Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7371/2007-1
Relator: MARIA DO ROSÁRIO BARBOSA
Descritores: LEASING
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário:
    1. Nos termos do art. 344º, nº 2 do C.Civil "há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações".
    2. Deste normativo logo se constata que este instituto exige a verificação de dois pressupostos:

    a) que a prova de determinada factualidade, por acção - comissiva ou omissiva - da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer;
    b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.
    3. no caso dos autos incumbia ao A. a prova da existência do contrato.
    4. O A. alega ter-se extraviado dos seus arquivos o contrato em causa nos autos. E que o R. tem na sua posse duplicado de  tal contrato. Assim sendo e não obstante o R. não ter entregue tal contrato, não estamos perante uma situação em que se torne impossível a prova do contrato pelo que não há lugar à inversão do ónus da prova.
M.R.B.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam nesta secção cível os juízes do tribunal da Relação de Lisboa

S, SA intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário contra V pedindo que seja reconhecido judicialmente a resolução do contrato de locação financeira celebrado entre as partes e a condenação deste a restituir o bem locado e a pagar o montante de 2. 814,03 Euros correspondente às rendas e despesas com transferências bancárias vencidas e não pagas, 4.328,64 euros a título de indemnização prevista na 21 Clausula das Condições Gerais do Contrato, 2.391, 00 euros a titulo de juros vencidos bem como na indemnização devida pela mora na entrega do veiculo locado prevista no art. 1045, nº 1, do C. Civil e clausula 24 do contrato no montante de 29. 651, 37 euros, bem como nas quantias que se vencerem até entrega do bem.

O Réu apesar de regularmente citado não contestou.
A A. apresentou alegações escritas.
Foi proferido despacho determinando que o R juntasse aos autos o duplicado do contrato de locação financeira tal como havia sido requerido pela A. na petição.
O R. não juntou tal documento.
O tribunal a quo solicitou tal junção à A.
A fls. 58 a A requereu o prosseguimento dos autos, alegando que o contrato se extraviou dos seus arquivos pelo que não pode juntá-lo.
A fls. 63 veio a A informar que o R pagou extrajudicialmente 30.000,00 euros requerendo a redução daquele montante a título da quantia peticionada pela mora na entrega do equipamento locado.
A fls. 70 a A. veio requerer que o tribunal proferisse sentença.
A fls. 47 foi proferido despacho ao abrigo do art. 481, nº1, do CPC, julgando confessados os factos articulados pela A.

Foi proferida sentença que julgou improcedente por não provada a acção intentada pela A., absolvendo o R. do pedido formulado.

A A interpôs o presente recurso de apelação.

São as seguintes as conclusões de recurso apresentadas.

“ CONCLUSÕES:
a) O Meritíssimo Juiz a quo julgou a presente acção improcedente, porquanto entende que a não apresentação pela A. do contrato de leasing celebrado com o Réu determina, por si só, a improcedência da acção.
b) Com efeito, considerou que sendo exigida a forma escrita para a celebração do contrato de leasing, este não pode ser substituído por outro meio de prova, ou por outro documento que não seja de força probatória superior (art. 364º n.º 1 do C.C.),
c) Pelo que, a revelia absoluta do Réu é irrelevante, uma vez que não pode a falta de documento escrito que a lei expressamente exige, ser substituída por depoimento testemunhal, e, nem sequer, no caso em apreço, por confissão, por não se enquadrar na previsão do art. 364º n.º 2 do C.C.;
d) Ademais, face ao extravio do contrato de leasing, deveria a A. proceder à reforma judicial do mencionado documento.
e) Ora, considera a A., e salvo devido respeito, que é muito, que a decisão recorrida não fez a correcta aplicação dos preceitos legais aplicáveis ao caso sub judice, porquanto
f) A A. alegou os seguintes factos:
- No exercício da sua actividade, a A. celebrou com o Réu, no dia 23.08.1999, um contrato de locação financeira;
- Tal contrato teve por objecto uma máquina escavadora da marca Komatsu, modelo PC 240 NLC – 5, a qual foi efectivamente entregue ao R (cfr. DOC. n.º 3 da PI);
- O Recorrido incumpriu as obrigações que assumiu em virtude do referido contrato, nomeadamente não pagou as rendas convencionadas;
- Foi o Recorrido interpelado ao pagamento dos valores em dívida, por carta registada com aviso de recepção, datada de 11.10.2002 (cf. dos. n.º 4 da PI);
- Carta essa que foi efectivamente recebida pelo R., conforme resulta do respectivo aviso de recepção (cf. doc. n.º 5 da PI);
- Pelo que operou validamente a resolução do contrato celebrado.
- Até à data, o R. não pagou a totalidade dos montantes em dívida, nem procedeu à entrega do equipamento à A.
g) Acresce que, tal como alegado pela A. no art. 5º da PI, por lapso dos seus arquivos, o duplicado do contrato de leasing de que a A. dispunha encontra-se extraviado.
h) Assim sendo, e uma vez que os contratos de locação financeira são sempre celebrados em duplicado, ficando cada um dos contraentes com uma cópia,
i) Solicitou a A., desde logo no art. 7º da sua PI, a notificação do Réu para juntar aos autos cópia do contrato de locação financeira.
j) Todavia, apesar de regularmente notificado, o Réu não cumpriu com o doutamente ordenado, tendo sido condenado em multa (art. 532º e 519º CPC).
k) Ora, resulta da conjugação dos arts. 529º CPC, 519º n.º 2 CPC e art. 344º n.º 2 CC, que a omissão culposa por parte do R. na junção de cópia do mencionado contrato, determina a inversão do ónus da prova.
l) Estabelece o art. 344º n.º 2 do CC que “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (...)”, o que sucede no caso sub judice, uma vez que o Réu regularmente notificado para juntar aos autos a cópia do contrato, nada fez, nem nada veio dizer, sendo certo que sem cópia do mencionado contrato fica a A. impossibilitada de provar a celebração do mesmo, dada a ausência de outros meios de prova legalmente admissíveis para a prova da sua celebração (art. 364 n.º 1 do CC e 655º n.º 2 CPC).
m) Desta forma, não sendo admissível a confissão dos factos em virtude da revelia absoluta do R. (art. 364º n.º 1 CC, art. 485º al. d) CPC), certo é que a prova da celebração do contrato de locação financeira não incumbe assim à A..
n) Com efeito, a omissão de colaboração culposa do Réu, determinou a impossibilidade de prova à contraparte/Autora, a qual se encontra onerada com o ónus da prova,
o) Pelo que, a inversão deste ónus da prova decorrente de tal omissão de colaboração, implica o proferimento de uma decisão de mérito contra a parte/Réu sobre a qual não cabia inicialmente a demonstração do facto.
p) Por último, não poderia a A. lançar mão do processo especial de reforma judicial de documentos, porquanto este processo foi previsto para situações de desaparecimento irreversível, o que não sucede com o contrato de leasing objecto dos presentes autos, dado que o R. tem em sua posse cópia do mesmo.
q) Face ao exposto, a procedência do presente recurso é manifesta.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas, deve ser julgado procedente por provado o presente recurso, anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências.”

Objecto do recurso
Nos termos do disposto nos art. 684, nº3 e 4 e 690, nº1, do CPC o objecto do recurso delimita-se, em princípio, pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art. 660, ex. vi do art. 713, nº2, do mesmo diploma legal.

- Os factos a ter em consideração para apreciação do recurso são os seguintes:
1. No exercício da sua actividade, a A. celebrou com o Réu, no dia 23.08.1999, um contrato de locação financeira;
2. -Tal contrato teve por objecto uma máquina escavadora da marca Komatsu, modelo PC 240 NLC – 5, a qual foi efectivamente entregue ao R (cf. DOC. n.º 3 da PI);
3.O Recorrido incumpriu as obrigações que assumiu em virtude do referido contrato, nomeadamente não pagou as rendas convencionadas;
4. Foi o Recorrido interpelado ao pagamento dos valores em dívida, por carta registada com aviso de recepção, datada de 11.10.2002 (cf. doc. n.º 4 da PI);
5. Carta essa que foi efectivamente recebida pelo R., conforme resulta do respectivo aviso de recepção (cf. doc. n.º 5 da PI);
6. Até à data, o R. não pagou a totalidade dos montantes em dívida, nem procedeu à entrega do equipamento à A.
7. No decurso do processo o R pagou extrajudicialmente 30.000,00 euros à A.
8. Por lapso dos seus arquivos, o duplicado do contrato de leasing de que a A. dispunha encontra-se extraviado.
9. Solicitou a A., desde logo no art. 7º da sua PI, a notificação do Réu para juntar aos autos cópia do contrato de locação financeira.
10. Todavia, apesar de regularmente notificado, o Réu não cumpriu tendo sido condenado em multa (art. 532º e 519º CPC).
11. A A. não juntou aos autos o contrato que se discute nesta acção.

Qui juris?
A questão colocada nas conclusões de recurso é a de saber se o tribunal a quo perante a ausência de contestação do R e a sua não colaboração ao não juntar aos autos o contrato de leasing, apesar de para tal ter sido instado pelo tribunal, deveria ter julgado a acção procedente por neste caso se verificar a inversão do ónus da prova.


Dispõe o art. 344º, nº 2, do C.Civil que “há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações".
Deste normativo logo se constata que este instituto exige a verificação de dois pressupostos:
a) que a prova de determinada factualidade, por acção - comissiva ou omissiva - da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer;
b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.
A "inversão do ónus da prova" surge, assim, como uma forma de sanção civil, punitiva de uma ilicitude civil, que, inclusive, pode revestir enquadramento penal, sob a tipificação dos crimes de desobediência ou de falsas declarações.
O princípio violado é o do dever de cooperação para a descoberta da verdade que, visando uma sã administração da justiça e a obtenção de uma decisão de mérito, o mais possível correspondente, em termos judiciários, à verdade material subjacente, vincula todas as pessoas e que se encontra explicitado no art. 519º, nº1 do CPC, nos seguintes termos:
“Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestara sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que foram determinados”.
Por sua vez, a 2ª parte do nº 2 do art. 519º sugere a mesma ideia da culpa na violação de tal dever de cooperação por quem seja parte.
Na verdade, dispõe tal preceito legal: "Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344º do Código Civil".
A este propósito, segundo Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, pág. 185, há inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º do C Civil, “quando, por exemplo, o condutor do automóvel destrói, após a colisão, os indícios da sua culpa no acidente de viação, quando uma das partes impede a testemunha oferecida pela outra de se deslocar ao tribunal, quando a parte notificada para apresentar um documento não o apresenta (art. 529) ou declara que não o possui, tendo-o já possuído e não provando que ele desapareceu ou foi destruído sem culpa sua (art. 530-2), quando o réu em acção de investigação de paternidade se recusa a permitir o exame do seu sangue e quando, duma maneira geral, a parte recusa colaborar para a descoberta da verdade (art. 519-2).
No caso subjudice a A. Alega ter-se extraviado dos seus arquivos o contrato em causa nos autos. E que o R. tem na sua posse duplicado de tal contrato.
Estamos perante um contrato de locação financeira regido pelo DL 149/95 exigindo a lei que a celebração seja feita por documento escrito. A ser assim a lei não permite que a prova do contrato seja feita por qualquer outro meio de prova ou por documento que não seja de força probatória superior- cf. Art 1º do citado DL e art. 364,nº1, do C. Civil.
Como assim, a falta de tal documento não pode ser substituida por prova testemunhal ou por confissão por não se verificar a previsão do art. 364, 2 do C. Civil.
A prova do contrato incumbe à A.

Mas neste caso(em que a A. Alega não ter tal contrato porque se terá extraviado) nem sequer nos podemos socorrer da inversão do ónus da prova pois que para que isso pudesse acontecer seria necessário que a prova de determinada factualidade, por acção - comissiva ou omissiva - da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer.
Ora, alegando a recorrente que o documento existe embora tenha desaparecido pelo menos da sua posse deveria ter recorrido previamente à reforma judicial do documento nos termos do art. 367 do C. Civil e 1069 e ss do CPC uma vez que não estamos perante uma situação em que a prova da existência do contrato se tenha tornado impossível de fazer.

As conclusões de recurso não podem proceder.

DECISÃO
Pelo exposto acordam em julgar improcedente a apelação confirmando a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2008.
Maria do Rosário Barbosa
Rosário Gonçalves
Maria José Simões