos da sociedade contra os seus administradores.”[12]
No que respeita à jurisprudência, é hoje entendimento pacífico que os juízos de comércio são competentes, nos termos conjugados dos artigos 72.º e 75.º do Código das Sociedades Comerciais, pois estamos face a uma acção relativa ao exercício de direitos sociais.[13] Para o STJ, a expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do nº 1 do artº. 128º da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direitos dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “acções relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros.”[14] Com efeito, se o artigo 128º, nº 1, alínea c) da LOSJ determina que compete aos juízos de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais e, se a acção de responsabilização dos gerentes ou administradores que, no exercício das suas funções, causaram prejuízos à sociedade corresponde ao exercício de direitos sociais, é certo que os juízos de comércio são os competentes materialmente para julgar esta acção. E, se os juízos do comércio são competentes, materialmente, para preparar e julgar a acção social de responsabilização dos gerentes ou administradores, que, no exercício das suas funções, causaram prejuízo à sociedade, também o serão para o conhecimento de uma pretensão cautelar que foi apensada àquela acção e onde se alega, precisamente, a violação do dever de lealdade por parte do ex-administrador e que justificou um pedido indemnizatório formulado na acção principal. Conforme decorre da alínea d), do nº 1 do artigo 78º do CPC, “o procedimento cautelar comum e os demais procedimentos especificados previstos no CPC (restituição provisória de posse, suspensão de deliberações sociais, alimentos provisórios e arbitramento de reparação provisória) seguem as regras de competência previstas para a respectiva ação”.[15] Esta regra que decorre das características de instrumentalidade e dependência do procedimento cautelar relativamente à acção definitiva, implica que, caso tenha sido accionado na pendência da acção, é necessariamente instaurado por apenso, a não ser que o processo principal tenha subido em recurso.[16] Daí que assista razão às Recorrentes quando afirmam que o tribunal a quo é também materialmente competente por força do disposto no nº 3 do artigo 364º do CPC. Como o próprio tribunal reconheceu na decisão de decretamento da providência, o requisito da provável existência do direito das Requerentes (fumus boni juris) mostra-se preenchido por referência aos artigos 64º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 1, ambos do CSC. Ou seja, a causa de pedir da pretensão cautelar, expressamente formulada no requerimento inicial, não se funda no “direito de propriedade que as Requerentes se arrogam sobre o domínio e marca T...”, mas sim na violação dos deveres fiduciários de lealdade enquanto ex-administrador daquelas. Mesmo que não houvesse uma perfeita identidade entre o objecto do procedimento cautelar e o da acção principal, bastava que a providência se apresentasse com uma função instrumental relativamente à medida definitiva, o que parece que se verifica.
Em suma, procedendo, nesta parte, as alegações de recurso, declara-se a competência em razão da matéria do tribunal a quo para tramitar o procedimento cautelar requerido pelas ora Recorrentes.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a presente apelação, e, consequentemente, revogando o despacho recorrido, julgar competente em razão da matéria, para conhecer da causa, o Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 6.
Custas da apelação a cargo do Recorrido.

Lisboa, 9 de Abril de 2024
Nuno Teixeira
Manuel Ribeiro Marques
Teresa de Jesus de Sousa Henriques
_______________________________________________________
[1] Não se transcreveram as alíneas A. a R. das longas e desnecessárias conclusões por não se referirem ao objecto do recurso.
[2] Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Providências Cautelares, 4ª Edição, Coimbra, 2019, pág. 120.
[3] Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Ob. Cit., pp. 122-123.
[4] Cfr. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, 4ª Edição, Coimbra, pp.150-157.
[5] Ficou, assim, consagrada legalmente, para todas as excepções dilatórias e nulidades, a tese limitativa da extensão do caso julgado, com base no fundamento concreto em que a decisão se apoia, que, já para ANTUNES VARELA, era a que correspondia à orientação mais razoável, no plano do direito constituendo (cfr. Manual de Processo Civil, Coimbra, 1984, pág. 380).
[6] Cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, 2022, pág. 165. Também para ANTUNES VARELA, “o facto de, no despacho saneador, o juiz ter julgado improcedente a excepção e, nessa conformidade, haver declarado competente o tribunal, não impedirá (…) que as partes venham alegar ou o próprio juiz possa reconhecer, depois de transitado em julgado o despacho, que o tribunal é (absolutamente) incompetente, em função da matéria ou da hierarquia, por exemplo, ou até da nacionalidade, mas, neste caso, com um fundamento concreto diferente do apreciado no despacho saneador (cfr. Ob. Cit, pág. 380).
[7] Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 720.
[8] Cfr. STJ, Ac. de 11/10/2022 (proc. 4669/21.4T8VNF-C.G1.S1), disponível em www.direitoemdia.pt.
[9] Cfr. COUTINHO DE ABREU/MARIA ELISABETE RAMOS, “Comentário ao artigo 72º” in [coord. COUTINHO DE ABREU], Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2017, pág. 899.
[10] Cfr. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Lições e Casos de Direito das Sociedades, Lisboa, 2023, pág. 451 e ss..
[11] Cfr. “Do tribunal competente para a acção de responsabilidade de gerente ou administrador de sociedade comercial”, em Estudos dedicados ao Prof. Doutor Luís Carvalho Fernandes, volume III, UCP (volume especial de Direito e Justiça), 2011, pp. 315-316. Na jurisprudência ver TRP, Ac. de 13/05/2008 (proc. 0721243), disponível em www.dgsi.pt/jtrp.
[12] Cfr. “Comentário ao artigo 75º” in [coord. COUTINHO DE ABREU], Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2017, pp. 940-942.
[13] O Ac. do STJ de 17/09/2009 (proc. 94/07.8TYLSB.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt/jstj, entendeu que o tribunal de comércio é materialmente competente para julgar uma acção social de responsabilidade. Decidiu que “a acção intentada  pela sociedade contra os anteriores sócios-gerentes a quem é pedida a indemnização – a favor da sociedade – baseada na sua actuação culposa e geradora de prejuízos é uma acção ut universi que exprime o exercício de um direito social”. O mesmo STJ, no Ac. de 08/05/2013 (proc. 612/08.4TVPRT.P1.S1), também disponível em www.dgsi.pt/jstj, decidiu igualmente que “no âmbito societário, a acção com vista ao reconhecimento do direito de indemnização da sociedade contra os seus administradores, fundada em responsabilidade civil, corresponde ao exercício de um direito social porque expressamente conferido pela lei societária”.
[14] Cfr. STJ, Ac. de 26/10/2022 (proc. 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[15] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Ob. Cit., pág. 111.
[16] Cfr. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, Coimbra, 1998, pág. 127.