Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
238/2006-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Mesmo que os factos alegados na petição inicial sejam declarados confessados por falta de oposição do devedor, isso não envolve necessariamente a prolação de sentença declaratória de insolvência, devendo o juiz verificar se os factos confessados são de molde a consubstanciar algumas das hipóteses configuradas nas alíneas do nº 1 do artº 20º e só nesse caso é que declarará a insolvência, nos termos do artigo 30º nº 5 do CIRE.
II - Não basta que o credor alegue falta de cumprimento de uma ou mais obrigações pelo devedor, sendo necessário ainda provar que aquela falta, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, conforme preceitua o artigo 20º nº 1 alª b) do CIRE.
III - Os factos referidos no artigo 20º nº 1, do CIRE constituem factos-índices ou presuntivos de insolvência do requerido a que respeitam, tal como definida no artº 3º CIRE, a qual tem de ficar efectivamente demonstrada no processo.
IV - O despacho de aperfeiçoamento previsto no artigo 27º nº 1 alª b) do CIRE é um despacho proferido em sede de apreciação liminar e não já depois de o processo se encontrar na fase de declaração de insolvência prevista no artigo 30º nº 5 do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa



I - RELATÓRIO

Auto...- Comércio de Automóveis, Lda, veio requerer a declaração de insolvência de --- Transportes, Ldª.
Em síntese, alegou que a requerida é devedora da quantia de € 232.270,23 acrescida de juros, proveniente da compra e venda a prestações de veículos automóveis.
No último trimestre de 2001 e durante o ano de 2002, a requerida começou a ter falta de liquidez financeira. Apesar das interpelações feitas para o pagamento desde finais de 2001 até ao último mês de 2004 nunca liquidou essa quantia.
A requerida tem pendentes contra si diversos processos judiciais para cobrança de dívidas, não lhe sendo conhecidos quaisquer bens móveis ou imóveis.
A sua actividade foi reduzida em território nacional, pois durante o último ano a mesma foi gradualmente transferida para Espanha, local onde os seus sócios-gerentes estão ausentes por longos períodos de tempo.
A insolvência da requerida deve ser qualificada como culposa.
Pediu a dispensa de audiência prévia da requerida e a nomeação de administrador judicial provisório nos termos do art° 12°, n°s 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Foi indeferido o requerimento de dispensa de audição da devedora, tendo sido relegada para momento posterior ao prazo da oposição a decisão quanto à medida cautelar requerida.

Regularmente citada, a devedora veio deduzir oposição que, por ser intempestiva, foi mandada desentranhar.
Nos termos do art° 30°, n° 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas foram declarados confessados os factos alegados na petição inicial.
Todavia, o pedido da requerente improcedeu e a insolvência não foi declarada.

Não se conformando com a douta sentença, dela recorreu a requerente, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª- A situação de insolvência assenta em duas premissas, a impossibilidade de cumprimento, e o vencimento das obrigações, e com base nestes elementos deverá efectuar-se uma apreciação do conjunto do passivo da empresa e das circunstâncias que determinaram o incumprimento, do qual resulte que a empresa não vai cumprir as suas obrigações;
2ª - E face ao CIRE a impossibilidade de cumprir não significa ausência de activo, porque podem existir obrigações vencidas, em situação de incumprimento, e existir activo suficiente para satisfazer os credores, sem que esse facto obste à decretação da insolvência;
3ª - A exigência que o CIRE determina, para a verificação de situação de insolvência, é que o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, independentemente da exigibilidade das obrigações ou do seu activo;
4ª - Os lucros da recorrida alegados em sede de fundamentação da decisão, não vão, de acordo com o espirito do CIRE, de maneira alguma, invalidar a situação da insolvência da recorrida, porque esse facto não obsta à sua decretação.
5ª - Por outro lado, e atendendo à falta de elementos juntos aos autos, o tribunal não pode, sem esses elementos, concluir pelos lucros auferidos pela recorrida, e consequentemente determinar que a recorrida, face aqueles lucros se encontra numa situação de solvabilidade;
6ª - Nem sequer foi junto plano de insolvência pela recorrida, e só nessa situação é que o tribunal poderia indagar em concreto quais os lucros auferidos pela recorrida no exercício da sua actividade empresarial;
7ª - Por outro lado, não cabe ao credor fazer prova da viabilidade ou inviabilidade económica da empresa, apenas lhe basta invocar factos dos quais possa resultar a prova de que o devedor está impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas;
8ª - A quem cabe a prova da solvência é à empresa devedora, e conforme consta dos autos, a recorrida não deduziu oposição, logo, não fez prova da sua solvência, tendo como consequência o reconhecimento imediato da situação de insolvência;
9ª - Efectivamente, a recorrida foi citada nos termos da lei, e dispunha de 10 dias de prazo para deduzir oposição ao pedido, e conforme consta dos autos, a oposição foi extemporânea, e isto equivale à não oposição.
10ª - Desta forma, a cominação legal para a falta de oposição é considerarem-se confessados os factos alegados pelo autor na petição inicial, e o imediato reconhecimento da situação de insolvência;
11ª - Se, dos factos confessados na p. i. resultar o preenchimento de alguma das alíneas do n.° 1 do artº 20° do C.I.R.E., o que é o caso da situação em análise, e agora objecto de recurso;
12ª - Pelo que, de acordo com o CIRE e atenta a confissão dos factos, o tribunal deveria ter declarado a insolvência da empresa requerida ora recorrida, no dia útil seguinte ao termo do prazo destinado à oposição;
13ª - Mas o tribunal não declarou a insolvência, pelo contrário, veio determinar a improcedência do pedido apresentado pela recorrente;
14ª - Fundamentando a improcedência do pedido na falta de elementos essenciais ou necessários à caracterização do crédito alegado pela requerente;
15ª - Acontece que os factos foram declarados como confessados, logo ficaram assentes, incluindo o crédito reclamado pela recorrente;
16ª - Numa outra perspectiva, e atenta à alegada falta de elementos e/ou insuficiências em sede de p. i. que permitissem caracterizar o crédito alegado pela recorrente, a decisão proferida nesta sede deveria ter sido proferida em sede de fase liminar, e através de despacho de aperfeiçoamento; convidando a requerente a juntar e/ou esclarecer os elementos em falta, de forma a suprir as deficiências, sem por em causa os legítimos interesses da requerente/recorrente – artº 27° n° 1 al. b) do C.I. R.E.
17ª - No entanto o tribunal não recorreu a esta faculdade, apesar de ser um preceito inovador no novo código, com vista ao reforço da importância da apreciação liminar e do despacho de aperfeiçoamento;
18ª - O crédito que a recorrente reclamou na p. i. cifra-se em € 232.270,23;
19ª - A recorrente justificou devidamente a origem do crédito, a natureza e o seu montante, conforme determina o CIRE, juntando os elementos que dispunha na data de entrada do requerimento, mas conforme foi dito supra, se não eram elementos suficientes, o tribunal poderia tê-los solicitado na fase liminar proferindo despacho de aperfeiçoamento para esse efeito;
20ª - Cabe aqui esclarecer que, quer os contratos de compra e venda dos veículos pesados, quer a consignação do pagamento a prestações do preço daqueles, foram estipulados de forma verbal entre a recorrente e a recorrida;
21ª - Esclarece-se ainda que, o valor total das compras efectuadas pela recorrida junto da empresa recorrente, entre os anos de 2002 e 2004, cifrava-se num total de € 308.521,75, dos quais € 66.736,91 foram pagos pela recorrida, ficando em dívida uma quantia no valor de € 241.784,84;
22ª - A quantia em dívida corresponde à quantia total inscrita nos cheques devolvidos por falta de provisão, que foram entregues à recorrente para pagamento do preço das vendas em prestações;
23ª - E conforme se verifica da análise dos documentos agora juntos, o crédito da recorrente sobre a empresa recorrida é superior ao alegado em sede de petição inicial;
24ª - Assim, face à pratica reiterada de constantes devoluções de cheques por falta de provisão, ao lapso de tempo em que aquela prática foi efectuada, comprova que a recorrida tem-se encontrado impossibilitada de cumprir pontualmente com as obrigações vencidas;
25ª - Quanto aos credores, a recorrente identificou cinco na p. i., conforme determina o CIRE, por serem do conhecimento da recorrente, esta não sabe, nem tem obrigação de saber, se são ou não os maiores credores da recorrida;
26ª - Por desconhecer se aqueles eram ou não os maiores credores da recorrida, é que a recorrente requereu ao tribunal que a recorrida viesse juntar aos autos a identificação dos restantes credores, com indicação do montante, natureza, datas de vencimento e garantias;
27ª - Discordamos da conclusão efectuada pelo tribunal quanto à análise dos elementos relativos aos credores identificados pela recorrente, pois num dos processos - entrega judicial de vários veículos pesados de mercadorias - não há indicação do valor, nem da dívida, nem da acção, havendo uma forte probalidade de esse valor ser mais ou menos elevado;
28ª - Pelo que, face ao desconhecimento por falta de elementos suficientes para determinar com segurança o valor total das dívidas da recorrida, o tribunal devia ter-se abstido de concluir como concluiu, pois fundamentou-se numa presunção e/ou dedução;
29ª - Certo é que, a recorrida tem outras dívidas com outras empresas, significando isto que, aquela não tem tido a capacidade/possibilidade de cumprir pontualmente com as suas obrigações vencidas, assumidas no âmbito da sua actividade comercial;
30ª - Ainda quanto ao crédito da recorrente, na fundamentação da decisão o tribunal concluiu pelo desconhecimento do valor concreto do crédito, no entanto esse mesmo crédito é considerado como facto assente na mesma decisão, havendo aqui uma contradição entre a matéria de facto assente e a fundamentação de decisão da qual se recorre;
31ª - Foi violado, numa primeira fase, o art° 27° n° 1 do CIR.E. - atendendo à eventual falta de elementos que permitissem caracterizar o crédito em concreto na p. i. - por não ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento em sede de fase liminar, com vista ao suprimento de alguma insuficiência;
32ª - Foi ainda violado, numa segunda fase, o artº 30° n° 5 do CIRE, por não ter sido declarada a insolvência, face à confissão dos factos alegados pelo autor, da qual resulta o reconhecimento imediato da situação de insolvência;
33ª - A decisão recorrida violou ainda o art° 659° nº 3 do C.P.C. ao lançar mão de deduções para concluir que não está verificada uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, pois não há elementos suficientes que permitam chegar a essa conclusão com segurança;
34ª - O mesmo se dirá relativamente aos eventuais lucros que a recorrida aufere na sua actividade comercial, e alegados na decisão, pois também não há elementos suficientes nos autos que nos permitam concluir que esses lucros existem, pelo que o tribunal não podia socorrer-se desta dedução no sentido de alegar a falta de solvabilidade, pois não há matéria probatória nos autos que a sustente.
35ª - E atendendo ao exposto em 33 e 34 das presentes conclusões, a douta decisão recorrida está ferida de nulidade, nos termos do art° 668° nº 1 al. d) do C.P.C.

Termina, invocando a violação das normas constantes nos art° 27° n° 1, e 30° n° 5 do CIRE e ainda do art° 659° n° 3 do C.P.C. e requerendo que a decisão recorrida, seja revogada e substituída por outra que declare a insolvência da recorrida "Jet Set, Transportes, Ldª", conforme determina do artº 30° n° 5 do CIRE.

Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto

A primeira instância considerou admitidos por confissão os seguintes factos:  
1º - A requerente é uma sociedade comercial que se dedica à venda de veículos automóveis pesados e respectivos equipamentos.
2º - A requerida dedica-se ao transporte público de mercadorias.
3º - A requerida está sediada na Rua --, lote 20, ---, ---, Caldas da Rainha, mas o local onde habitualmente gere a sua actividade comercial e onde estabelece os seus contactos, quer com fornecedores, quer com clientes, situa-se na Rua ---, em Caldas da Rainha, cujas instalações funcionam presentemente como escritório.
4º -A requerida também desenvolve a sua actividade comercial em Espanha.
5º - Do contrato de sociedade constam como sócios gerentes o Sr. Rui --- e a Sra Cândida ---, casados em comunhão de adquiridos, residentes na Rua ---, lote 20, Vila ---, ---, em Caldas da Rainha.
6º - Durante o ano de 2001, no âmbito da sua actividade comercial, a requerente vendeu os seguintes veículos automóveis pesados de mercadorias à requerida, que os comprou:
- Tractor marca VOLVO, modelo F12FS4246E, ano de 1988, matrícula ---, no valor de (4.680.000$00) – Euros 23.343,74;
- Semi reboque marca ROBUSTE KAISER, modelo 8260 3P1 C, ano de 1993, matrícula ---, no valor de(1.287.000$00) - Euros 6.419,53;
- Tractor marca SCANIA, modelo RA 4X24 36C, ano de 1989,             matrícula ---, no valor de (3.510.000$00) – Euros 17.507,81;
- Tractor marca. SCANIA, modelo RA 4x24 36C, ano de 1990, matrícula ---, no valor de (4.680.000$00) – Euros 23.343.74;
- Tractor marca RENAULT, modelo AE 385 TL 19T 41 (UGZA1), ano de 1996, matrícula ---, no valor de (6.435.000$00) - Euros 32.097,44;
- Tractor marca SCANIA, modelo RA1 36C, ano de 1991, matrícula ---, no valor de (5.265.000$00) – Euros 26.261,71;
- Tractor marca SCANIA, modelo 8113 MW 4X213, ano de 1992, matrícula ---, no valor de (5.265.000$00) – Euros 26.261,71;
- Tractor marca SCANIA, modelo R3M 4X2 AS 65115, ano de 1991, matrícula ---, no valor de (4.680.000$00) Euros 23.343,74;
- Tractor marca SCANIA. Modelo RA4, ano de 1998, matrícula ---, no valor de (4.680.000$00) - Euros 23.343,74;
- Tractor marca SCANIA, modelo RA4 36C, ano de 1989, matrícula ---, no valor de (3.510.000$00) Euros 17.507,81;
- Semi reboque marca , modelo 3139-D-13, ano de 1985, matrícula ---, no valor de (2.574.000$00) – Euros 12.839,06.
7º - Na sequência das referidas transações comerciais, foi acordado entre a requerente e a requerida efectivar os contratos de compra e venda sob o regime de pagamento a prestações, consignando a reserva de propriedade a favor da requerente até integral pagamento do preço
pela aquisição dos veículos.
8º - O valor total dos veículos vendidos é de Euros 232.270,23.
9º - No último trimestre de 2001 e durante o ano de 2002 a requerida, devido a dificuldades de ordem económica, começou a ter falta de liquidez financeira.
10º - Não obstante as diligências efectuadas pela requerente desde finais de 2001 até ao último mês de 2004, junto dos sócios gerentes da requerida, para que esta procedesse ao pagamento da quantia referida em 8º, esta nunca foi liquidada.
11º -  Até ao final de 2004, a requerida tem devolvido toda a correspondência enviada pela requerente.
12º - Até à presente data, a requerida não entregou à requerente qualquer quantia por conta da importância referida em 8º.
13º - A requerida é objecto dos seguintes processos judiciais:
- Processo n° 846/02 - Execução Sumária a correr termos na 1ª Secção do 3° Juízo Cível de Lisboa, com a quantia exequenda de Euros 8.241,42, em que é exequente -Companhia de Seguros ---;
- Processo n° 6245/03.4TVLSB - Execução Ordinária, a correr termos na 2ª Secção da 4ª Vara Cível de Lisboa, com a quantia exequenda de Euros 22.012,72, em que é exequente o Banco ---;
- Processo n° 37881 /03.8DLLSB - Execução Sumária, a correr termos na 2ª Secção do 4° Juízo Cível de Lisboa, com a quantia exequenda de Euros 1.438,78, em que é exequente a Companhia ---;
- Processo n° 6456/03-2TVPRT - Providência Cautelar - entrega judicial de vários veículos automóveis pesados - correu termos na 2ª Secção da 1ª Vara Cível do Porto e foi remetida à 3ª Secção da 4ª Vara Cível do Porto, para ser apensada à Acção Ordinária n° 713/04.8TVPRT (fundada em contrato de locação financeira), em que é autor - ---,Leasing, S.A;
- Processo nº 01376/04.6TBGRD - Execução Comum, a correr termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, com a quantia exequenda de Euros 286,38, em que é exequente – A-----G---, S.A;
- Processo n° 1081 /04.3TBCLD - Execução Comum, a correr termos no 3° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha, com a quantia exequenda de Euros 38.695,94, em que é exequente – S---- T---s, S.A.
14º - Não são conhecidos quaisquer bens móveis ou imóveis pertencentes à requerida.
15º - O local designado como sendo a sede da requerida encontra-se sem qualquer tipo de movimento de pessoas ou actividade e sem qualquer tipo de mobiliário.
16º - No local sito na Rua --- a actividade comercial está reduzida.
17º - Durante o último ano, toda a actividade comercial desenvolvida pela requerida foi gradualmente transferida para Espanha.
18º -  Os sócios-gerentes da requerida estão ausentes em Espanha por longos períodos.

B- Fundamentação de direito
 
Dispõe o artigo 20º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) o seguinte: "A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa (…)”;
“d) Dissipação, abandono, liquidação apressada (…)”I;
“e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito de exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;”.

A audiência da devedora, ora requerida, não foi dispensada e não tendo a oposição sido deduzida atempadamente, foram considerados confessados os factos alegados na petição inicial, devendo a insolvência ser declarada no dia útil seguinte ao do termo do prazo para a dedução da oposição, se aqueles factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do nº 1 do artigo 20º - artº 30º nº 5 do CIRE.

Apesar de os factos alegados pela requerente se terem por confessados, isso não envolve necessariamente a prolação de sentença declaratória.
O juiz deve então verificar se os factos confessados são de molde a consubstanciar alguma das hipóteses configuradas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º e só nesse caso é que declarará a insolvência[1].

Os factos referidos no artigo 20º constituem meros índices da situação de insolvência, tal como definida no artº 3º CIRE, a qual tem de ficar demonstrada no processo.

A definição de insolvência vem definida no citado artº 3º, nos seguintes termos:
“É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” - que corresponde com modificações ao artº 3º do CPEREF.
A questão da obrigação estar vencida não é relevante, uma vez que a insolvência acarreta a perda do benefício do prazo (ut artº 780º do C. Civil).

O que se impõe averiguar é se, da factualidade alegada pelo requerente, resulta, de forma indiciária, a verificação de uma impossibilidade do requerido “de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Impõe-se averiguar se os factos alegados no requerimento inicial preenchem qualquer dos pressupostos ou requisitos indiciadores da insolvência mencionados no artº 20º CIRE.

Antes, porém, daremos a primazia ao ensinamento oportuno de Oliveira Ascenção:
“ O CPEREF manifestava o que chamávamos ternura, desvelo, carinho pelo falido. A finalidade precípua parecia ser a de proteger o insolvente, de envolta com a meta na manutenção da empresa. Agora é de recear que se tenha passado para o outro extremo. O interesse individual dos credores é determinante e o interesse colectivo na manutenção de empresas viáveis apaga-se, juntamente com o pagamento dos meios de controlo das decisões dos credores”[2].

Esta asserção de Oliveira Ascenção, vem muito na linha de orientação do novo CIRE, impondo-se aqui, para melhor compreensão, algumas passagens significativas do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE:
“ 3 - O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.
Quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quando aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais.
 Urge, portanto, dotar estes dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores, enquanto impossibilidade de pontualmente cumprir obrigações vencidas.
Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado”.
E mais adiante, no nº 6 refere que “ não valerá, portanto, afirmar que no novo Código é dada primazia à liquidação do património do insolvente. A primazia que efectivamente existe, não é demais reiterá-lo, é a da vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos, em condições de igualdade quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral”.
Finalmente, uma referência importante contida na parte final do nº 19 do preâmbulo:
“Expressamente se afirma, todavia, que o devedor pode afastar a declaração de insolvência não só através da demonstração de que não se verifica o facto indiciário alegado pelo requerente, mas também mediante a invocação de que, apesar da verificação do mesmo, ele não se encontra efectivamente em situação de insolvência, obviando-se a quaisquer dúvidas que pudessem colocar-se ( e colocaram-se na vigência do CPEREF) quanto ao carácter ilidível das presunções consubstanciadas nos indícios”.

É altura de retomar os pressupostos ou requisitos indiciadores da insolvência.
A requerente Auto --- – Comércio de Automóveis, Ldª veio requerer a declaração de insolvência da requerida J----- S---- Transportes, Ldª, invocando como fundamento o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 20º do CIRE, ou seja, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

O preceito atribui “aos credores do direito de, por iniciativa própria, requererem a insolvência do devedor.
Para isso, prevalecer-se-ão da verificação de determinados factos ou situações cuja ocorrência objectiva pode, nos termos da lei, fundamentar o pedido.
Trata-se daquilo a que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”[3].

Anotando aquela alínea b) do nº 1 do artigo 20º ensinam aqueles autores o seguinte:
“ o estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, fazer a demonstração efectiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência ( vd. artº 3º nº 1).
Caberá então ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice.
Esta solução está, de resto, hoje claramente consagrada nº nº 3 do artigo 30.
O que se passa é que, uma vez que o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constituir facto-índice quando, pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, o requerente deve então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada”[4].
Chegados aqui, importa retomar o núcleo principal da matéria de facto provada em sede de incumprimento da obrigação por parte da requerida.
Assim, provou-se que entre a requerente e a requerida foram celebrados diversos contratos de compra e venda de veículos automóveis sob o regime de pagamento a prestações, consignando a reserva de propriedade a favor da requerente, até integral pagamento do preço pela aquisição dos veículos.
Provou-se ainda que o valor total dos veículos vendidos é de € 232.270,23, que no último trimestre de 2001 e durante o ano de 2002 a requerida, devido a dificuldades de ordem económica, começou a ter falta de liquidez financeira.
Aquela quantia nunca foi liquidada, apesar das diligências efectuadas pela requerente desde finais de 2001 até ao último mês de 2004, junto dos sócios gerentes da requerida.
Além disso, correm contra a requerida outros processos judiciais.

Ora, a questão que agora se coloca com toda a acuidade é a de saber se aqueles montantes em dívida, constantes da alegação da requerente, que traduzem incumprimento de várias obrigações, constituem ou não um facto-índice que, pelas suas circunstâncias, evidencia impossibilidade de pagar; dito de outro modo, importa saber, seguindo de perto o ensinamento dos autores citados, se a requerente demonstrou que as circunstância foram efectivamente demonstradas e que levam a concluir que a requerida se encontra em penúria generalizada e é inviável economicamente.

Sendo os contratos de compra e venda de veículos sob o regime de pagamento a prestações, não foi junto um único contrato escrito, com as respectivas cláusulas, para se poder aquilatar do número de prestações acordadas, valor unitário das mesmas e datas respeitantes ao pagamento de cada uma.

A requerente apenas alegou que é credora da requerida de dívidas que, até à data, nada pagou, desconhecendo se a mesma tem quaisquer bens móveis ou imóveis.
Na verdade, o facto de a devedora ter deixado de cumprir as suas obrigações de pagamento à requerente não traduz a impossibilidade de a devedora “satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
É que, podem as demais obrigações da requerida para com terceiros ter sido pontualmente cumpridas, seja com bens dela, seja com bens ou dinheiro de terceiro(s).
Desconhece-se, por outro lado, as circunstâncias em que tal incumprimento ocorreu.
Como tal, a factualidade alegada não preenche o disposto na alínea b) do nº 1 do artº 20º do CIRE, o único alegado pela requerente e que consubstancia a causa de pedir.
Por isso, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura, sendo de confirmar.

Mas a recorrente esgrime ainda um último argumento que importa analisar.
Entende que, havendo elementos insuficientes na petição inicial que permitissem caracterizar o crédito alegado pela recorrente, deveria ter havido um despacho de aperfeiçoamento, convidando a requerente a juntar ou a esclarecer os elementos em falta, de forma a suprir as deficiências, nos termos do artigo 27º nº 1 alª b) do CIRE.
Diremos de antemão que a recorrente não  tem razão.
No despacho liminar constante de fls. 32, considerando que não havia lugar a indeferimento liminar, foi ordenada a citação da requerida nos termos e para os efeitos dos artigos 29º nº 1 e 30º nºs 1 e 3 do CIRE.
Tendo sido ordenado o desentranhamento da contestação por extemporaneidade da mesma, foram declarados confessados os factos alegados na petição inicial, em conformidade com o disposto no artigo 30º nº 5 e proferida a decisão que julgou improcedente o pedido de declaração de insolvência.
O pretendido despacho de aperfeiçoamento perdeu oportunidade processual, pois deveria ter sido proferido em sede de apreciação liminar, nos termos do artigo 27º do CIRE, o que não aconteceu.
Por isso, improcede também este argumento.

Argumenta ainda a recorrente que, face à confissão dos factos alegados, deveria ter sido declarada imediatamente a insolvência, nos termos do artigo 30º nº 5 do CIRE.
Também aqui não tem razão.
Estabelece o nº 5 do artigo 30º daquele código o seguinte:
“ Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, e a insolvência é declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo referido no nº 1, se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do nº 1 do artigo 20º”.

Para que não restem quaisquer dúvidas a este respeito, Carvalho Fernandes e João Labareda ensinam o seguinte: “ o único sentido possível da parte final do nº 5 do artº 30º é o de que a falta de oposição não tem um efeito cominatório pleno, cabendo ainda ao juiz proceder a uma reapreciação dos factos que constituem a causa de pedir e se consideram confessados. Segui-se, afinal de contas, em sede de processo de insolvência, a solução geral dada pela lei processual civil comum para o tratamento da revelia operante ( vd. artº 484º nº 1 do C.P.Civ.)”.
“ Os factos alegados pelo requerente têm-se por confessados, embora isso não envolva necessariamente a prolação de sentença declaratória. O juiz deve então verificar se os factos confessados são de molde a consubstanciar algumas das hipóteses configuradas nas alíneas do nº 1 do artº 20º e só nesse caso é que declarará a insolvência”[5].

Perante todo o exposto, é evidente que não ocorreu a violação do disposto no artigo 659º nº 3 do  C.P.Civ., pois foi feito o exame crítico das provas de que cumpria ao juiz conhecer, tomando em consideração os factos confessados.
Muito menos se verifica a nulidade prevista no artigo 668º nº 1 alª d) do C.P.Civil.

Em síntese diremos o seguinte:
- Mesmo que os factos alegados na petição inicial sejam declarados confessados por falta de oposição do devedor, isso não envolve necessariamente a prolação de sentença declaratória de insolvência, devendo o juiz verificar se os factos confessados são de molde a consubstanciar algumas das hipóteses configuradas nas alíneas do nº 1 do artº 20º e só nesse caso é que declarará a insolvência, nos termos do artigo 30º nº 5 do CIRE.
- Não basta que o credor alegue falta de cumprimento de uma ou mais obrigações pelo devedor, sendo necessário ainda provar que aquela falta, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, conforme preceitua o artigo 20º nº 1 alª b) do CIRE.
- Os factos referidos no artigo 20º nº 1, do CIRE constituem factos-índices ou presuntivos de insolvência do requerido a que respeitam, tal como definida no artº 3º CIRE, a qual tem de ficar efectivamente demonstrada no processo.
- O despacho de aperfeiçoamento previsto no artigo 27º nº 1 alª b) do CIRE é um despacho proferido em sede de apreciação liminar e não já depois de o processo se encontrar na fase de declaração de insolvência prevista no artigo 30º nº 5 do CIRE.


III - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa,  23 de Fevereiro de 2006

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Sérgio Gouveia

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[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, Volume I, 2005, pág. 171.
[2] “Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso”, ROA, Ano 65, Setembro de 2005, pág. 283.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob cit. pág. 131.
[4] Autores e ob cit. pág. 133.
[5] Autores e ob cit. pág. 168 e 171