Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4895/2006-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
REVELIA
ADIAMENTO
ADVOGADO
FALTA DE ADVOGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Não obsta à declaração de insolvência a ausência de acções executivas intentadas contra o requerido, não constituindo uma tal situação pressuposto que tenha sido consagrado nos artigos 3º e 20º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
II- A preocupação de urgência e de celeridade processuais estiveram na base da consagração do regime constante do artigo 32º,n.º2 do C.I.R.E. segundo o qual, não comparecendo o devedor à audiência nem um seu representante com poderes para transigir, consideram-se confessados os factos alegados na petição.
III- Uma tal cominação seria prejudicada se fosse admissível o adiamento por falta de mandatário à diligência marcada por acordo nos termos do artigo 155.º,n.º1, permitindo-se o adiamento nos termos do artigo 155º,n.º5 e 651.º,n.º1, alínea d) do Código de Processo Civil apesar de o devedor não comparecer em audiência nos termos assinalados em I.
IV- A admissibilidade do adiamento deve considerar-se solução contrária à que resulta das referidas disposições do C.I.R.E., ficando, assim, excluída a aplicação das normas comuns (artigo 17.º do C.I.R.E.)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

T--- Eq--- Limited, com sede na Escócia, veio requerer a declaração de insolvência de N--- Comércio de Peças para Motores e Máquinas, Ldª

Em síntese, alegou que a requerida é devedora da quantia de € de 1.401.552,53, desconhecendo a requerente se a requerida tem bens ou activos que lhe permitam pagar essa dívida.

Regularmente citada, a devedora veio deduzir oposição.
Nos termos do art° 35° n° 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas foram declarados confessados os factos alegados na petição inicial, pelo facto de não comparecer a requerida nem o seu representante.

Foi proferida sentença que declara a insolvência da requerida.

Não se conformado com a sentença, dela recorreu a requerida, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - É vulgar que seja requerida a falência nos casos em que haja diversas execuções a correr contra a devedora e esta não possa pagar os respectivos valores. No presente caso a recorrente não tem uma única acção executiva a correr contra si, ou pelo menos não é por si conhecida, nem mesmo da requerente da falência, que alega ter elevadíssimos créditos sobre a requerida, que não tem, nem teve, a mínima preocupação em justificar.

2ª - É comum nos processos de falência, haver diversos credores distintos que componham uma comissão de credores minimamente isenta e equitativa. Nos presentes autos a comissão de credores é constituída por duas empresas em relação de grupo da requerente de falência, com accionistas e interesses comuns, além da Fazenda Pública, que pela sua natureza tem naturais dificuldades de representação e fiscalização da actividade da comissão.

3ª - É natural, humano e compreensível que os advogados constituídos possam estar doentes, estando obrigados a comunicar tal facto ao Tribunal, nos termos do artigo 155º do C.P.C. No caso dos autos, o mandatário subscritor que tem acompanhado em exclusivo os presentes autos ( sendo irrelevante que haja formalmente procuração conjunta a outros colegas) informou o Tribunal da sua impossibilidade de comparecer. Deveria assim o Tribunal dar cumprimento ao artigo 651º nº 3 do C.P.C., adiando a diligência por uma única vez e, não existindo qualquer adiamento anterior, haveria de ter-se assim decidido, até por aplicação do princípio da cooperação que visa, em última análise, uma justa composição do litígio (art° 2660 do C.P.C.), ou do princípio do contraditório ( art° 1º, nº 3 do C.P.C.).

4ª - A audiência de julgamento foi realizada, em violação da referida disposição legal, com base numa alegada taxatividade dos prazos do CIRE fazendo tábua rasa da oposição e, sem dar qualquer matéria de facto como assente, passou-se à análise do direito e à decisão "tout court" , sem cuidar de ouvir testemunhas ou analisar documentação, quando os mais elementares pressupostos eram falsos ou pura e simplesmente não se verificavam.

5ª - Com efeito, é desde logo falso o afirmado a fls. 274, quanto à deslocação de França de uma das testemunhas. Tal testemunha reside habitualmente em Portugal, é sócio gerente da sociedade imobiliária AT--- FE---, que nos últimos tempos contactou os responsáveis da recorrente, a quem entregou o cartão que se junta como doc. Nº 2 e se dá por reproduzido, pelo que é ridículo que a sua pretensa deslocação de Paris motivasse a urgência na realização do julgamento.

6ª - Em segundo lugar é também falso que a requerida, ora recorrente, tenha sido devidamente notificada para comparecer em juízo, com ou sem cominação, conforme é referido na mencionada acta, às mesmas folhas 274. A indicação que o subscritor tem é que os legais representantes não foram notificados, conforme no próprio dia o subscritor teve ocasião de confirmar com os mesmos. Aliás, dessa falta de notificação deu o subscritor, gravemente doente no seu domicílio, conhecimento à senhora funcionária do tribunal a quo, por via telefónica, a quem explicou, detalhadamente, os seus problemas de saúde e a impossibilidade de enviar outro colega em sua substituição.

7ª - Verificavam-se assim todos os pressupostos para o adiamento da audiência de discussão e julgamento, pelo que faltou à decisão revidenda um mínimo de análise crítica na apreciação dos pressupostos, face aos elementos que constavam nos autos e à informação colhida telefonicamente junto do subscritor, pelo que a audiência de julgamento deve ser anulada por violação das disposições legais referidas.

8ª - Nos termos da alínea b) do no 1 do artigo 668º do C.P.C, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. A decisão ora posta em crise é completamente omissa quanto à matéria de facto dada como provada pelo que, na ausência desta, são completamente irrelevantes as alusões de direito que sobre a mesma são tecidas. Pelo que a sentença ora recorrida é nula e de nenhum efeito, nos termos do artigo 668° do C.P.C., nulidade que para todos os efeitos aqui se argúi.

Termina pedindo que seja julgada procedente a apelação, ordenando-se a anulação do julgamento, por violação dos princípios básicos de processo civil, nomeadamente do contraditório e da cooperação, e todos os actos posteriores do processo, mas também por se verificar uma nulidade da sentença.

A parte contrária pugna pela manutenção da sentença.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A - Fundamentação de facto
Considera-se assente a matéria de facto constante do relatório.

B - Fundamentação de direito

A apelação coloca essencialmente as seguintes questões jurídicas limitadoras do objecto do seu conhecimento:

- ausência de acções executivas contra a requerida;
- o adiamento da audiência de discussão e julgamento;
- a nulidade da sentença.

A ausência de acções executivas contra a requerida.

Alega a apelante que é vulgar que seja requerida a falência (termo incorrectamente designado, pois se trata de insolvência) nos casos em que haja diversas execuções a correr contra a devedora e esta não possa pagar os respectivos valores. No presente caso a recorrente não tem uma única acção executiva a correr contra si.

Esta simples alegação está completamente desprovida de qualquer conclusão em termos jurídicos.

Dispõe o artigo 20º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) o seguinte: "A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:

a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa (…)”;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada (…);
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito de exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) …
g)…

O juiz deve verificar se os factos confessados são de molde a consubstanciar alguma das hipóteses configuradas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º e só nesse caso é que declarará a insolvência.
 
Ali não vem contemplada a hipótese timidamente desenhada pela apelante de que a insolvência não poderia ser decretada porque a recorrente não tem a correr contra si qualquer acção executiva.

Os factos referidos no artigo 20º constituem meros índices da situação de insolvência, tal como definida no artº 3º CIRE, a qual tem de ficar demonstrada no processo.

A definição de insolvência vem definida no citado artº 3º, nos seguintes termos:

“É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” - que corresponde com modificações ao artº 3º do CPEREF.

A questão da obrigação estar vencida não é relevante, uma vez que a insolvência acarreta a perda do benefício do prazo (ut artº 780º do C. Civil).

O que se impõe averiguar é se, da factualidade alegada pelo requerente, resulta, de forma indiciária, a verificação de uma impossibilidade da requerida “de cumprir as suas obrigações vencidas”.

Impõe-se averiguar se os factos alegados no requerimento inicial preenchem qualquer dos pressupostos ou requisitos indiciadores da insolvência mencionados no artº 20º CIRE.
O preceito atribui “aos credores do direito de, por iniciativa própria, requererem a insolvência do devedor.
Para isso, prevalecer-se-ão da verificação de determinados factos ou situações cuja ocorrência objectiva pode, nos termos da lei, fundamentar o pedido.
Trata-se daquilo a que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”.

Terminando, para concluir, dir-se-á que a insolvência será decretada se ocorrerem os respectivos pressupostos acima mencionados, entre os quais não consta a obrigatoriedade de existência de acções executivas contra a devedora.

O adiamento da audiência de discussão e julgamento.

Alega a recorrente que a audiência deveria ter sido adiada com o fundamento na falta do seu mandatário, que enviou um fax, na véspera, informando que se encontrava doente. Refere ainda que o julgamento deveria ser anulado por violação dos princípios do contraditório e da cooperação.

Segundo os elementos constantes dos presentes autos, pode verificar-se que a marcação da audiência foi feita mediante prévio acordo das partes, nos temos do artigo 155º do Código de Processo Civil.

A requerida foi pessoalmente citada, nos termos do artigo 29º nº 1 do CIRE e deduziu oposição, tendo sido pessoalmente notificada em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 35º.

No caso de o devedor não comparecer à audiência nem um seu representante, a consequência está prevista no artigo 35º nº 2.

No caso dos autos, perante tal circunstancialismo, o Mº Juiz limitou-se a aplicar aquele artigo 35º nº 2, ou seja, declarou confessados os factos alegados na petição inicial, vindo a decretar a insolvência da apelante.

Em qualquer circunstância não haverá lugar ao adiamento da audiência, conforme é pretensão da apelante.
Na verdade, e conforme vem preceituado no artigo 17º do CIRE, “o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.

Damos primazia ao ensinamento de Carvalho Fernandes e João Labareda: “ Na tarefa que lhe incumbe, o intérprete deve ainda rodear-se de uma cautela complementar que lhe é imposta pela parte final deste artigo 17º. Pode realmente suceder que a solução encontrada na convocação das normas do Código de Processo Civil se configure contrária à que é consagrada ou determinada pelo próprio Código. Nessa eventualidade, fica excluída a aplicação das normas comuns (…)”.

Acresce que o processo de insolvência tem carácter urgente, conforme se dispõe no artigo 9º do CIRE. A par da urgência em sentido estrito, e como uma das manifestações mais sensíveis da preocupação de rapidez, segue-se a atribuição de prioridade aos processos de insolvência, traduzida, como a lei esclarece, na sua precedência sobre o serviço ordinário do tribunal – nº 1.

Um domínio privilegiado da intervenção para a celeridade do processo é o da redução dos prazos judiciais que competem aos diversos intervenientes, inserindo-se na preocupação geral de celeridade processual que inspira todo o CIRE, como se pode ver nas disposições dos artigos 27º nº 1, 28º, 29º nº 1 e 35º nº 1 e 8.

Foi essa a razão que levou o legislador no artigo 35º nº 2 a estabelecer um regime tão rigoroso que regula a comparência da requerente ou da devedora, ou dos seus representantes na audiência de julgamento.

Com base em todos estes argumentos, não poderia o tribunal a quo proceder ao adiamento da audiência, sendo acertada a decisão de aplicação da cominação prevista no nº 2 do artigo 35º, sem que isso represente violação dos princípios do contraditório ou da cooperação.

A nulidade da sentença

Sustenta a apelante que a sentença é nula por violar o disposto no artigo 668º nº 1 alª b) do Código de Processo Civil (omissão da matéria de facto dada como provada).
Também nesta parte a apelante não tem razão.

A sentença começou por um breve relatório, fazendo referência aos factos alegados na petição inicial e aos documentos juntos. Face àqueles factos, decidiu a sentença, que haveria lugar à aplicação do disposto no artigo 35º nº 2 do CIRE, tendo sido dados como confessados.

Arrumada a questão de facto, passou a douta sentença a aplicar o direito, decretando a insolvência, sustentada na matéria de facto acima referida.

Sendo assim e sem necessidade de maiores considerações, não existe a invocada nulidade da sentença.
Improcedem, deste modo, todas as conclusões das alegações da apelante.

III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa, 29 de Junho de 2006

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Sérgio Gouveia