Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8999/20.4T8LRS.L1-8
Relator: ANTONIO VALENTE
Descritores: CONVENÇÃO DE HAIA
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
VIAGEM DE MENOR AUTORIZADA PELO PROGENITOR
RETENÇÃO ILICITA PELA PROGENITORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Tendo a mãe da menor, ambas de nacionalidade brasileira, viajado com a filha para Portugal e provando que o fez com autorização do pai (igualmente brasileiro), tal deslocação é válida nos termos do art. 13º a) da Convenção de Haia de 25/10/1980.
- Contudo, o facto de a mãe ter posteriormente fixado domicílio permanente em Portugal com a filha, sem lograr provar que o haja feito com autorização do outro progenitor, configura uma retenção ilícita da menor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

O Ministério Público intentou - ao abrigo dos arts. 1°, alíneas a) e b), 2º, 3°, 4°, 5°, alínea a), 6°, 7°, 11°, 12° e 14°, todos da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980 - o presente processo tutelar cível relativo à menor A [ Isabella .....] , nascida a 20/12/2018, contra a progenitora da mesma, B  [ .... Tavares ], pedindo o regresso da aludida menor ao Brasil.
Alegou, para tanto, que:
A menor residia com os progenitores no Brasil, na Rua Geraldo Bertolluci, nº ...., Bairro Monte Líbano, Lavras, Minas Gerais, tendo aquela saído do país a 14/3/2020, acompanhada pela progenitora, com destino a Portugal, sendo que o pai autorizou essa deslocação a território nacional para a criança visitar a avó materna, Priscila do Amaral, aqui residente.
O pai consentiu na viagem através de documento de autorização de viagem internacional, decorrendo expressamente desse documento que a autorização dada não foi para efeitos de fixação de residência permanente no exterior, mas, ainda assim, a menor não regressou ao Brasil com a mãe até à data.
Não existe qualquer decisão das autoridades judiciárias brasileiras que conceda à mãe qualquer tipo de guarda da filha.
Não existe qualquer referência a eventual regulação do exercício das responsabilidades parentais em Portugal.
A 23/6/2020, o progenitor deduziu perante as autoridades brasileiras um pedido de retorno da menor ao Brasil, nos termos do art. 3° da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
Nos termos do art. 1634° do Código Civil Brasileiro, compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar quanto aos filhos, incluindo conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem no exterior e conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem a sua residência permanente para outro município.
A retenção da criança em Portugal, sem consentimento do progenitor, configura uma retenção ilícita.
A DGRSP, Autoridade Central em Portugal, contactou a progenitora no sentido de promover uma solução amigável, com regresso voluntário da menina ao Brasil, sendo que a mãe respondeu que tinha viajado com a filha para Portugal com autorização do pai, encontrando-se a procurar aqui trabalho e a tratar da documentação necessária para aqui residir.
Pediu-se, em conformidade, a reposição da situação em que a menor se encontrava até 14/3/2020, encetando-se todas as diligências necessárias e pertinentes ao regresso de A ao país da sua residência habitual, sob os cuidados e responsabilidade da DGRSP.
Citada a requerida para exercício do contraditório, veio a mesma sustentar que:
Após o nascimento da A em dezembro de 2018, os progenitores da mesma organizaram-se para que o plano de mudança para Portugal do agregado se concretizasse, sendo que a menor e a progenitora viriam em primeiro lugar e o progenitor viria após o término da faculdade;
Entretanto, em janeiro de 2019, após uma discussão entre o casal, o progenitor deixou a casa onde viviam e, após regressar, como forma de pedido de desculpas, entregou dois documentos a favor da requerente para que esta obtivesse o passaporte da menor, com o objetivo de a A viajar somente na companhia da mãe, e uma procuração particular que conferia "amplos, gerais e ilimitados poderes para B administrar a vida social da A a qualquer título" pelo período de 2 anos;
Na sequência do relatado, a menor e a mãe deixaram o Brasil a 19/3/2020 com o intuito de residirem em Portugal, tendo o progenitor expressamente autorizado a mudança de domicílio da menor, facto de amplo conhecimento de amigos e familiares, como decorre dos documentos juntos com a oposição;
Aliás, alguns dias após a chegada a Portugal de mãe e filha, os progenitores mantiveram conversa sobre o futuro do casal neste país quando o pai aqui chegasse.
Nas mensagens trocadas é possível ver C afirmar que a decisão de se mudar para Portugal era real e noutra mensagem ainda de março de 2020 é possível visualizar C afirmar que, caso o relacionamento entre o casal não se mantivesse, pretendia ser um pai presente na vida da filha, o que faria por meio de viagens a Portugal para visitá-la e até mesmo levando-a a passear pelo Brasil.
Passado algum tempo, e após conversas sobre os problemas que Douglas enfrenta com álcool, drogas, vício em jogos e dependência financeira de sua mãe, em 20 de maio de 2020 o casal optou por terminar o relacionamento afetivo, algo que não foi bem recebido pelo progenitor, iniciando-se, a partir daí, as ameaças, sobretudo dizendo que a menor não ficaria sob a guarda da requerida e que regressaria ao Brasil: através do WhatsUpp disse "Situação da A vamos resolver judicialmente ... já que é para ser cuzão .. vou ser com gosto", o que significa que o pai não está interessado em resolver a situação da filha de acordo com o seu interesse.
Não há direito de custódia do pai em relação à filha visto que o exercício efetivo dos direitos de custódia pressupõe que o titular deste direito se encarregava de prestar os cuidados à menor nos aspetos mais significativos da sua vida, como alimentação e saúde, tendo esse exercício sido, por acordo, delegado à requerida, algo que o fim do relacionamento veio solidificar, tornando necessária a regulação das responsabilidades parentais.
O requerido nunca foi responsável pelas despesas e gastos da menor, que sempre foram suportados pela requerida e sua família, e, inclusive, seria a família da requerida a custear a passagem aérea do progenitor para Portugal e a sustentar aquele até que conseguisse um emprego em Portugal, sendo que, desde que a menor está em Portugal, nunca o pai contribuiu com qualquer valor para suprir as necessidades da filha, mesmo estando em constante contacto com a menor e a progenitora.
Concluiu que:
A custódia da criança não era e não é actualmente exercida pelo progenitor, pelo que não pode afirmar-se que a deslocação da menor para Portugal foi ilegal antes tendo sido a mudança de residência autorizada e planeada pelo próprio pai, que permitiu que a guarda da filha ficasse a cargo da progenitora até à sua chegada a Portugal.
Só por meio de ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais poderá ser tratada a questão suscitada nos autos, pelo que não é aplicável a Convenção de Haia ao caso concreto.
O regresso da menor ao Brasil criaria uma de duas situações:
a) a criança regressa sozinha ao Brasil, sem a mãe, avó, tios e primos que vivem em Portugal e perde o vínculo a que está habituada;
b) a mãe regressa ao Brasil com a menor e submete-a a uma realidade de escassez alimentar, serviço de saúde escasso, sistema escolar deficitário, cenário que já foi vivido pela requerida durante toda a sua vida;
O progenitor não possui qualquer tipo de trabalho, vive a expensas da mãe e não possui condições económicas e psicológicas para prestar todos os cuidados de que a criança necessita.
Pediu, em conformidade, que a acção seja julgada improcedente, declarando-se que, por acordo entre os progenitores, a residência da menor se fixou em Portugal, sendo a mãe quem administra a custódia da filha, à qual se deverá conceder a guarda da menor até que estejam reguladas as responsabilidades parentais.
Notificados ao progenitor o teor da contestação e dos documentos juntos em anexo, veio o mesmo aduzir que:
A requerida distorce a realidade dos factos, fazendo alegações falsas por desespero, porquanto sabe que decidiu de forma unilateral fixar residência em Portugal;
Enquanto a requerida e a menor residiram no Brasil era o progenitor quem custeava as despesas básicas de ambas, sendo que, durante algum tempo, o progenitor viveu em Lavras-MG e a requerida e a menor residiam em Carvalhos-MG (cidades que distavam 321 km entre si), tendo estas, entretanto, mudado para Lavras-MG de forma a que toda é família ficasse junta e foi neste contexto que a progenitora decidiu viajar para Portugal para visitar a genitora, a qual se encontrava a residir em território nacional.
Efectivamente, apenas foi dada autorização de viagem da menor para Portugal, e não também autorização para residência da criança no país, e a própria mãe o reconhece ao dizer que o pai "entregou dois documentos em favor de B para que a mesma emitisse o passaporte da menor para viajar somente na companhia da progenitora ... ":
A requerida cita uma procuração que, em tese, daria poderes para que B pudesse tomar providências sobre a menor, mas aquela comporta-se com flagrante má fé, uma vez que a procuração foi apenas outorgada para que a progenitora pudesse emitir o passaporte para viagem, para que pudesse arrumar sozinha os documentos necessários;
Querer afirmar que a procuração em causa substitui uma autorização de mudança de residência/domicílio é conduta eivada de má fé;
Segunda a legislação internacional vigente, a progenitora necessitaria de uma autorização de mudança de residência da menor, documento esse que não pode ser substituído por nenhum outro, sobretudo por uma procuração que claramente não foi outorgada para esse fim;
As alegações da requerida são contraditórias, pois afirma que o pai apenas autorizou a viagem da menor e depois afirma que o mesmo autorizou expressamente a mudança de domicílio da menor, sendo que, se houvesse autorização expressa de mudança de domicílio, esse documento estaria junto ao processo;
Contrariamente ao avançado, o progenitor não tem qualquer envolvimento com drogas, álcool ou jogo e, apesar de a progenitora dizer que houve conversas entre os pais nas quais o progenitor autorizava a mudança de domicílio, tudo não passou de diálogos nos quais o requerente afirmou que, um dia, talvez no futuro, pudesse fazer parte dos planos da família uma mudança para Portugal, inexistindo qualquer lógica em pretender que essas conversas íntimas e em exercício de suposições fossem suficientes para suprir um documento formal que deve ser assinado para autorizar uma alteração de domicílio da menor.
Concluiu o progenitor no sentido de que apenas autorizou a viagem por prazo determinado e estender tal autorização para uma mudança de domicílio configura ilícito do direito internacional, pelo que deve ser determinado o retorno da menor ao Brasil.
A requerida veio responder à peça processual do progenitor, reiterando o já dito na contestação apresentada e finalizando no sentido de que o progenitor não juntou qualquer meio de prova que pusesse em causa as provas que a mesma carreou para o processo.
Foi proferida decisão que indeferiu o requerimento de retorno da menor ao Brasil, considerando não existir retenção ilícita da menor em Portugal.
Foram dados como provados os seguintes factos:
1)  A menor A nasceu a 20/12/2018, no Brasil, e é filha de C [ Douglas ...]  e de B, tendo todos nacionalidade brasileira.
2) Em março de 2020, a menor em apreço e sua progenitora deixaram o Brasil com destino a Portugal, onde já se encontrava a residir a avó materna de A.
3)  Aquando da vinda para Portugal, a menor vivia com ambos os pais - mais concretarnente na Rua Geraldo Bertolucci, n..., Monte Líbano, Lavras/MG, Brasil -, sendo que não se encontrava regulado o exercício das responsabilidades parentais quanto à mesma, não havendo notícia de que tal tenha entretanto ocorrido.
4) Consta de fls. 79 e 80 dos autos a seguinte procuração, subscrita por C:
PROCURAÇÃO
OUTO RGANTE:
C, brasileiro, solteiro, estudante, inscrito no CPF sob o nº 106…, portador da Cédula de Identidade n° MG17…, SSP/MG, residente e domiciliado na Rua …, n° ..., Monte Líbano, nesta cidade de Lavra/MG, Brasil, CEP 37202-597 e em Portugal terá domicílio e residência na Rua …, Lote ..., novo 11, Urbanização Senhora da Guia, 2005-352, Santarém.
OUTORGADA:
B, brasileira, solteira, do lar inscrita no CPF sob o n°. 137…, portadora da Cédula de Identidade nº 52…, SSP/PS, passaporte BRA nº GB…, residente e domiciliada atualmente na Rua …, nº ....., Monte Líbano, nesta cidade de Lavras/MG, Brasil, CEP 37202-597 e em Portugal terá domicílio e residência na Rua …, lote ....., novo 11, Urbanização Senhora da Guia, Código Postal: 2005-352 Santarém.
PODERES:
São conferidos à outorgada, amplos, gerais e ilimitados poderes para administrar a vida social, seja a que título for, e tudo o que se refira à menor A, filha da outorgante, nascida em 20/12/2018 em Carvalhos/MG. Brasil, portadora da Cédula de Identidade nº 66…, SSP/SO, Certidão Nascimento Matrícula 036… 2018 1 00022 1480011933 18, passaporte BRA n° GB…, podendo, para tanto, preencher e assinar guias, termos, declarações ou requerimentos diversos, juntar, apresentar e retirar papéis e documentos, firmando-os, tais como solicitação de documentos, transferência e matrícula em qualquer curso ou escola, hospitais, na saúde pública ou particular e onde mais preciso for; acompanhá-la e recebê-la em qualquer aeroporto, partindo ou chegando em qualquer viagem nacional ou internacional; requerer autorizações de viagem e documentos, especialmente junto a Polícia Federal com a finalidade de requerer e receber passaporte, requerer autorização junto ao Juizado de menores para que a referida menor possa viajar acompanhada ou desacompanhada pelo Brasil e ao exterior; requerer vistos consulares, requerer certidões, formulários, requerimentos e guias, pagar taxas; constituir advogados com os poderes da cláusula Ad Judicia, com os mais amplos poderes em qualquer juízo, instância ou tribunal; receber citação inicial, acordar, concordar, transigir e desistir; assinar quaisquer papéis, prestar declarações ou requerer quaisquer outros documentos necessários a regularizar os interesses da vida social da referida menor; representá-Ia perante quaisquer repartições públicas federais, estaduais e municipais, cartórios de registro civil de pessoas naturais; requerer, alegar e assinar o que for necessário ao bom e fiel cumprimento do presente mandado. Os elementos relativos à qualificação e identificação do outorgante e da outorgada, bem como o objeto e os demais dados aqui contidos foram fornecidos e conferidos por ele, outorgante, que se responsabiliza civil e criminalmente pela veracidade e exatidão das informações prestadas.
VALIDADE:
 A presente procuração é válida por 2 (dois) anos, encerrando a sua vigência em 19/02/2022.
Lavras/MG., 21 de fevereiro de 2020.
5) A fls. 81 e 82 dos autos consta documento, datado de 22/11/2019 e subscrito pelo progenitor, no qual o mesmo autoriza a expedição de passaporte para a filha A e a autorização de viagem internacional desta, pelo prazo de validade do passaporte, desacompanhada ou com apenas um dos pais, indistintamente.
6) Após a chegada da menor e da mãe a Portugal, os progenitores de A trocaram vários emails, fazendo alusão a um eventual futuro de ambos enquanto casal em Portugal após C concluir a faculdade, aventando-se, de qualquer modo, a hipótese de a relação entre o casal não perdurar, eventualidade em que o progenitor viria visitar, em passeio, a filha a Portugal, ou vir buscar a filha para permanecer junto de si durante algum tempo.
7) Nas mensagens trocadas é possível ver C afirmar que a decisão de se mudar para Portugal era real e noutra mensagem é possível visualizar Douglas afirmar que, caso o relacionamento entre o casal não se mantivesse, pretendia ser um pai presente na vida da filha, o que faria por meio de viagens a Portugal para visitá-la e até mesmo levá-la a passear pelo Brasil.
8) A requerida foi contactada pela Autoridade Central Portuguesa no sentido de se obter uma solução consensual neste domínio, tendo aquela, em resposta, enviado à DGRSP, juntamento com cópia dos documentos mencionados nos nºs 4 e 5 da matéria fáctica assente, o documento de fls. 60, devidamente subscrito pela mesma, no qual sustenta:
"Em atendimento ao ofício recebido no dia 3 de agosto de 2020, informo que ingressei em Portugal com minha filha A com a devida autorização do pai, C, através da procuração que segue em anexo.
Cumpre esclarecer ainda, que o pai C, me comunica que está se programando para vir morar em Portugal, logo que tenha trabalho e toda a documentação pessoal necessária para tanto.
Aproveito a oportunidade para informar que durante minha estadia em Portugal, poderá ser contactada no seguinte endereço:
Praça …, Torre ..... - Santo Antonio dos Cavaleiros P 2660 226 - Loures, Lisboa.
Feitos os esclarecimentos acima e tendo atendido ao solicitado, Pede-se e exige-se
Deferimento"
Discordando da decisão o Exº Magistrado do Mº Pº vem apelar da mesma concluindo que:
 - A menor A nasceu a 20/12/2018, no Brasil, e é filha de C e de B, todos nacionalidade brasileira.
- No dia 14 de Março de 2020, a menor em apreço e sua progenitora deixaram o Brasil com destino a Portugal, onde já se encontrava a residir a avó materna de A.
- Aquando da vinda para Portugal, a menor vivia com ambos os pais - mais concretamente na Rua …, nº ...., Monte Líbano, Lavras/MG, Brasil - sendo que não se encontrava regulado o exercício das responsabilidades parentais quanto à mesma, não havendo notícia de que tal tenha, entretanto ocorrido.
- A 21/02/2020, o progenitor outorgou procuração, a favor de B, autorizando a viagem da menor a Portugal.
- Em face da retenção da criança A, o progenitor apresentou, a 23/06/2020, pedido perante as autoridades brasileiras, de retorno da filha ao Brasil, no âmbito da Convenção de Haia de 25.10.80, transmitido por aquela autoridade à DGRSP, que é a autoridade central portuguesa, designada nos termos e para os efeitos previstos na Convenção.
- Decidiu o Mmo Juiz a quo que, "por tudo o expendido, não merece acolhimento a pretensão de retorno da menor para o Brasil, visto que a deslocação da mesma para Portugal foi autorizada pelo progenitor, o qual anuiu, igualmente, à sua permanência em território nacional, o que equivale a dizer que não se verifica uma retenção ilícita de A neste pais".
- Nestes autos não existem elementos ou prova que permita fundamentar tal recusa em ordenar o regresso da A ao Brasil.
- Ao abrigo do artigo 13°, da Convenção de Haia, apenas poderá ser recusado o regresso da menor se ocorrer uma das situações previstas nas alíneas a) ou b).
- Entendeu o Tribunal a quo mostrar-se verificada a excepção prevista na alínea a) do artigo 13° da Convenção, ou seja, que o progenitor tivesse consentido ou concordado posteriormente com essa transferência ou retenção, sustentada tal facto na análise da procuração junta aos autos conjugada com os e-mails trocados entre os progenitores.
- Discordamos de tal valoração dos documentos juntos, porquanto, a nosso ver, o texto da procuração não permite concluir, como concluiu o Tribunal, que o progenitor, ao subscrever a mesma, estava a atribuir em exclusivo à progenitora o exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da filha.
- A dita procuração outorgada pelo progenitor à progenitora, permitia, em moldes bastante amplos, que esta tratasse de todos os assuntos da filha junto de entidades públicas, como seja documentação, escolas, hospitais entre outras, e deslocações da menor - acompanhada ou desacompanhada - fossem elas dentro do território brasileiro ou internacionais ("pelo Brasil e ao exterior").
- O facto de constar uma morada sita em Portugal, na procuração outorgada pelo progenitor, não se poderá interpretar como consentimento deste para que a filha resida, a titulo permanente, neste país.
- Os e-mails juntos pela progenitora aos autos não deverão ser valorados, porquanto incompletos, escassos para três de meses de comunicação do casal, e em nenhum deles é abordada a questão da criança permanecer com a mãe em Portugal, referindo o progenitor num dos e-mails que "e apesar de nunca passar pela minha cabeça abandonar a Isa ou tirar ela de você, essas consequências afetam a ela também" e "não B. Não vai afetar dessa forma. Falo que afeta de outras formas, como crescer sem um pai presente, morar com avós, tios, etc".
- O progenitor da menor A exercia efectivamente a custódia na época da transferência e não é sua vontade que a filha "cresça sem um pai presente", donde, daí igualmente não se retira um consentimento posterior à transferência e/ou retenção da criança em Portugal.
- Dispõe o artigo 1634°, do Código Civil Brasileiro, que o pleno exercício do poder familiar pertence a ambos os pais, o que abarca, designadamente conceder ou negar autorização de mudança permanente dos filhos para local distinto daquele onde viviam.
- Assim, a procuração junta aos autos não consubstancia uma autorização de residência da filha em território nacional, mas somente uma autorização de um progenitor ao outro para tratar de assuntos administrativos e de viagem, porquanto nada é escrito quanto à (fixação de) residência da menor, no estrangeiro.
- "Para que assim não seja, é necessário que se prove o consentimento posterior (al. a) ou o risco (al. b), cabendo o ónus da prova a quem se opõe ao regresso (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2012. Na falta de qualquer prova, é imperativo determinar o regresso (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2012) (Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças, Maria dos Prazeres Beleza, in Julgar, nº 24 - 2014, Coimbra Ed., disponível in www.julgar.pt).
- Competia, pois, à progenitora fazer prova da situação prevista na al. a) do artigo 13°, da Convenção, o que não fez.
- Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/01/2020, "na verdade, incumbia ao requerido demonstrar que deslocou a criança para Portugal com a autorização da mãe, e para tal fim teria forçosamente de exibir uma declaração escrita que o atestasse, conforme é realçado pelo tribunal recorrido, ou em alternativa que residia com a criança num outro Estado por um período mínimo de um ano, sem que se registasse qualquer pedido de regresso, o que não sucedeu".
- A retenção da criança A é ilícita, porque efectuada em violação do direito de custódia - cf. artigos 3° e 5°, al. a) da citada Convenção, constituindo fundamento para que se determine de imediato a entrega/regresso da menor a fim de assegurar os direitos de custódia do pai - cf. artigos 1 ° a), 7°, al. f) e 12°, da Convenção.
- Não se mostram verificadas nenhumas das excepções previstas nos artigos 12°, 13° ou 20° da Convenção para que se obstasse ao regresso imediato da criança ao Brasil.
- A decisão recorrida violou as seguintes disposições legais: 1°, 3°, 5°, 11°, 12° e 13°, da Convenção de Haia de 25.10.1980.
- O artigo 3°, aI. a) da Convenção está preenchido já que o direito de custódia estava a ser exercido de maneira efectiva no momento da transferência da criança.
- A criança viveu com os progenitores, no Brasil, até ao dia 14/03/2020.
- O regresso da criança deve ser o mais rápido possível, com vista a minorar as consequências negativas que estas mudanças de ambiente poderão ter para aquela. Neste sentido dispõe o artigo 11° da Convenção que determina que as autoridades competentes dos estados contratantes deverão adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança.
- Em consequência, ao abrigo do artigo 12°, parágrafo 1 ° "quando uma criança tenha sido ilicitamente retida nos termos do artigo 3° e tiver decorrido MENOS DE UM ANO entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do inicio do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do estado contratante onde   a criança se encontra, a autoridade respectiva DEVERÁ ORDENAR O REGRESSO IMEDIATO DA CRIANÇA".
- Ao abrigo deste último artigo citado, o despacho a proferir nestes autos apenas poderia ser o de ordenar o regresso imediato da criança A ao Brasil, uma vez que esta se encontra em Portugal desde Março de 2020, ou seja, há menos de um ano desde a data de início do processo.
- Nos termos dos artigos 1°, al. a), 3°, 5°, al. a), 11°, 12° e 13°, (a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25.10.1980, deverá proceder o pedido formulado no âmbito da cooperação judiciária internacional entre Estados e ser ordenado o regresso da criança A ao país da sua residência habitual - Brasil.
Pelo exposto,
Deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, deverá ser ordenado o regresso imediato da criança A ao país da sua residência habitual - Brasil.
Também o progenitor recorreu da sentença, concluindo que:
- Em virtude do alegado supra e sua consequência, é o de nos levar a concluir que atento toda prova carreada aos autos, o progenitor notadamente NÃO ANUIU com a fixação de residência da menor em Portugal, uma vez que a procuração que assinou foi para outorgar poderes a progenitora para que pudesse emitir o passaporte da menor para a viagem. Sendo assim é clarividente a necessidade de retomo da menor ao Brasil;
- Entretanto, caso Vossas Excelências entendam que o reconhecimento da procuração como autorização de domicílio deva prosseguir, requer, alternativamente, que seja determinado o retorno da menor ao Brasil até o término da validade da referida procuração, em 19/02/2022, sendo esta a data limite para retomo.
NESTES TERMOS APELA-SE QUE, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, SENDO AQUELA SENTENÇA REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE DETERMINE O RETORNO DA MENOR A AO BRASIL.
OU CASO SE RECONHEÇA A PROCURAÇÃO COMO AUTORIZAÇÃO DE DOMICÍLIO, REQUER COMO TESE SUBSIDIÁRIA QUE A MENOR A RETORNE AO BRASIL ATÉ O TÉRMINO DA VALIDADE DA REFERIDA PROCURAÇÃO, EM 19/02/2022.
A requerida contra-alegou, sustentando a bondade da decisão recorrida.
Cumpre apreciar.
Está em causa a licitude da presença da menor A em Portugal, acompanhada pela mãe, após deslocação do Brasil, onde ambas viviam com o pai da criança, o ora requerente.
Neste sentido e em termos de factualidade, tudo se centra na interpretação que se der à procuração que o dito progenitor passou a favor da progenitora e que se acha junta a fls. 79 dos autos. Tal procuração data de 21/02/2020, encerrando-se a sua vigência em 19/02/2022.
Antes do mais, coloca-se a questão de saber se a vinda da menor e da requerida para Portugal ocorreram com autorização do requerente.
Ora, não restam dúvidas de que a viagem da requerida B e da sua filha A para Portugal, vindas do Brasil, país de que são naturais, tal como o requerente, e onde residiam, foi autorizada por C pai da criança, o que de resto consta do articulado inicial do Ministério Público.
Dito isto, há que reconhecer que uma coisa é uma deslocação a Portugal – onde vive a avó materna da menor – outra é a fixação de residência permanente no nosso país.
É sobre este ponto que se foca a controvérsia dos autos.
De resto, lida a contestação da requerida B, é claro que a intenção desta, conhecida do pai da A ou não, teve sempre como objectivo vir viver para Portugal – ver art. 6º da contestação.
É aqui aplicável a Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional da crianças, que no seu art. 12º estabelece:
Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida (...) e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data de início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança”. A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de um ano deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.”
O progenitor deduziu pedido de retorno da menor ao Brasil perante as autoridades brasileiras em 23/06/2020, tendo o Ministério Público deduzido a presente acção a 03/11/2020. A viagem da requerida com a menor para Portugal teve lugar em 14/03/2020, passando a viver em Portugal desde essa altura.
Logo a acção é tempestiva, respeitando o citado art. 12º da Convenção. De resto, a menor nasceu a 20/12/2018, tendo um ano de idade aquando da propositura da acção o que, manifestamente afasta quaisquer factores relevantes de integração no seu novo meio.
Por seu turno o art. 13º da Convenção estabelece que:
A autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo, que se oponha ao seu retorno provar:
a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção;
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.”
A situação descrita na alínea b) é manifestamente inaplicável ao caso, pelo que é na alínea a) que a sentença recorrida poderá encontrar o seu fundamento.
Analisando a já referida e transcrita procuração passada pelo progenitor, há que reconhecer que a mesma, como refere o Mº juiz a quo, não confere poderes à requerida apenas para gerir actos quotidianos da filha, tendo um âmbito mais abrangente. Entre tais poderes poderemos mencionar o de preencher e assinar guias, termos, declarações ou requerimentos, transferência e matrícula em qualquer curso ou escola, hospitais, na saúde pública ou particular, acompanhar a menor ou recebê-la em qualquer aeroporto, partindo ou chegando em qualquer viagem nacional ou internacional, requerer passaporte, assinar quaisquer papéis da vida social da menor, representá-la perante quaisquer repartições públicas, federais, estaduais ou municipais.
Por outro lado, a procuração, na parte em qe identifica a outorgada, indica a sua morada no Brasil mas logo a seguir acrescenta que “em Portugal terá domicílio e residência na Rua …, Lote ......RC/E, novo 11, Urbanização Senhora da Guia, Santarém”.
Assim e como já tínhamos referido, inexiste qualquer ilicitude na viagem do Brasil para Portugal da requerida acompanhada da filha, estabelecendo domicílio na aludida morada no distrito de Santarém.
Porém, uma coisa é a viagem para Portugal – e uma vez em Portugal estabelecer um domicílio, como é óbvio, já que não iriam viver na rua – outra é uma mudança para residência permanente em Portugal.
A procuração não menciona de modo algum a mudança da residência permanente para Portugal.
De resto, a própria procuração tem uma vigência claramente delimitada, sendo válida desde a data em que foi outorgada, 21/02/2020, até 19/02/2022, ou seja, durante um período de dois anos. Esta limitação mostra que não havia sido pensada uma transferência definitiva para Portugal, à qual de resto, a procuração nunca faz qualquer menção.
Quanto aos e-mails trocados entre os progenitores, é verdade que desde meados de 2019 ambos começam a pensar numa mudança para Portugal, procurando inteirar-se das condições para obter trabalho, do custo da viagem, do acesso a cuidados de saúde, sendo que o progenitor, C, precisaria primeiro de concluir o curso universitário.
Os e-mails juntos, apenas três, não estão completos, e dos mesmos nunca se pode depreender que o requerente tivesse em mente que a vinda da requerida e da filha para Portugal fosse a título definitivo. Só se fala desta questão quando, por razões não explicitadas – certamente que houve outros e-mails que não estão juntos – requerente e requerida cessaram a sua mútua relação e o requerente se apercebeu que a requerida iria ficar em Portugal com a filha a título permanente.
Os e-mails não permitem de maneira nenhuma esclarecer sequer o que se passou entre requerente e requerida. Além disso, a requerida em Novembro de 2020 já não tinha a sua morada em Santarém mas antes em Santo António dos Cavaleiros, concelho de Loures.
Ora, quer o carácter incompleto e por vezes incompreensível dos e-mails – por se referirem a realidades e circunstâncias que desconhecemos por não constarem dos autos – quer a procuração conferida por C não podem fazer concluir que este tivesse outorgado tal procuração com vista à mudança definitiva de domicílio da filha, do Brasil para Portugal.
Sublinhe-se ainda que os planos, ainda pouco definidos, de vinda para Portugal – e que podem também ter a ver com a deslocação para o nosso país da mãe de B .... em 2018 -  se situam em 2019, antes da viagem da requerida com a menor A. A discussão de preços da viagem de avião, por exemplo, e a referência ao facto de o preço ser mais baixo a partir de Janeiro constam do e-mail de C de 28/08/2019.
Aquilo que é dado como provado nos nºs 6 e 7 da decisão factual é correcto, mas resulta de um e-mail de Maio de 2020, quando é manifesto que se instalou uma situação de facto na qual a requerida já fixou residência permanente em Portugal. De resto, na sequência desse e-mail, C responde “Não B. Não vai afectar dessa forma. Falo que afecta de outras formas, como crescer sem um pai presente, morar com avés, tios, etc”. Aliás, fazendo referência à própria experiência da requerida B que, ao que parece, crescera sem um pai, que abandonara a família.
Interpretar conversas por e-mail, incompletas, truncadas, como declarações definitivas de intenções parece-nos pouco avisado.
Como se refere no acórdão desta Relação de Lisboa de 05/06/2012, disponível no endereço electrónico da dgsi, “está fundamentalmente em causa, pela consagração do regime jurídico constante do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro de 2003, e em primeira linha, a protecção dos interesses da criança, no plano internacional, contra os efeitos prejudiciais que resultam de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita, garantindo o seu regresso, em tempo breve e de uma forma expedita, ao Estado da sua residência habitual. O objectivo fulcral do regulamento prende-se com a necessidade de dissuadir a deslocação ou a retenção ilícita de crianças entre os Estados Membros e, caso tal se verifique, provocar o seu regresso sem demoras, procurando-se obstar ao benefício do infractor daquele que, actuando em violação do regime legal existente no Estado da residência habitual do menor, o desloca para outro país ou aí o retém, privando ilegitimamente o outro progenitor do seu convívio, esperando que o facto consumado que assim gerou se vá sedimentando pela adaptação da criança à nova realidade, quiçá para invocar a posteriori o superior interesse do menor em não perder o espaço e tempo de integração que entretanto foi adquirindo e de que porventura terá beneficiado”.
Não havia sido proferida qualquer decisão judicial quanto ao exercício do poder paternal. À data da viagem, os pais da criança viviam juntos com a A.
A prova da licitude da deslocação da menor para Portugal competia ao progenitor que efectuou tal deslocação e tal prova foi feita pela requerida.
Mas a prova da licitude da mudança de domicílio para Portugal a título permanente – que também incumbia, neste caso, à requeridanão foi feita.
O art. 1634º do Código Civil Brasileiro determina que o pleno exercício do poder familiar pertence a ambos os pais, o que inclui conceder ou negar autorização de mudança permanente dos filhos para local distinto daquele onde viviam. O mesmo se dirá da legislação nacional, nomeadamente do art. 1906º nº 1, 1909º e 1911º do Código Civil.   
Por último, repita-se que a procuração que valida a viagem da menor para Portugal com a mãe, não só não faz qualquer alusão à fixação em Portugal de novo domicílio a título permanente como o próprio facto de a vigência da procuração ser apenas de dois anos, inculca a conclusão de dever ser atribuído ao conjunto de poderes que ela contém, um carácter temporário.
Conclui-se assim que:
- Tendo a mãe da menor, ambas de nacionalidade brasileira, viajado com a filha para Portugal e provando que o fez com autorização do pai (igualmente brasileiro), tal deslocação é válida nos termos do art. 13º a) da Convenção de Haia de 25/10/1980.
- Contudo, o facto de a mãe ter posteriormente fixado domicílio permanente em Portugal com a filha, sem lograr provar que o haja feito com autorização do outro progenitor, configura uma retenção ilícita da menor.

Termos em que procede a apelação, revogando-se a decisão recorrida, e ordenando-se o regresso imediato da menor A ao Brasil, país da sua residência habitual.
Custas pela recorrida.

LISBOA, 30/9/2021
António Valente
Teresa Prazeres Pais
Rui Vouga