Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
0083206
Nº Convencional: JTRL00023010
Relator: RIBEIRO COELHO
Descritores: REGISTO DA ACÇÃO
Nº do Documento: RL199505180083206
Data do Acordão: 05/18/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJ ANOXX 1995 TIII PAG113
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR REGIS NOT.
Legislação Nacional: CRP84 ART3 N2 A.
Sumário: I - Não há lugar ao registo de acção de reivindicação se o prédio já está inscrito em nome do autor.
II - Se o juiz entender que há lugar ao registo de acção e se o requerimento nesse sentido vier a ser recusado na conservatória, os autos deverão seguir os seus termos como se aquele primeiro entendimento se não tivesse verificado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
Corre termos pelo 14 Juízo Cível de Lisboa acção declarativa com processo ordinário em que os AA. (F) e (L), fundados na circunstância de a respectiva aquisição estar inscrita no registo predial a seu favor e na presunção daí decorrente, reivindicam dos réus (J) e (H) o prédio sito (W) em Lisboa e o pagamento de uma indemnização pelos prejuízos da detenção ilícita do mesmo.
Contestada a acção, e além do mais que agora não interessa referir, o Senhor Juiz, face ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade invocado, e considerando o disposto no art. 3, n. 1, al. a) e n. 2, do Código do Registo Predial, suspendeu a instância até ser demonstrado estar a acção inscrita no registo predial.
Tendo na 3 Conservatória do Registo Predial sido recusada a realização do registo por o autor na acção ser já o titular do direito inscrito, e perante o despacho a seguir proferido nestes autos indeferindo o requerimento dos AA. pedindo o prosseguimento da acção, foi interposto por eles o presente agravo, cujas alegações finalizam com as seguintes conclusões: a) O despacho que ordena que os autos aguardem o registo da acção apenas implica a obrigação de requerer um registo; b) Se o registo solicitado for recusado pela entidade competente, no caso a Conservadora, deve a acção prosseguir os seus termos; c) A acção de reivindicação não está sujeita a registo, nomeadamente quando a decisão a proferir não altera a posição dos AA. como proprietários do prédio reivindicado.
E pedem que se decida o prosseguimento da acção.
Não houve contra-alegações e o despacho recorrido foi sustentado.
Cumpre decidir.
O registo predial, de acordo com o art. 1 do CRP - diploma a que pertencem as disposições que a seguir se citarem sem outra menção -, visa essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança jurídica do comércio imobiliário.
Este objectivo é prosseguido através da inscrição dos factos jurídicos que naquela situação têm reflexo, os quais se acham enunciados no art. 2.
Em princípio, a inscrição definitiva da aquisição de direitos ou da constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome daquele que os transmite ou onera
- art. 34, n. 1. É o chamado princípio do trato sucessivo ou da continuidade, que leva a que as inscrições constituam uma cadeia ininterrupta que explica como o direito em causa veio à esfera jurídica do último titular inscrito.
A inscrição prévia acima referida só é dispensada havendo, de acordo com a al. a) do art. 35 e com o art. 116, justificação do direito através de escritura de justificação notarial ou de sentença proferida em processo especial próprio - o processo de justificação judicial regulado no D. L. n. 284/84, de 22 de Agosto.
Por outro lado, o cancelamento dos registos é feito com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos ou em execução de decisão judicial transitada em julgado.
Esta mecânica, conjugada com a obrigação, que impende sobre o Conservador, de verificar a legalidade do pedido de inscrição e de o recusar se não estiver de acordo com a lei - arts. 68 e 69, que definem o chamado princípio da legalidade -, legitima que de tudo a lei extraia a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define - art. 7.
Este sistema envolve ainda uma consequência: a de que só se efectua uma nova inscrição se ela traduzir uma alteração da situação jurídica do prédio. Não se faz uma inscrição contendo o reconhecimento de um direito de que é titular uma pessoa que no registo predial figura já como seu titular inscrito.
Esta conclusão tem reflexos no registo que, de acordo com o art. 3, se faz de certas acções aí enunciadas.
Na verdade, quando a al. a) do n. 1 do art. 3 sujeita a registo as acções que tenham por fim o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção dos direitos referidos no art. 2, o que se inscreve é uma antecipação do registo a que a al. c) do mesmo n. 1 sujeita as decisões finais dessas acções logo que transitem em julgado; o registo da acção é feito através de uma inscrição provisória por natureza - art. 92, n. 1, al. a) - e o registo da decisão final nela proferida é feito por averbamento àquela inscrição, que envolve a conversão daquela inscrição em definitiva - art.
101, n. 2, al. a) e n. 4.
Daqui decorre, por força da prioridade resultante do art. 6, n. 3, que o direito reconhecido ao autor seja oponível a terceiros que só em data posterior ao registo da acção tenham feito inscrever direitos sobre o mesmo prédio.
Sendo assim, impõe-se concluir que, apesar de os arts. 2 e 3 falarem simplesmente em reconhecimento de direitos, sem distinção, deles deve fazer-se uma interpretação restritiva de modo a que sejam entendidos como abrangendo apenas o reconhecimento de um novo direito.
Daí se tira que, não obstante a afirmação genérica de que a acção de reivindicação está sujeita a registo - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela,
Código Civil Anotado, Vol. III, pg. 102 -, o seu registo só terá, de facto, cabimento quando for proposta por quem ainda não é titular inscrito do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado.
Não se diga que a não realização do registo, nos termos daqui decorrentes, pode traduzir a não publicitação de um litígio sobre a situação jurídica do prédio e a consequente inoponibilidade da sentença a terceiros que entretanto venham a adquirir e fazer inscrever direitos incompatíveis com o do autor; esta eventual aquisição só poderá ser levada ao registo com observância do princípio do trato sucessivo, o que significa que só poderão ser inscritos direitos de que seja transmitente o titular inscrito, que é, precisamente, o autor.
Não se contraria, com este entendimento, a opinião expressa por Antunes Varela na Rev. Leg. Jur., ano 103, pg. 484, para quem o registo da acção - de preferência ou de reivindicação - visa possibilitar executar a decisão contra quem tenha adquirido do réu o prédio. É que, sendo o autor o titular inscrito, não poderá ser inscrita sem sua intervenção uma aquisição em que o transmitente seja o réu, e não o autor.
E a sentença, mesmo sem o registo da acção, sempre será oponível ao adquirente, nos termos do art. 271, n. 3, do C. P. Civil.
Acresce que, se a acção tiver êxito, resulta confirmado o direito do autor, o que nada acrescenta ao que o registo atesta; e se não tiver êxito, daí não decorre a afirmação de que o direito pertença ao réu, a não ser que haja sido deduzida reconvenção nesse sentido, sendo então esta que deve ser registada.
No sentido que atrás se defende tem vindo a pronunciar-se unanimemente a jurisprudência emitida pelos tribunais superiores, como se vê dos seguintes acórdãos:
- Relação de Coimbra, 10/5/88, Col. Jur., 1988, Vol. III, pg. 65;
- Relação de Évora, 4/5/89, Col. Jur. 1989, Vol. III, pg. 264;
- Relação de Évora, 26/10/89, Col. Jur. 1989, Vol. IV, pg. 265;
- Relação do Porto, 9/4/92, Col. Jur. 1992, Vol. II, pg. 233;
- Relação de Coimbra, 21/12/93, Col. Jur. 1993, Vol. V, pg. 52;
- Relação de Évora, 11/11/93, ibidem, pg. 218.
Esta linha é também vigorosamente defendida por Jorge de Seabra Magalhães, Estudos de Registo Predial, Almedina, 1986, pgs. 35 e segs.
A ela aderiu a própria Direcção Geral dos Registos e Notariado em parecer emitido pelos serviços técnicos no processo 1/24 R. P. 94, com concordância do Senhor Director Geral expressa em despacho de 17/3/94.
Nos presentes autos o Senhor Juiz seguiu por sentido contrário, mas limitando-se a invocar o disposto na al. a) do n. 1 do art. 3 e sem qualquer argumentação que pudesse colocar em dúvida tudo o que ficou já dito e citado.
Por isso se entende que não foi seguida a orientação correcta.
O que não teria causado problemas se os serviços registrais tivessem efectuado o registo. Mas foi o contrário que sucedeu, evoluindo a situação até ao impasse que os autos revelam.
Interessa ver qual a forma como deve ser coordenada a intervenção do tribunal e da conservatória nesta matéria.
Já ficou referido o art. 68, que atribui ao conservador competência para, segundo critérios de estrita legalidade, aceitar ou recusar a efectivação dos registos que lhe sejam requeridos por quem tiver para tanto legitimidade, sendo de reter que os arts. 36 e 38 não conferem ao juiz legitimidade para, directamente, tomar a iniciativa dessa efectivação.
Compulsando o Código do Registo Predial, encontram-se situações em que a decisão judicial pode determinar, de modo irrecusável pelos serviços registrais, a efectivação de actos da competência destes. É o que se passa com o cancelamento de um registo feito em execução de decisão judicial transitada em julgado - art. 13 - e com a decisão proferida em processo de justificação judicial, conducente à obtenção de uma primeira inscrição em caso de carência de trato sucessivo - art. 116. É ainda o que se passa com a decisão do recurso contencioso interposto contra a decisão de recusa, da qual o próprio conservador pode recorrer - art. 140, n. 1, 146 e 147 - e com a rectificação judicial de um registo - arts. 127 e segs..
Fora destes casos, não tem o juiz poder para determinar, de modo vinculativo, a efectivação de um acto registral.
Assim, o n. 2 do art. 3 - que estatui o seguinte:
"As acções sujeitas a registo não terão seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição, salvo se o registo depender da respectiva procedência." - tem que ser entendido no sentido de que as acções sujeitas, em concreto, a registo serão apenas aquelas que os serviços registrais competentes entenderem que devem ser registadas, e não aquelas que o juiz assim tiver considerado.
Em consequência, se, findos os articulados, o juiz entender que há lugar ao registo da acção e se o requerimento feito nesse sentido vier a ser recusado na conservatória, os autos deverão seguir os seus termos como se aquele primeiro entendimento se não tivesse verificado.
Não significa isto que se tolera uma "desobediência" a uma ordem judicial pela simples razão de que nenhuma ordem foi dada, nem poderia tê-lo sido por falta de competência legal para tanto.
Ao fim e ao cabo, a intervenção judicial neste campo limita-se a ser a de suscitar junto dos serviços competentes do registo predial a questão da realização do registo, o que aí será decidido com total autonomia técnica e jurídica.
Pode igualmente dizer-se que é unânime a orientação jurisprudencial que com este sentido tem vindo a ser seguida nos nossos tribunais superiores. São disto exemplo os seguintes acórdãos:
- Relação de Lisboa, 24/10/80, Col. Jur, 1980, Vol. IV, pg. 122;
- Relação do Porto, 23/3/89, Col. Jur., 1989, Vol. II, pg. 209;
- Relação do Porto, 1991, Col. Jur., Vol. II, pag. 251;
- STJ, 15/1/91, BMJ n. 403, pg. 345.
O caso tratado no primeiro destes acórdãos é praticamente o mesmo que agora se nos apresenta, pois que tanto num como no outro começou por ser proferido despacho determinando a suspenção da instância até ser documentada nos autos a realização do registo da acção e mais tarde, perante o pedido de prosseguimento da marcha dos autos após a recusa da conservatória, decidiu-se pela negativa, invocando-se ali o esgotamento do poder jurisdicional do juiz e aqui a formação de caso julgado.
E ali se escreveu:
"Na realidade, os presentes autos não eram nem são a sede própria para se decidir essa questão.
Apenas havia que acautelar, e isso se fez. a intervenção dos competentes serviços de registo.
Não se tratou, pois, de despacho que decidisse a questão do registo; apenas se determinou um retardamento processual indispensável para que, em sede própria, se apreciasse o problema do registo.
Nesta medida, e só nela, se esgotou o poder jurisdicional quanto ao aspecto do registo da acção, ficando de pé a possibilidade do levantamento da suspensão se e na hipótese de, em sede competente, se decidir pela desnecessidade do registo." Paralelamente se dirá que nos presentes autos se formou caso julgado formal, não quanto à questão de saber se o registo devia, ou não, ser efectuado, mas apenas quanto à de saber se se devia, ou não, provocar uma pronúncia das entidades competentes - os serviços registrais - sobre aquela primeira questão.
Nada obrigando o autor, requerente no registo, a impugnar o despacho de recusa, este tornou-se decisão definitiva sobre a matéria, tendo desaparecido o motivo que levou à suspensão da instância.
Há, portanto, que lhe pôr termo.
Por conseguinte, concede-se provimento ao agravo, devendo substituir-se o despacho recorrido por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Custas pelo vencido a final, mas adiantadas agora pelo agravante.
Lisboa, 18 de Maio de 1995.