Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
548/17.8T8PDL.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: Sumário (art.º 663º nº 7 do CPC)

1. A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica a outra anterior já decidida, por sentença com trânsito em julgado, e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.

2. Tanto o caso julgado material, como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão.

3. O caso julgado material cobre a decisão proferida sobre o fundo ou mérito da causa, tem força obrigatória, não só dentro do processo em que a decisão é proferida, mas principalmente fora dele.

4. O caso julgado formal aproveita às decisões de carácter processual e é gerado, em regra, por qualquer decisão judicial

5. A decisão transitada em julgado que declarou a incompetência material do Tribunal só tem força obrigatória dentro do processo.

6. No âmbito da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ), regulamentada pelo Decreto-Lei nº 49/2014, de 27/03 (RLOSL) nas comarcas onde não foram criadas Secções de Comércio, como é o caso da Comarca dos Açores, é da competência da Instância Local, e não da Instância Central, a tramitação dos processos de insolvência, independentemente do valor da causa, por força do disposto no artigo 117º, nºs 1 e 2 da LOSJ e atenta a competência residual da Instância Local.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I. RELATÓRIO

MARIA ……, residente na Rua …… em Ponta Delgada, requereu, em 24.02.2017, na Instância Local, Secção Cível, do Tribunal de Ponta Delgada, a declaração do seu estado de insolvência, nos termos do disposto no artigo 20.º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março.

Fundamentou, a autora, no essencial, esta sua pretensão da forma seguinte:
1. Em 28.12.2016, a requerente apresentou-se à insolvência junto da Instância Central – Secção Cível do Tribunal de Ponta Delgada, atendendo ao valor do activo que apresenta (119.764,35€), tendo dado origem ao processo 3429/16.9 T8PDL, que correu os seus termos no Juiz 3, tendo sido proferido em 08.02.1017, despacho de indeferimento do pedido de declaração de insolvência por incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, alegando a competência da Instância Local Cível (agora Juízo Local Cível) para o conhecimento de quaisquer processos de Insolvência em razão da matéria, mais decidindo encontrar-se excluída a possibilidade de remessa dos autos ao Tribunal competente, pelo que veio a requerente apresentar-se à insolvência junto da Instância competente (Instância Local) em razão da matéria.
2. A requerente nasceu a 5 de Setembro de 1965, em 24 de Março de 1985 a requerente casou com Pedro ….., tendo com este celebrado casamento civil sem convenção e na constância desse casamento nasceu Rui …., em 15 de Agosto de 1989, e Rita …., em 21 de Fevereiro de 1994
3. Porém, em 1 de Outubro de 2008 o casamento veio a ser dissolvido por divórcio decretado por sentença, transitada em julgado em 31 de Outubro de 2008, sentença essa proferida no âmbito do Proc. n.º 314/08.1TMPDL (Divórcio Litigioso, o qual correu os seus termos no Tribunal de Família e Menores de Ponta Delgada)
4. Regulação do Poder Paternal relativamente à menor Rita foi acordada no âmbito do processo referido supra e posteriormente alterado (Proc. n.º 314/08.1 TMPDL-C), porquanto o regime de guarda partilhada teve que ser revisto, em virtude do requerido Pedro …. ter mudado de residência para o continente, impondo-se a respectiva alteração.
5. A menor Rita, na altura do divórcio ficou a viver exclusivamente com a mãe, ora requerente, (e em boa verdade desde 2008), e ficou o pai obrigado a pagar uma pensão de alimentos no valor de 100€ (cem euros) mensais, a qual nunca pagou, pelo que foi a requerente quem sempre providenciou pelo sustento dos filhos, bem como o seu.
6. Na constância do casamento foram contraídos empréstimos pela requerente e ex-marido, de avultado valor, nomeadamente, empréstimo n.º 00029996894 na ordem dos 42.000,00 junto do então BCA, depois BANIF e actual Santander Totta, e empréstimo habitação n.º 1154243753 no valor de 192.000,00, junto do Millennium BCP.
7. Após o divórcio, requerente e ex-marido acordaram que a casa de morada de família ficaria adjudicada à requerente, que asseguraria a amortização do respectivo empréstimo até à partilha e o ex-marido ficaria responsável pelo pagamento do empréstimo do BANIF.
8. Sucede, porém, que o ex-marido da requerente havia contraído outras dívidas, desconhecidas por esta, e veio a requerente a ser surpreendida por uma execução movida por Manuel …., em Março de 2012, no valor de 13.373,41€, a qual deveria ter sido suportada exclusivamente por aquele, o que nunca fez.
9. Na verdade, o ex-marido da requerente, Pedro …. que nunca chegou a pagar a pensão de alimentos à filha Rita e tão pouco prestou qualquer auxílio ao filho Rui – porque maior de idade, bom estudante mas com percurso irregular devido a um conturbado período relacionado com o consumo de estupefacientes – acabou, eventualmente, por deixar de pagar o já referido empréstimo ao BANIF, ficando a requerente a suportar todos estes encargos em exclusivo, o que se tornou incomportável.
10. Porque as dificuldades financeiras começaram a ser muitas, os filhos da requerente tiveram que deixar de estudar e trabalhar, contribuindo para o sustento do lar, (nomeadamente alimentação e alguns consumos domésticos), de forma intermitente e consoante a oferta de trabalho na ilha que se conhece ser escassa.
11. Por outro lado, durante algum tempo, (período que a requerente por ora não sabe precisar), a requerente concentrou-se em ajudar o filho Rui a ultrapassar o seu problema de toxicodependência e a pagar dívidas por aquele contraídas relacionadas com o consumo e que o colocavam em perigo de reincidência, bem como em ajudá-lo a retomar o seu percurso escolar, o que veio a conseguir.
12. Por ocasião do divórcio, a prestação mensal referente ao empréstimo habitação era de 786,99€, acrescido do respectivo seguro de protecção hipotecária (apólice n.º 401000719 da APRIL), cujo prémio mensal é de 160,46€, sendo a prestação mensal referente ao empréstimo contraído junto do BANIF de 300€.
13. Pelos motivos expostos supra e porque, obviamente, os encargos financeiros eram incomportáveis para a requerente, a mesma tentou e logrou conseguir, ainda que temporariamente, que ambas as prestações dos empréstimos baixassem, nos moldes seguintes:
a) no empréstimo habitação a requerente conseguiu um período de 5 anos de carência de capital, baixando a prestação mensal para 300€;
b) no empréstimo contraído junto do BANIF, actual Santander Totta, a requerente conseguiu baixar a prestação para 150€.
14. Só em 15 de Outubro de 2015 requerente e ex-marido formalizaram a partilha subsequente ao divórcio, numa tentativa desesperada daquela em manter a casa de morada da família e honrar os seus compromissos financeiros, admitindo a requerente que no decurso da sua vida conjugal o ex-cônjuge tivesse contraído mais dívidas que não se encontrem esclarecidas e cuja exacta existência a mesma desconheça.
15. Atentas as suas circunstâncias pessoais e familiares, a requerente necessitou de obter mais dinheiro para fazer face às suas despesas mensais, o que conseguiu através do uso do cartão de crédito – Cartão M Ordenado – com plafond até 2.250€, cuja prestação mensal é de 75,02€, e também com o recurso a um crédito pessoal consolidação – n.º 2638442692 – no valor aproximado de 1.500€, cuja prestação mensal é de 82,89€, ambos contraídos junto do Millennium BCP.
16. Apesar de ter logrado prestações mais baixas dos empréstimos, o certo é que para continuar a manter a prestação do crédito habitação no montante mais reduzido (300€) a requerente necessita que o seu ex-cônjuge assine um documento, sendo que o mesmo recusa-se a fazê-lo novamente, pelo que a benesse obtida junto do Millennium BCP terminou em Novembro de 2016.
17. No que se refere ao empréstimo do Santander Totta, a prestação reduzida (de 150€) terminou em Junho de 2016; a requerente tentou renegociar a dívida junto da instituição, mas tal não foi possível.
18. A requerente exerce actividade remunerada com a categoria de Assistente Técnica no Instituto ….., auferindo uma retribuição mensal líquida no valor de € 1.140,80.
19. Actualmente o seu agregado familiar é composto pela própria e pela filha Rita, que com ela vive, agora maior de idade, na sua habitação permanente.
20. A filha encontra-se desempregada desde Junho de 2016, sem que aufira qualquer tipo de rendimentos, sendo certo que a Rita é portadora de deficiência auditiva, o que comporta custos adicionais com aparelhos auditivos e medicação, custos estes suportados pela requerente.
21. O filho da requerente, Rui, saiu da ilha para um ambiente mais saudável em Aveiro, junto do Instituto que frequenta e onde reside desde meados do ano de 2015, auferindo a Retribuição Mínima Mensal Garantida, e que é claramente insuficiente à sua subsistência, tendo a requerente que, de quando em vez, ajudá-lo com módicas quantias que variam entre os 50€, 20€ ou mesmo 10€ para que não lhe falte o essencial.
22. Do exposto resulta que até Junho de 2016 a requerente tinha compromissos financeiros num total de 768,37€, sobrando-lhe a módica quantia de 372,43€ para alimentar-se a si e à filha, pagar consumos domésticos, médicos e medicamentosos, bem como outras obrigações, nomeadamente fiscais (IMI).
23. Daí que, sem recursos para conseguir garantir os seus compromissos financeiros, a requerente deixou de pagar regularmente alguns dos empréstimos e outras dívidas que contraiu.
24. A requerente não logrou, assim, pagar todos os seus credores.
25. A requerente tem, como referiu a seu cargo a sua filha maior de idade, desempregada e portadora de deficiência auditiva, pelo que o valor supra indicado de €1.140,80, inclui o abono complementar a deficientes no valor de € 161,24, o complemento açoriano ao SFCJ no valor de € 3,37 e o subsídio familiar a crianças e jovens no valor de € 36,73, pois na verdade a retribuição base da requerente é de € 1.047,00.
26. Os rendimentos mensais da requerente eram e continuam a ser claramente insuficientes para fazer face às suas despesas mensais, dispondo somente de € 372,43 para alimentar-se a si e à filha, pagar consumos domésticos, médicos e medicamentosos, bem como outras obrigações, nomeadamente fiscais (IMI, no valor de 160,14€).
27. O sufoco financeiro da requerente levou-a mesmo a optar por não pagar a prestação do Santander em Maio de 2016 para poder pagar € 160,14, referentes à 1.ª prestação de IMI
28. Acrescem ainda as habituais despesas mensais domésticas (gás, electricidade, água, tv cabo e condomínio) no valor aproximado de € 233,52, despesas saúde mensais que, em média, oscilam entre € 83,17 a € 29,79 e despesas mensais de alimentação e cujo valor estimativo é de € 183,70€.
29. Tendo em conta os seus parcos rendimentos, as obrigações bancárias assumidas ainda enquanto casada, e ainda o facto de ter a sua filha a seu cargo, sem se eximir a auxiliar o seu filho que mal se sustenta, actualmente a requerente, face às vicissitudes supra expostas (de natureza conjuntural, financeira e familiares) não pode suportar os seus encargos e manter a sua estabilidade económico-financeira, sendo objectivamente insuficiente o provento da requerente para cumprir as suas obrigações, sendo certo que a requerente nunca actuou com prejuízo para com os credores e sempre acreditou e manteve sérias perspectivas de melhoria da sua situação económica, até à presente data.
30. Porém, apesar da requerente ser detentora de património referente a herança por óbito do seu pai já falecido, esta é uma herança indivisa sem determinação de parte ou de direito, não obstante os esforços envidados pela requerente em receber a sua parte para poder garantir algum desafogo financeiro, mas sem qualquer êxito;
31. Por outro lado, a requerente não possui rendimentos suficientes ou meios próprios suficientes que lhe permitam liquidar tais obrigações, pelo que mais não lhe resta do que o pedido de declaração de insolvência, devendo a mesma ser qualificada como fortuita.
32. A requerente requer, nos termos do art. 3.º, n.º 2, alínea a) e 235.º e seguintes do CIRE, que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, declarando preencher os requisitos explanados nos arts. 238.º e seguintes do CIRE, e dispondo-se a observar as condições exigidas por lei.
33. Sendo crucial que a requerente mantenha a sua estabilidade emocional e psicológica, tanto mais que é o suporte emocional e financeiro dos seus filhos, (ainda que maiores), precisando manter a continuação da satisfação das necessidades básicas da sua vida e desempenhar um papel activo na sociedade, pelo que requer, para além da concessão da exoneração dos créditos sobre a insolvência, que seja decretado como rendimento mensal o valor correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida (RMMG) e meia, para poder fazer provento às despesas que possui.
Finalizou a requerente, formulando as seguintes pretensões:
a) seja declarada a insolvência da ora requerente;
b) seja tal insolvência declarada fortuita;
c) seja exonerado o passivo restante;
d) seja decretado à requerente um rendimento mensal correspondente a uma RMMG e meia.
Juntou a requerente documentos comprovativos do alegado, relações aludidas no artigo 24.º n.º 1, do CIRE, e ainda cópia do despacho, datado de 07.12.2017, proferido no Pº 3429/15.9T8PDL pelo Juízo Central Cível de Ponta Delgada que, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e, que declinou a competência material do Tribunal para o conhecimento do processo e indeferiu definitiva e liminarmente o pedido de declaração de insolvência, declarando mostrar-se excluída a possibilidade de remessa dos autos ao Tribunal competente, decisão esta que transitou em julgado, uma vez que com ela a requerente se conformou.
Em 27.02.2017, pelo juiz da instância local do Tribunal de Ponta Delgada foi proferido o seguinte Despacho:
Do valor da causa:
Conforme rege o artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o valor da causa é determinado sobre o valor do activo devedor indicado na petição inicial, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.
No presente caso, a requerente indicou o valor da acção como sendo de € 119.764,35, por ser esse o valor do seu activo (alegação que é suportada pelo teor dos documentos juntos aos autos, de onde se destaca os n.º 19 e 20).
Ora, considerando o teor da petição inicial e ainda os documentos já aludidos, verifica-se que o valor do activo da requerida é de € 119.764,35.
Desta forma, atento ao valor do activo e nos termos do disposto no artigo 15.º do CIRE, decido fixar o valor do presente processo de insolvência em € 119.764,35 (cento e dezanove mil, setecentos e sessenta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos).
Da incompetência:
Pese embora se tenha discutido, neste Tribunal Judicial, qual a Instância competente para tramitar processos de insolvência com valores superiores a € 50.000,00, tal questão já foi objecto de diversos acórdãos, em processos de resolução de conflitos, do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual em todos decidiu que tais processos, que tenham entrado após 1 de Setembro de 2014, são da esfera da competência da Instância Central Cível (veja-se, entre outros, os acórdãos nos processos de resolução de conflitos nº 70/14.4T8PDL, 18/14.6T8PDL, 88/14.7T8PDL, 135/14.7T8PDL.L1, 1354/14.7T8PDL, 1440/15.6T8PDL.L1, 3141/15.0T8PDL.L1, 2274/15.3T8PDL.L1, 431/15.1T8PDL.L1, 11/14.9T8RGR.L, 1564/15.0T8PDL.L1, 387/16.3T8PDL.L1, 169/16.2T8PDL.L1 e 881/16.6T8PDL.L1, bem como os acórdãos proferidos nos processos nº 431/15.1T8PDL.L1, nº 702-14.4T8PDL.L1-8 e nº 35/16.1T8PDL.L1-2, este últimos disponíveis em www.dgsi.pt).
Os presentes autos deram entrada neste Tribunal Judicial da Comarca dos Açores a 24.02.2017.
Em face do exposto, e nos termos do mencionado artigo 310.º, nº.1, do Código de Processo Civil, este Juízo Local Cível de Ponta Delgada é incompetente em razão do valor para a tramitação destes autos, pelo que cumpre determinar a remessa dos autos para os Juízos Centrais de Ponta Delgada.
Notifique.
Após trânsito, remeta os presentes autos aos Juízos Centrais de Ponta Delgada e dê a competente baixa na distribuição.

Transitado em julgado o despacho, o processo foi remetido aos Juízos Centrais de Ponta Delgada, tendo sido proferido, em 27.03.2017, o seguinte Despacho:
O presente processo de insolvência replica um outro que correu termos por este Juízo Central, qual seja o processo nº 3429/16.9T8PDL, aliás referenciado pela Requerente no ponto I. (Questão Prévia: Da Competência do Tribunal), no âmbito do qual foi preferido despacho de incompetência material do tribunal para o conhecimento dos autos e indeferiu definitiva e liminarmente o pedido de declaração de insolvência.
A Requerente não terá interposto recurso desse despacho que, desta forma, terá transitado em julgado.
Assim sendo, afigura-se-nos que estamos perante a exceção dilatória de caso julgado, de conhecimento oficioso.
De forma a salvaguardar o exercício do contraditório, notifique a Requerente para se pronunciar, querendo, em três dias (art. 3º nº 3 do Código de Processo Civil)
Em 31.03.2017, a requerente pronunciou-se no sentido de que a excepção de caso julgado, sendo uma excepção dilatória e que se traduz num pressuposto processual negativo, cuja função é impedir o prosseguimento de um processo com o objectico de evitar que o Tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita outra decisão anterior e definitiva.
Mais invocou, a requerente, que os direitos substantivos fixados por decisão de mérito só podem ser atingidos por outra decisão que se pronuncie igualmente sobre o mérito da questão e em termos incompatíveis com o que haja sido anteriormente sentenciado, o que não sucedeu com o Pº 3429/16.9T8PDL.
Alega ainda que existe um conflito de competência que se resolve com a intervenção do Tribunal de Resolução de Conflitos, não podendo uma decisão de natureza formal (pressuposto processual negativo) ser impeditiva de decisão de mérito, pois para efeito de verificação de caso julgado material, o cotejo far-se-á entre decisões de mérito, pelo que requereu o prosseguimento dos ulteriores trâmites legais.
Em 20.04.2017, foi proferido o seguinte Despacho:
Conforme salientámos no despacho que antecede, o presente processo de insolvência replica um outro que correu termos por este Juízo Central, qual seja o processo nº 3429/16.9T8PDL, aliás referenciado pela Requerente no ponto I. (Questão Prévia: Da Competência do Tribunal), no âmbito do qual foi preferido despacho de incompetência material do tribunal para o conhecimento dos autos e indeferiu definitiva e liminarmente o pedido de declaração de insolvência.
A Requerente não terá interposto recurso desse despacho que, desta forma, terá transitado em julgado.
Assim sendo, estamos perante a exceção dilatória de caso julgado, de conhecimento oficioso [arts. 577º al. i), 578º e 580º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC)].
Na verdade, aquela decisão regulou definitivamente a questão que ora nos ocupa, qual seja a incompetência material deste tribunal (Juízo Central Cível de Ponta Delgada) para o conhecimento do processo de insolvência.
A instauração desta segunda e idêntica ação pressuporia, necessariamente, uma contradição ou a reprodução daqueloutra decisão, por parte deste tribunal1, posto que os fundamentos de facto e de direito não sofreram qualquer alteração (cit. art. 580º nºs 1 e 2 do CPC).
Não acompanhamos, por isso, a tese ora defendida pela Requerente em sede de exercício do contraditório, tese esta que implicaria não só que, livre e arbitrariamente, pudesse instaurar a mesma e precisa ação vezes sem conta, mormente neste Juízo Central, face a eventuais repetidas decisões de idêntico teor (isto é, de declaração de incompetência material do tribunal para o conhecimento dos autos) para as quais o tribunal, repetida e sucessivamente, seria convocado a pronunciar-se, mas também a inutilidade da dita decisão já proferida e a inocuidade do respetivo recurso (afinal de contas, naquela ótica, de que serviria recorrer da decisão se, conformando-se com a mesma, sempre poderia vir a instaurá-la novamente?).
Consideramos, em suma, que se formou caso julgado quanto à questão em apreço, devida e regularmente escalpelizada na sobredita decisão judicial, transitada em julgado, proferida no sobredito processo.
A exceção dilatória de caso julgado é insuprível e implica o indeferimento do pedido de declaração de insolvência em despacho liminar e respetiva publicação (art. 27º nº 1 al. a) e 2 do CIRE).
Em face do exposto, julgo verificada a exceção dilatória de caso julgado e, por conseguinte, indefiro definitiva e liminarmente o pedido de declaração de insolvência.
Publique.
Notifique.
Inconformada com o assim decidido, a requerente interpôs, em 09.05.2017, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:

i. O Meritíssimo Tribunal a quo, violou, com o devido respeito, o disposto nos artigos 580.º, n.º 1 e 2, 619.º, n.º 1, 620.º e 621.º, todos do CPC e, consequentemente, nos artigos 17.º, 23.º, 24.º, 27. e segs, todos do CIRE, porquanto indeferiu liminarmente o pedido de apresentação à insolvência singular da recorrente por considerar que se verifica a excepção dilatória de caso julgado;
ii. Salvo melhor opinião, entendemos que não se verifica a excepção dilatória de caso julgado, tal como vaticinado pelo Ex.mo Dr. Juiz, entre o presente processo e o processo n.º 3429/16.9 T8PDL;
iii. Na sentença proferida pelo Ex.mo Dr. Juiz no âmbito do processo n.º 3429/16.9T8PDL o mesmo declarou-se incompetente por entender que se verificava a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, sem remissão dos autos ao Tribunal competente (que seria, no seu entender, o Juízo Local Cível);
iv. Ora, se o Ex.mo Dr. Juiz se declarou incompetente, não houve lugar a decisão de mérito; e, assim sendo, não existindo decisão de mérito não pode haver lugar à excepção dilatória de caso julgado por não se verificarem os respectivos requisitos legais; logo, o poder jurisdicional do Tribunal não se encontra esgotado, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 613.º do CPC;
v. No caso dos autos do processo n.º 3429/16.9 T8PDL, com a sentença ali proferida, não se formou caso julgado material porquanto não foi proferida decisão final sobre a questão de direito substantivo;
vi. A supra referida decisão foi apenas a de julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e essa decisão, mesmo que transitada em julgado, face ao disposto no art. 100.º do CPC, não tem valor fora do processo em que foi proferida; constitui mero caso julgado formal, só cabendo dentro do processo em que foi proferida, i.e., não ultrapassa os limites do processo em que foi proferida;
vii. A excepção de caso julgado constitui uma excepção dilatória que se traduz num pressuposto processual negativo e cuja função é impedir o prosseguimento do processo com o objectivo de evitar que o Tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita outra decisão anterior e definitiva, também ela de mérito;
viii. Isto porque os direitos substantivos fixados por decisão de mérito só podem ser atingidos por outra decisão que se pronuncie, igualmente, sobre o mérito da questão e em termos incompatíveis com o que haja sido sentenciado. O que não foi o caso (nem no processo n.º 3429/16.9 T8PDL, nos presentes autos);
ix. O caso julgado material forma-se unicamente sobre a decisão relativa ao objecto da acção; o mesmo é dizer-se que apenas sobre a decisão de fundo se forma caso julgado material (ou seja, quando há lugar à decisão de mérito sobre o objecto da acção);
x. Se na sentença proferida no âmbito do processo n.º 3429/16.9 T8PDL não foi proferida decisão final sobre a questão de direito substantivo, houve então lugar a uma decisão de cariz processual, pelo que a dita sentença apenas formará caso julgado formal não atendível fora daquele processo, nos termos e para os efeitos dos arts. 620.º, n.º 1 e 100.º do CPC;
xi. Mais se diga, ainda, que se a requerente tivesse recorrido da decisão proferida no âmbito do processo n.º 3429/16.9 T8PDL, que correu os seus termos no presente Juízo Central, o Tribunal de Resolução de Conflitos não proferiria decisão de mérito sobre o pedido de apresentação à insolvência pela requerente, ora recorrente, mas sim decidiria sobre se o presente Tribunal é o competente, ou não, para decidir da questão de mérito;
xii. E, admitindo, sem conceder, que o Tribunal de Resolução de Conflitos manteria a decisão de incompetência proferida pelo Ex.mo Dr. Juiz, e em consequência, a requerente apresentaria novo pedido de insolvência junto do Juízo Local Cível – o que fez – e este Tribunal declarar-se-ia incompetente pela razão do valor da acção (119.764,35€), remetendo os autos para os Juízos Centrais de Ponta Delgada – o que fez – à requerente ficaria vedada a respectiva apresentação à insolvência meramente suportada em decisões que não tinham se pronunciado sobre o mérito da sua justa e legítima pretensão;
xiii. Ater-se, assim, ao conceito de caso julgado formal consiste numa denegação da justiça à ora recorrente que, assim, ficaria sempre e para sempre impedida de apresentar-se à insolvência;
xiv. A verificação de caso julgado não se reporta à procedência ou improcedência de uma acção ou de um recurso, mas sim à fixação de direitos substantivos por via de duas decisões de mérito, uma anterior a outra e sobre o mesmo objecto e partes. O que, reitera-se, não foi o caso;
xv. Se dúvidas houvesse, sempre se atentaria no disposto no art. 619.º, n.º 1 do CPC que refere expressamente que “Transitada em julgado sentença ou despacho que decida do mérito da causa (…)” “(…) a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º (…)”.
xvi. Dispõe o art. 9.º, n.º 3 do Código Civil que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, mais dispondo o n.º 2 do mesmo preceito que não pode ser considerado pelo intérprete “(…) o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (…).”
xvii. Atendendo às referidas regras de interpretação da lei, das disposições conjugadas dos arts. 619.º, n.º 1, 620.º, 621.º (e 100.º) do CPC, forçoso é concluir-se que despacho ou sentença que não tenha a força de caso julgado material não terá a sorte de impor-se fora desse processo em que foi proferida;
xviii. Nos presentes autos o que existe é um conflito negativo de competência e este resolve-se com a intervenção do Tribunal de Resolução de Conflitos, pelo que deve este referido Tribunal decidir qual o Tribunal competente para conhecer da presente acção;
xix. Não pode uma decisão de natureza formal ser impeditiva de decisão de mérito uma vez que para efeito de verificação de caso julgado material o cotejo far-se-á, necessariamente, entre decisões de mérito.
xx. É assim que, face ao exposto, sempre deveria o MM. Tribunal a quo, atendendo ao valor da acção, (nos termos do art. 15.º do CIRE), que determina que é esse o Tribunal competente para conhecer e decidir do mérito da acção, ter proferido sentença de declaração de insolvência, nos termos previstos nos arts. 36.º e segs e 235.º e segs. do CIRE;
xxi. Não o tendo feito, tendo antes indeferido liminarmente o pedido de insolvência da ora recorrente por considerar que se verifica a excepção dilatória de caso julgado, o MM. Tribunal a quo cometeu erro notório de julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 580.º, n.º 1 e 2, 619.º, n.º 1, 620.º e 621.º, todos do CPC e, consequentemente, nos arts. 17.º, 23.º, 24.º, 27.º e segs. e, ainda, art. 235.º e segs., todos do CIRE, o que fundamenta o presente recurso.
Pede, por isso, a apelante, que seja revogado o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência por verificação de excepção dilatória de caso julgado, reenviando o processo para o MM. Tribunal a quo para decisão do pedido, ou, considerando-se que efectivamente o que se trata é de um conflito negativo de competência e que o mesmo deveria ter sido remetido oficiosamente, neste caso para este Venerando Tribunal, deverá o mesmo ser apreciado, mais decidindo-se então qual o Tribunal competente para conhecer da acção, seguindo o processo os seus ulteriores termos até final.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise:
Ø DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.
O que implica a ponderação sobre:
a) A VERIFICAÇÃO DA EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO MATERIAL;
e, em caso negativo,
b) A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL PARA CONHECER DA PRETENDIDA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA, POR FORÇA DA REGRA DE SUBSTITUIÇÃO CONSAGRADO NO ARTIGO 665º DO CPC.

III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração a alegação factual referida no relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido.


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

a) DA EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO

O caso julgado visa dar concretização aos valores de certeza e segurança jurídica, assegurando o prestígio dos tribunais, que ficaria comprometido se a mesma situação concreta, uma vez definida num certo sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente.

Como refere MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 305-306, “seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença”.

A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica a outra anterior já decidida, por sentença com trânsito em julgado, e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior - v. artigo 581º do C.P.C.


O artigo 581º do C.P.C. não se limita a fazer coincidir o conceito de repetição da causa com o de identidade das acções. Acrescenta que a identidade há-de dizer respeito aos sujeitos, ao objecto e à causa de pedir, que são os requisitos da identificação das acções.

Na verdade, as acções caracterizam-se e individualizam-se pelos seus elementos essenciais, que são as pessoas, os bens ou coisas que se pretendem e o fundamento ou a causa por que se pretendem: duas acções só serão idênticas quando numa e noutra as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

A identidade jurídica dos litigantes nada tem a ver com a posição processual que elas ocupam. As partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. O que conta para o efeito da identidade jurídica é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial, e não a sua posição quanto à relação jurídica processual.

A exigência de identidade de sujeitos fixa os limites subjectivos do caso julgado. Mas, à identidade subjectiva acresce a identidade objectiva.

O artigo 581º do C.P.C. considera em separado identidade do objecto, ou seja, a identidade do pedido, a chamada identidade objectiva em sentido restrito e a identidade de causa de pedir.

Há identidade do objecto, diz o artigo 581º, nº 3 do C.P.C., quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico, o qual se terá de determinar pelo pedido formulado pelo autor. Daí que, a identidade de objecto vem a traduzir-se na identidade de pedido.

Há, finalmente, identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, consistindo a causa de pedir, no acto ou facto jurídico donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer.

Por outro lado, e como dispõe o artigo 628º do C.P.C., a decisão considera-se passada ou transitada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de invocação de nulidade ou pedido de reforma, nos termos dos artigos 615º e 616º do mesmo diploma.

Tanto o caso julgado material, como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão.

O caso julgado material cobre a decisão proferida sobre o fundo ou mérito da causa, tem força obrigatória, não só dentro do processo em que a decisão é proferida, mas principalmente fora dele - artigo 619º, nº 1 do C.P.C.

O caso julgado formal aproveita às decisões de carácter processual e é gerado, em regra, por qualquer decisão judicial - cfr. artigos 619º e 620º do C.P.C.

O caso julgado material estabelece como indiscutível uma solução concreta, sendo a extensão daquilo que se torna indiscutível determinada por limites objectivos e subjectivos. Os primeiros têm a ver com o pedido e a causa de pedir e os segundos dizem respeito às partes - cfr. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, III, 279 e ss.

Assim, do ponto de vista do objecto do processo, o conteúdo do caso julgado é só a decisão final referente ao pedido e não também os fundamentos ou outras questões resolvidas pelo juiz na fundamentação.

Embora em regra excluídos do caso julgado, é ponto assente na doutrina e na jurisprudência que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença coberta pelo caso julgado - v. ANTUNES VARELA, Ac. S.T.J. de 17.01.80, anotado na R.L.J. 113º, 296 e ss.

O caso julgado material é, na expressão de M. TEIXIEIRA DE SOUSA, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325º, 179 e ss., uma proibição de contradição de uma decisão de mérito num processo posterior que, em conjugação com uma permissão de repetição, gera a autoridade de caso julgado e que em ligação com uma proibição de repetição, origina a excepção de caso julgado.

No caso em análise, a requerente requereu a declaração da sua insolvência, na Instância Central do Tribunal de Ponta Delgada (Pº 3429/16.9T8PDL), aí tendo sido declarada a incompetência material do Tribunal para conhecer do processo, o que levou a requerente a organizar nova petição inicial e requerer igual pretensão na Instância Local, que invocando igualmente a sua incompetência remeteu o processo para a Instância Central.

Ora, muito embora o Exmo. Juiz da Instância Central do Tribunal de Ponta Delgada haja, no processo anteriormente intentado pela requerente, proferido despacho de indeferimento liminar, por entender que carecia de competência para conhecer dos processos de insolvência, tal não significa que exista uma situação de caso julgado material que, como acima se explanou, estabelece como indiscutível uma solução concreta, relativamente ao mérito da causa, sendo a extensão daquilo que se torna indiscutível determinada por limites objectivos e subjectivos.

A decisão exarada no Pº 3429/16.9T8PDL formou caso julgado formal que apenas aproveita às decisões de carácter processual, e tem força obrigatória, não só dentro do aludido processo em que a decisão foi proferida.

Inexiste, pois, caso julgado material, pelo que a decisão de incompetência proferida nesse processo não tem força obrigatória fora dele.

De resto, como decorre do artigo 100º do C.P.C., “A decisão sobre a incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, salvo o disposto no artigo seguinte”, situação que aqui não tem aplicação.

Não se pode, por conseguinte, acompanhar a decisão da 1ª instância, razão pela qual procede a apelação, revogando-se a decisão recorrida.

Sucede que, por força da decisão proferida no despacho recorrido, o Tribunal a quo não apreciou, por se mostrar prejudicada, a questão da competência material do Tribunal.

Nos termos do nº 2 do artigo 665º do CPC, “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.

Entende-se, em consequência, que incumbe a este Tribunal de recurso substituir-se ao Tribunal a quo e apreciar da competência do Tribunal para apreciar do pedido formulado pela requerente, de declaração da sua própria insolvência, processo que, apesar de ter natureza urgente, a requerente tem vindo a ser impedida, desde há mais de seis meses, de ver apreciada a sua pretensão, não carecendo de dar cumprimento ao nº 3 do citado normativo, posto que sobre a questão a recorrente já tomou posição.

b) DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL PARA CONHECER DA PRETENDIDA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA, POR FORÇA DA REGRA DE SUBSTITUIÇÃO CONSAGRADO NO ARTIGO 665º DO CPC

É sabido que com a publicação da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), posteriormente regulamentada pelo Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março (RLOSJ), foram fixadas as disposições enquadradoras da reforma do sistema judiciário, as quais passaram a vigorar desde 1.09.2014, tendo presente igualmente as alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 86/2016, de 27-12.

Como se infere do próprio Preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 49/2012 a estrutura do Tribunal Judicial de Comarca passou a organizar-se em torno de ”
Instâncias Centrais” e de “Instâncias Locais”, encontrando-se as primeiras preferencialmente localizadas nas denominadas “capitais de circunscrições socialmente adquiridas”.

As Instâncias Centrais integram, em princípio, actualmente, Juízos Competência Especializada, a saber, Cível, Crime, Instrução Criminal, Família e Menores, Trabalho, Comércio e Execução, podendo ainda ser criadas Secções de Competência Especializada Mista, como decorre do artigo 81º da LOSJ.



As Instâncias Locais integram Juízos de Competência Genérica e Secções de Proximidade, admitindo a lei que os Juízos de Competência Genérica se desdobrem em Juízos Locais Cíveis, Juízos Locais Criminais e Juízos de Pequena Criminalidade quando o volume ou complexidade do serviço o justifiquem, introduzindo-se, portanto, ao nível das Instâncias Locais, Juízos de Competência Especializada, como se prevê no nº 3 do artigo 81º da LOSJ, sendo as respectivas competências legalmente definidas nos artigos 117º e seguintes da LOSJ.

Importa então analisar o quadro legislativo que aqui releva para o caso em apreço.

Dispõe o artigo 117º, nº 1 da LOSJ, que:
1. Compete ao juízo cível da instância central:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000;
b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2. Nas comarcas onde não haja juízos de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a esses juízos.
3. São remetidos ao juízo cível da instância central os processos pendentes nos juízos da instância local em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.

Por outro lado, estatui o artigo 128º do mesmo diploma, que:
1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de
revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2. Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3. A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

Estabelece, por seu turno, o artigo 130º, integrado na secção VII - atinente à Instância Local – que:
1. Compete aos juízos de competência genérica:
a) Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro juízo da instância central ou tribunal de competência territorial alargada;
(...).
Ora, perante o quadro legislativo sinteticamente enunciado, nos Tribunais de Comarca, nos quais não foram criados Juízos de Comércio, como sucedeu no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (cfr. artigos 66º e 67º do RLOSJ), dúvidas se têm suscitado sobre quem detém nesses tribunais as competências legalmente fixadas para os referidos Juízos de Comércio (secções especializadas que têm competência para preparar e julgar as causas acima referidas, em função da matéria e independentemente do valor e da forma de processo), não sendo unívoca nem a posição doutrinária, nem a jurisprudencial.

Segundo uma das orientações, a secção (juízo) cível da instância central, na ausência de criação de juízos de comércio, tem competência para todas as acções previstas no artigo 128º da LOSJ, sejam acções comuns ou processos especiais, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00 – v. neste sentido, SALVADOR DA COSTA/RITA COSTA, Lei de Organização do Sistema Judiciário, Almedina, 2014, 2ª ed., 182, bem como decisões proferidas pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de conflitos de competência, designadamente, de 01.12.2014 (Pº 70/14.4T8PDL.L1-1), e de 30.06.2015 (Pº 431/15.1T8PDL.L1-7), acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

De acordo como outra orientação e, tendo em consideração o disposto no nº 1 e nº 2, alínea d) do artigo 117º da LOSJ, nas comarcas onde não existam secções (juízos) especializadas, pertence às secções (juízos) cíveis da instância central a competência para as acções nas quais seriam competentes as secções de comércio – v. neste sentido,
SALAZAR CASANOVA, Notas breve sobre a Lei de Organização do Sistema Judiciário, ROA, Ano 73, nº 2/3 (2013), p. 469 e ainda Acs. R.L. de 26.03.2015 (Pº 702/14.4T8PDL.L1-8), acessível em www.dgsi.pt e de 16.06.2015 (Pº 457/15.5T8PDL.L1).

Finalmente, defendem outros que, seja qual for o valor da causa, a tramitação dos processos de insolvência é sempre da competência da Instância Local do Tribunal da Comarca – v. neste sentido, ANTÓNIO A. VIEIRA CURA, Curso de Organização Judiciária, 2ª ed., 213 e 222, bem como Acs. R.E. de 15.01.2015 (Pº 469/14.6TBTG-A.E1), de 12.03.2015 (Pº 206/11.7TBPTG-M.E1), Decisão do Vice-Presidente do TRE de 30.01.2015 (Pº 163/14.8T8BJA.E1), Acs. R.L. de 19.03.2015 (Pº 1016/14.5T8PDL.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt., e ainda Acs. RL. de 28.04.2015 (Pº 658/15.6T(PDL.L1) e de 19.05.2015 (Pº 425/15.7T8PDL.L1), e decisão da ora relatora, de 31.08.2015 (Pº 1798/15.7T8PDL e aludido no despacho de 07.02.2017, proferido no Pº 3429/15.9T8PDL), estes últimos não publicados no sítio www.dgsi.pt.

Entende-se ser de acolher esta última orientação, segundo a qual não estando previsto Juízo de Comércio, a competência para a tramitação dos processos de insolvência, ainda que de valor superior a € 50.000,00, cabe à Instância Local – Juízo Cível - quando haja desdobramento da Secção de Competência Genérica e não à Instância Central – cfr. igualmente em sentido concordante, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, acessível na Internet, em http://blogippc.blogspot.pt/2015/04/jurisprudencia-112.html
Com efeito, resulta da alínea a) do nº 1 do citado artigo 117º da LOSJ que para atribuição da competência à Instância Central, atentou o legislador ao critério material e da espécie do processo e ao critério do valor da causa.

São, pois, exigíveis dois requisitos cumulativos:
i. Acções declarativas cíveis de processo comum;
ii. De valor superior a € 50.000,00.

Tal significa que não basta que o valor da causa seja superior e € 50.000,00, necessário se torna que se trate de acção com processo comum.

No caso vertente, está em causa um processo de insolvência, que já foi primeiramente intentado, pela requerente/recorrente, na Instância Central de Ponta Delgada da Comarca dos Açores que, em momento posterior, organizou e apresentou nova petição inicial com todos os elementos necessários, desta feita na Instância Local, que fez transitar o processo para a Instância Central.

O RLOSJ, introduzido pelo Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março, criou no seu artigo 64º, o Tribunal da Comarca dos Açores, mas não criou, como acima ficou dito, nenhum Juízo de Comércio, nem na Instância Central, nem na Local (v. artigo 66º, nº 1 do citado diploma).

Dúvidas não há que o processo de insolvência é um processo especial.

Como se estatui nos artigos 546º, 548º e 549º, nº 1 do CPC, os processos especiais regem-se pelas regras próprias e pelas disposições gerais e comuns. Em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que está estabelecido para o processo comum. E, o processo de insolvência encontra-se essencialmente regulado no CIRE, apenas com aplicação pontual do CPC, como se estatui no artigo 17º do CIRE.

Assim sendo, forçoso é concluir que o processo de insolvência não cabe no campo de aplicação do nº 1 do artigo 117º do LOSJ, nem se encontra abrangido pelo alargamento de competência a que alude o seu nº 2, razão pela qual não pode deixar de se entender que a competência para a sua tramitação, nas comarcas em que não haja Juízo de comércio, como sucede na Comarca dos Açores, não cabe à Instância Central, mas sim à Instância Local, independentemente do valor da causa, por força da competência residual atribuída no citado artigo 130º, nº 1, alínea a) da LOSJ.

Acresce que tão pouco se pode argumentar que, com esta interpretação, ficará esgotado o estabelecido no nº 2 do artigo 117º da LOSJ, posto que a Instância Central será competente para as acções indicadas nas suas alíneas b) a i), bem como nas enumeradas nos nºs 2 e 3 do artigo 128º da LOSJ, desde que estejam em causa acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior e € 50.000,00.

Ademais, o próprio diploma regulamentar (Decreto-Lei nº 49/2014), ao abordar a questão da transição dos processos pendentes, estabeleceu no nº 1 do artigo 104º que: Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local, o que não pode deixar de indiciar, como bem se refere no supracitado Ac. R.L. de 19.03.2015 (Pº 1016/14.5T8PDL.L1-6), a pretensão de que as matérias específicas das secções de comércio pendentes transitassem de imediato para as secções das instância locais, as quais seriam futuramente competentes.

Destarte, declara-se incompetente o Juízo Cível da Instância Central do Tribunal de Ponta Delgada da Comarca dos Açores para preparar e julgar o presente processo de insolvência, por ser competente, o Juízo Cível Local de Ponta Delgada.

Sintetizando, revoga-se a decisão recorrida que julgou verificada a excepção dilatória de caso julgado, e declara-se competente para preparar e julgar o presente processo de insolvência, o Juízo Cível Local de Ponta Delgada.

Após trânsito, e por forma a obviar a novas diligências por parte da requerente, que se afiguram inaceitáveis, face ao tempo já decorrido com as várias tentativas, por esta efectuadas, para ver apreciada a sua pretensão, estando em causa um processo urgente, deverá o Tribunal recorrido remeter o processo para o Juízo Cível Local.

Sem custas no recurso, visto que a apelante não sucumbe no recurso, sendo certo que a mesma goza do benefício do apoio judiciário.


IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida que julgou verificada a excepção dilatória de caso julgado, e declara-se competente para preparar e julgar o presente processo de insolvência o Juízo Cível Local de Ponta Delgada, para onde, após trânsito, o Tribunal recorrida deverá remeter o processo.

Sem custas.

Lisboa, 22 de Junho de 2017
Ondina Carmo Alves – Relatora
Pedro Martins
Lúcia Sousa