Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1020/2006-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. Para que seja legítimo o recurso, em termos gerais, ao procedimento cautelar comum é necessário que concorram determinados requisitos, entre os quais importa salientar, pela sua relevância: a aparência da existência de um direito e o perigo da insatisfação desse direito.
II. Não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero “fumum boni juris”, ou seja, que o direito se apresente como verosímil.
III. Também não é necessário que exista certeza de que a lesão do direito se vai tornar efectiva com a demora, bastando, mas exigindo-se, que se verifique um justo receio de tal lesão vir a concretizar-se.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.

No Tribunal da Comarca de Cascais, a Sociedade A intentou o presente procedimento cautelar não especificado contra B alegando, em síntese, que celebrou um contrato de aluguer com opção de compra para utilização da viatura de marca Mitsubishi, com a matrícula …, e que tem procedido ao pagamento de todas as prestações mensais decorrentes desse contrato. Mais alega que o Requerido utiliza essa viatura, recusando-se a restitui-la à Requerente, o que lhe causa prejuízos.

Termina pedindo que se ordene a restituição imediata pelo Requerido à Requerente da viatura Mitsubishi, com a matrícula … e da respectiva documentação que permite a sua circulação e a apreensão do mesmo veículo pelas autoridades policiais a quem deverá ser dado conhecimento da decisão final desta providência.

Citado, o Requerido deduziu oposição, na qual excepcionou a sua ilegitimidade e impugnou a factualidade constante da petição inicial, defendendo a improcedência do presente procedimento cautelar.

Notificada da oposição, veio a Requerente arguir a falsidade do documento junto com aquela.

Produzida a prova requerida, foi fixada a matéria de facto indiciariamente assente, sendo depois proferida sentença, julgando improcedente a excepção da ilegitimidade do Requerido e o incidente de falsidade e procedente a providência requerida, ordenando-se a restituição imediata da viatura à Requerente.

Inconformado com a decisão, veio o Requerido interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

(…)

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do agravo, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber se no caso existe, ou não, fundado receio da lesão do direito justificativo do decretamento da providência.

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

(…)

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Com a reforma processual civil operada pelo DL 329-A/95, de 12/12, as providências cautelares não especificadas, largamente enraizadas na nossa tradição como um meio de protecção de direitos ameaçados, foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», no qual se insere a regulamentação dos aspectos comuns a toda a justiça cautelar.

Assim, preceitua o n.º 1 do art. 381º, do C.P.C. que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».

Por outro lado, o n.º 1, do art. 387º, do mesmo Código, complementa que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão».

Como diz A. Neto, “o decretamento de uma providência cautelar não especificada (comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos: (a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto de acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º do CPC; (d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar”.

Para que seja legítimo o recurso, em termos gerais, ao procedimento cautelar comum é necessário, pois, que concorram, os requisitos aludidos, entre os quais importa salientar, pela sua relevância: a aparência da existência de um direito e o perigo da insatisfação desse direito.

Não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero “fumum boni juris”, ou seja, que o direito se apresente como verosímil.

Também não é necessário que exista certeza de que a lesão do direito se vai tornar efectiva com a demora, bastando, mas exigindo-se, que se verifique um justo receio de tal lesão vir a concretizar-se.

Com efeito, o legislador condicionou a tutela antecipada, ou conservatória, do direito à realização de prova sumária quanto ao aludido fundado receio da sua lesão grave e dificilmente reparável, à prova do periculum in mora, que é requisito comum a todas as providências cautelares.

Deste modo, tem de haver-se como princípio assente que só lesões graves e dificilmente reparáveis podem facultar ao tribunal, em face da pretensão do interessado, que profira uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.

Não se pode olvidar que, tratando-se de uma tutela cautelar decretada muitas vezes sem a audiência da parte contrária, não se poderia conceber que fosse qualquer lesão a justificar a ingerência na esfera jurídica do demandado, acaso lhe produzindo dano de que não pudesse ser ressarcido em caso de injustificado recurso à providência cautelar (art.s 385º, n.º 1 e 390º CPC).

Neste condicionalismo deve o juiz sopesar, na salvaguarda dos interesses, a par dos danos que o requerente invocar na providência, também aqueles que, possivelmente, a decisão possa comportar para o requerido, e, assim, recusar o seu decretamento se os prejuízos decorrentes para o segundo excederem manifestamente os danos alegados pelo primeiro (art. 387º, n.º 2, do CPC).

Problemático não será que só as lesões graves e irreparáveis ou de difícil reparação merecem a tutela provisória que o procedimento cautelar comum visa precaver, ficando afastadas do âmbito de interesses acautelados, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, bem assim as lesões graves mas facilmente reparáveis.

Acresce que, como tem entendido a doutrina e a jurisprudência, o critério de avaliação do “fundado receio”, deve assentar em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. I, pág. 684 e Ac. RL, de 26.05.83, in Col. Jur., 1983, tomo III, pág. 132 e Ac da RP de 27.11.2003, acessível em http://www.dgsi.pt/jrp.

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Na apreciação do aludido “justo receio” de grave lesão futura e dificilmente reparável, há que avaliar, de forma objectiva, todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, tomando em consideração os interesses em jogo para ambas as partes, a condição económica de cada uma, a anterior conduta do requerido e sua projecção em comportamento subsequente. Enfim, deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, sob risco de total ou parcial ineficácia da acção (declarativa ou executiva), intentada ou a intentar.

Ora, no caso em apreço, mostra-se indiciariamente assente que a Requerente celebrou contrato de aluguer com opção de compra com a sociedade C, em 30 de Janeiro de 2002, para utilização da viatura de marca Mitsubishi, com a matrícula …., mediante o pagamento da prestação mensal de € 556,84, a cujo pagamento a Requerente tem procedido atempadamente.

Sucede que a referida viatura é utilizada pelo Requerido, apesar de a Requerente, por carta datada de 4 de Abril de 2005, ter solicitado ao mesmo Requerido a restituição imediata do veículo, pois que o Requerido não procedeu à entrega do veículo em causa.

E a requerente está privada da utilização da viatura, da qual necessita para utilização no âmbito da sua actividade, sendo que tem de proceder ao pagamento dos encargos mensais decorrentes do contrato do seu aluguer.

Destes factos se comprova que o Requerido com a sua conduta, aferida a partir da solicitação que lhe foi feita para devolver a viatura, de não proceder à sua restituição, está a obstar a que a Requerente a possa utilizar normalmente dentro da actividade que exerce, apesar de carecer da mesma para o efeito.

Do que se conclui que o Requerido coloca, assim, em risco o direito da Requerente, uma vez que daquela conduta podem resultar prejuízos de difícil reparação para esta, por a impedir de usufruir a viatura em causa, e simultaneamente ter a mesma de suportar os encargos com o contrato da sua locação.

Existe, deste modo, no caso fundado receio de o direito da Requerente, ao uso e fruição do veículo, continuar a ser violado pelo Requerido, do qual nem se sabe se possui algum património com vista ao ressarcimento dos prejuízos para aquela decorrentes, sendo que a Requerente por não poder contar com o veículo para o exercício da sua actividade e continuar a ter de pagar as prestações do aluguer do mesmo veículo, não pode deixar de sofrer danos e, quiçá, de certa monta.

Daí que se entenda que na decisão recorrida se decidiu acertadamente ao ordenar-se a providência, tendo-se produzido para o efeito a necessária fundamentação, pelo que não enferma a mesma de qualquer nulidade.

As conclusões que o Requerido tira das suas alegações, em parte baseadas em factos que não se mostram provados, são manifestamente improcedentes, porque o que está verdadeiramente em causa no processo é o direito ao uso e fruição do veículo, de que a Requerente demonstrou ser titular e de que está impedida de exercer, direito que está abusivamente a ser usurpado pelo Requerido, pelo menos, desde que lhe foi ordenada a restituição da viatura.

Ao contrário do que o Recorrente pretende fazer crer, não está em causa nos autos a ameaça de violação de qualquer direito de propriedade ou o risco de perda de valor do veículo (que também se pode verificar), ou ainda a perda de garantia patrimonial (a providência não se destina a garantir qualquer crédito sobre o Requerido) mas sim a ameaça de violação do direito, que a Requerente tem e o Requerido não mostra ter, à posse e fruição da viatura. Ameaça que em relação ao passado já se mostra consumada, mas que continua actual em relação ao futuro e a causar danos à Requerente. Nem releva ainda para aferir da oportunidade da providência o facto de o veículo se encontrar segurado, pois que o contrato de seguro não cobre certamente os prejuízos que o Requerido cause à Requerente por não lhe restituir a posse do veículo.

E não diga o Recorrente que “em caso algum o direito da Requerente relativamente à mencionada viatura estará ameaçado pelo facto de o Requerido a utilizar, sendo, para este efeito, irrelevante o facto de ser a Requerente ou o Requerido a fruir do veículo em causa”, pois que semelhante raciocínio não pode ter a menor aceitação, por estar viciado nos seus termos. No argumentar do Requerido o direito à viatura pertenceria à Requerente e esse direito não estaria posto em causa pelo facto de o Requerido ter a sua posse e gozo. E isto, ao que parece, por tempo indeterminado e continuando a Requerente a pagar o seu aluguer e exercendo até a opção da sua compra. Obviamente que não tem qualquer suporte nos factos, nem no direito, esta argumentação, pois que o que está em causa, repete-se, é o direito à posse, uso e fruição do veículo, que está ameaçado, por estar nas mãos de detentor ilegítimo e a causar um dano continuado à Requerente.

Importa realçar o aspecto de que a ameaça de lesão do direito da Requerente não se esgotou com a recusa do Requerido em devolver-lhe a viatura, antes se renovando constantemente pelo afastamento do veículo da esfera jurídica da Requerente e pelo alargar do dano, designadamente com os encargos com a viatura.

Daí que se entenda que a Requerente usou do meio adequado para pôr termo a ameaça de lesão grave do seu direito, tanto mais que sendo um veículo automóvel de natureza facilmente perecível e de existência efémera nos tempos que correm, a ter a Requerente que aguardar pelo desfecho da respectiva acção declarativa, corria o risco de esta já não ter qualquer utilidade ou efeito prático caso entretanto a viatura tivesse chegado ao seu, mais ou menos próximo, decesso.

Sem necessidade de mais ampla fundamentação, designadamente de rebater o que o Recorrente alega e conclui com alusão a factos não provados, se entende que a decisão sindicada não padece dos vícios que aquele lhe imputa, antes se mostra suficientemente fundamentada e pela solução adequada dirimida.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao agravo e confirma-se a decisão recorrida.

Custas nas instâncias pelo agravante.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2006.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES