Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
140/19.2PALSB.L3-9
Relator: RENATA WHYTTON DA TERRA
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE DESPACHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I-Tendo a assistente interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde, contrariamente ao decidido pela Mm.ª JIC, se decidiu existirem indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica, elencando-se a factualidade que sustentaria a sujeição do arguido a julgamento pela prática de um crime de violência doméstica, pelo qual deveria ser pronunciado, terminando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa com o dispositivo “Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente provido nos termos supra indicados devendo ser o arguido pronunciado pelos factos e crime referido”, então tendo sido os autos remetidos à Instrução Criminal, a Mm.ª JIC não proferiu despacho de pronúncia mas, ao invés, por entender (mas mal) que o arguido já se encontrava pronunciado pelo tribunal superior, remeteu indevidamente os autos à distribuição, para julgamento, o qual teve lugar, tendo sido proferida decisão;
II- Ora perante tal quadro sucede que o arguido não foi ainda pronunciado pelos factos que a Relação considerou indiciariamente provados, estando-se perante uma verdadeira e literal ausência de pronúncia, de despacho de pronúncia, pelo que consequentemente os autos devem voltar à Instrução Criminal, a fim de ser proferido o despacho de pronúncia em falta, considerando-se inexistente todo o processado tramitado após o transito em julgado da decisão do Tribunal superior.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular n.º 140/19.2PALSB.L3 a correr termos no Juízo Local Criminal de Loures- Juiz 1 foi julgado o arguido AA, pela prática, em autoria material e com dolo direto, na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelos artigos 13.º, 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) do Código Penal e foi absolvido.
Desta decisão veio a assistente ………………… interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 1125 a 1155 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
a) A Recorrente interpõe o presente recurso da totalidade da Sentença contida na Ata de audiência de julgamento de 10 de janeiro de 2022, com a Ref.ª CITIUS 151138034, que absolveu o arguido da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) do CP, pelo qual se encontrava pronunciado.
b) Em primeiro lugar, a Recorrente não aceita a posição do Tribunal recorrido em como sempre seria forçosa a absolvição do arguido em virtude da incompleta descrição do tipo subjetivo do crime de violência doméstica (mais precisamente, no que respeita à modalidade do dolo do tipo) constante da pronúncia contida no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de abril de 2021, onde se lê: “9. O pai do menor agiu de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que estas suas condutas são proibidas por lei.”
c) Ora, cremos resultar claro da formulação acabada de citar que o arguido foi indiciado pela prática de um crime de violência doméstica a título de dolo direto, sendo que chegamos a esta precisa conclusão através da análise do Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, referenciado pelo Tribunal recorrido: “Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como consciência da ilicitude).
d)Por este motivo,”ao considerar que o elemento subjetivo do crime de violência doméstica não se encontrava suficientemente concretizado, o Tribunal recorrido violou as normas constantes do art. 14.º, n.º 1 do CP e do art. 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, este último aplicável ex vi o art. 308.º, n.º 2 do CPP,
e)Pois a leitura conjugada destas normas, juntamente com a correta definição da imputação subjetiva contida na pronúncia do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de abril de 2021, deveriam ter levado o Tribunal recorrido a considerar estar suficiente e adequadamente concretizado o tipo subjetivo do crime de violência doméstica imputado ao arguido, o que se requer seja declarado por V. Exas., com todas as consequências legais.
f) Em segundo lugar, a Recorrente insurge-se também com o facto de o Tribunal recorrido não haver tomado posição concreta quanto à verificação da lesão física sofrida pelo menor ……………..
g) Ora, considerando que o Tribunal recorrido admitiu, em diversos segmentos constantes da fundamentação da Sentença, não ter quaisquer dúvidas acerca da verificação dessa lesão, bem como que esta teria tido lugar entre os dias 1 e 4 de março de 2019, ao não integrar na matéria de facto provada referência à referida lesão e ao intervalo temporal em que esta ocorrera, o Tribunal recorrido violou parcialmente a norma contida no art. 374.º, n.º 2 do CPP, que lhe impunha que, ante a clareza com que se impôs a verificação da lesão e da respetiva data, o Tribunal recorrido a tivesse incluído nos factos dados como provados.
h) Não o tendo feito, a Sentença padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte e al. c), 1.ª parte do CPP, pelo que se requer seja suprida nos termos do art. 379.º, n.º 2 do CPP, devendo passar a constar da matéria de facto considerada provada o seguinte: «O menor …………., entre os dias 1 e 4 de Março de 2019, quando estava na casa dos avós e do arguido, sofreu uma lesão na coxa esquerda traduzida numa equimose.»
i)Na hipótese de V. Exas. considerarem tratar-se a omissão identificada de lapso manifesto, requer-se a correção da Sentença nos termos do art. 380.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CPP.
j) Em terceiro lugar, consideramos que a absolvição do arguido com fundamento no princípio in dubio pro reo assenta em erro de julgamento, uma vez que se encontra nos autos e foi produzida em julgamento prova mais do que suficiente para condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica.
k) Desde logo, consideramos que os factos não provados sob as alíneas b), d) e g), deveriam ter sido considerados como provados (“b) Em visita feita pelo menor ao pai ocorrida até 4 de Março de 2019, o pai do menor desferiu no mesmo um pontapé na coxa esquerda.”; “d) Nesse momento o pai do menor agarrou o menor pelos colarinhos e desferiu-lhe um pontapé na perna esquerda”; e “g) Aquela lesão foi consequência direta e necessária do pontapé que o pai lhe desferiu provocando equimose na região externa do terço médio da coxa esquerda com 35/18mm arroxeada, demandando doença por 8 dias)”.
l) O primeiro dos argumentos avançados pelo Tribunal recorrido para dar esses factos como não provados prende-se com o suposto conflito entre a Recorrente e o arguido, marcado pela instrumentalização do menor ………….. no sentido de este imputar factos falsos a um e a outro progenitor.
m) Não cremos que este entendimento seja válido, até porque assenta no exame pericial psicológico elaborado pelo perito …………. que, contudo, apenas esteve uma única vez com a criança.
n) O elemento probatório que demonstra isto mesmo e que imporia conclusão diversa à avançada pelo Tribunal recorrido é o depoimento prestado pelo perito ……………… na sessão de julgamento de 07.12.2021, no segmento compreendido entre o minuto 08:44 e o minuto 08:51 da gravação com início pelas 12 horas e 8 minutos e termo pelas 12 horas e 26 minutos (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740):
Mandatária da Recorrente: Olhe, eu gostava de começar por lhe perguntar quantas vezes é que esteve com o ………….
Perito …………………: Uma vez.
o) A insuficiência do contacto tido com a criança para saber se esta era ou não instrumentalizada pelos pais é por demais revelada pelo depoimento do técnico da CPCJ ……………………….. que afirmou, na sessão de julgamento de 07.12.2021, no segmento compreendido entre o minuto 09:20 e o minuto 10:08 da gravação com início pelas 13 horas e 2 minutos e termo pelas 13 horas e 14 minutos (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740):
Mandatária da Recorrente: E disse que por um… pronto, disse que esteve uma vez, não é?
Testemunha …………….: Sim, sim.
Mandatária da Recorrente: E que lhe pareceu insuficiente.
[…]
Testemunha ……………….: Sim, Sra. Dra., daquilo que é esta criança, e ainda por cima neste contexto, que foi uma criança já sobejamente sujeita a várias avaliações de vários psicólogos, nós já sabíamos que à partida seria difícil nós fazermos o nosso trabalho.
Mandatária da Recorrente:Seria difícil, havia uma dificuldade acrescida.
Testemunha ……………: E obviamente que precisamos sempre de duas, três, quatro entrevistas com a criança para ganhar alguma relação para poder, de alguma forma, extrair alguma informação que seja mais pertinente.
p) Também o ponto 4.3. do relatório de fls. 722 dos autos demonstra que a criança afirmou ao perito …………….. que o arguido o tinha agredido com um pontapé na perna:
“Perguntado sobre a sua relação com o pai, o menor refere que «uma vez deu-me um pontapé na perna, fui a chorar para casa, a minha mãe perguntou o que foi e eu disse… o pai disse para eu pôr as mãos atrás das costas e dizer o que a Dra………….. (psicóloga) me disse…» (…);
perguntado, refere que aquele pontapé resultou «uma nódoa negra grande».”
q) Portanto, consideramos que os elementos probatórios acabados de identificar depõem no sentido da pouca credibilidade das conclusões obtidas pelo perito ………… em como o menor ……………… se limitaria a repetir acusações a pedido de um e de outro progenitor, ao contrário do entendido pelo Tribunal recorrido.
r) A segunda razão avançada pelo Tribunal recorrido para não considerar provado que o arguido tivesse pontapeado o filho e lhe provocado uma equimose consiste na existência de versões (supostamente) diferentes narradas em julgamento pelas testemunhas e peritos a partir dos relatos transmitidos pela criança.
s) Não aceitamos esta conclusão do Tribunal recorrido, porque as testemunhas repetiram o referido pelo menor ……………… no que toca a este ter sido pontapeado pelo arguido na perna.
t)Assim, o menor ……………., em declarações para memória futura prestadas em 01.07.2019, afirmou o seguinte (cfr. Auto de declarações para memória futura com a Ref.ª CITIUS 141697572, tendo as declarações tido início às 11h39m09s e fim às 12h15m42s):
Do minuto 04:54 ao minuto 06:30:
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Não tens saudades do pai?
…………………: Não.
Mma. Juiz de Instrução Criminal: E queres-me dizer porquê? Olha para mim, querido.
……………….: O pai fazia-me um bocado mal e deu-me um pontapé nesta perna, fiquei com uma nódoa negra. [realces nossos]
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Na perna esquerda, é isso? Direita, é isso?
…………..-: Sim. Só por causa de ter ido a uma psicó… a uma senhora que estava sempre a me perguntar coisas chamada Doutora ………… e depois ele chateou-se e – não, não foi bem assim. Eu, essa conversa da perna foi outra, mas a Doutora ……… não tinha-me lembrado bem. Mas da perna, foi que, eu tinha contado uma mentira, ele não gostou e depois deu-me um pontapé na perna.
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Ele descobriu a mentira, foi?
……………………..: Sim.
Mma. Juiz de Instrução Criminal: E que mentira foi essa que tu contaste ao pai?
…………..: Não me lembro bem, porque já foi há muito tempo.
[…]
u) Portanto, resulta claro que a criança afirmou que o arguido lhe tinha dado um pontapé que lhe provocara uma nódoa negra (a equimose), sendo que o argumento do Tribunal recorrido em como a criança poderia ter sido induzida pela ora Recorrente, com quem o menor vivia na altura, não pode proceder, pois se tivesse sido essa a intenção da Recorrente, esta teria instruído o menor a negar agressões da sua parte, o que, como verificamos do afirmado pelo menor …………… do minuto 09:10 ao minuto 09:28 das suas declarações com início às 11h39m09s e fim às 12h15m42s, não sucedeu (cfr. Auto de declarações para memória futura com a Ref.ª CITIUS 141697572):
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Olha e o que é que tinha acontecido na casa da mãe?
…………………….: Na casa da mãe, quando às vezes eu me porto mal, a minha mãe dá-me de vez em quando uma chapada quando eu me porto mal, quando digo um disparate.
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Olha e o que é que é isso de portar mal e dizer um disparate?
………………….: Digo palavrões, às vezes.
v) Ora, a testemunha …………… afirmou em julgamento que o menor ……………… lhe tinha dito que o pai lhe dera um pontapé, aquando do seu depoimento na sessão de 30.11.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150721565, tendo as suas declarações tido início pelas 11 horas e 40 minutos e termo pelas 12 horas e 16 minutos):
Do minuto 03:38 ao minuto 05:59:
Testemunha ……………: Houve um episódio claro, onde ele relatou a situação que terá acontecido com o pai, em casa do pai, um episódio em que o pai lhe terá dado um pontapé, portanto, este episódio ele conta.
Mandatário da Recorrente: Ele contou a si diretamente?
Testemunha ………………………..: Ele contou a mim diretamente.
[…]
Testemunha …………………….: Pois exato, estou a fazer aqui um esforço. Não me lembro exatamente de como terei abordado, mas sou cuidadosa até porque, pronto, também pelo meu percurso profissional, e porque já trabalhei alguns anos também na, até na CPCJ e tudo o mais, portanto não vou, sei perguntar e não vou perguntar uma questão direta, e ele também já tinha relação comigo, não é, portanto, ao qual ele me terá… devo-lhe ter perguntado «……….., está tudo bem, como é que correram estes dias, de onde é que vieste, vieste da mãe ou do pai, como estás», pronto, não sei, estou a imaginar como é que terei iniciado a conversa.
Mandatário da Recorrente: Certo. E?
Testemunha …………..: E ele terá relatado – pronto também não sei exatamente precisar as palavras que terá utilizado – mas que na sequência de uma conversa com o pai ou de uma resposta que ele terá dado ao pai relativamente a ter ido a uma consulta, que o pai tinha reagido e que lhe tinha dado um pontapé.
w) Também a testemunha …………………. afirmou em julgamento que a criança lhe dissera que o pai lhe dera um pontapé, o que teve lugar na sessão de julgamento de 30.11.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150721565, tendo as suas declarações tido início pelas 12 horas e 17 minutos e termo pelas 12 horas e 30 minutos):
Do minuto 02:40 ao minuto 03:37:
Mandatário da Recorrente: Se o …………. alguma vez lhe disse, ou não, relativamente a algum episódio, ou episódios, que terá passado, ou não, com o pai, dignos de nota para 50
estarmos aqui neste Tribunal?
Testemunha …………: Sim, o …………. um dia no final da refeição, estávamos na cozinha – estava inclusive só eu e ele – e ele disse-me «tia, o meu pai deu-me um pontapé como se dá numa bola». [realces nossos]
Mandatário da Recorrente: Como se dá?
Testemunha ……………: Numa bola. E levantou-se inclusive e exemplificou. Eu perguntei «então ……… mas o pai fez isso, porque é que, porque é que o pai fez isso?» E ele disse que tinha sido porque ele lhe disse que tinha ido ao pedopsiquiatra. Ele não disse pedopsiquiatra, mas eu entendi, disse «pedopediatra».
x) Também as testemunhas …………….. e ……………….., como bem assinalou o Tribunal recorrido, confirmaram quando inquiridas em julgamento, que o menor …………….. lhes relatara que o arguido lhe havia dado um pontapé numa perna que lhe provocara uma equimose, o que vai de encontro ao referido pelo menor ……………. nas suas declarações para memória futura.
y) Também da ficha de urgência do Hospital D.ª Estefânia contida a fls. 69 a 73 dos autos, verificamos ter ficado consignado que o menor …………….. relatou à testemunha ………………. que, depois de ter dito ao arguido que tinha ido a uma consulta com um pedopsiquiatra, o pai lhe chamara mentiroso, tendo-lhe, de seguida, dado um pontapé na coxa.
z) A testemunha ……………. afirmou igualmente na sessão de julgamento de 30.11.2021 que o menor ……………… lhe relatara que o arguido lhe havia dado um pontapé (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150721565, tendo o início do seu depoimento tido lugar pelas 12 horas e 31 minutos e termo pelas 12 horas e 40 minutos):
Do minuto 04:38 ao minuto 04:49:
Testemunha ………………: E depois contou também um episódio de ter vindo de uma consulta e o pai não percebeu e que lhe deu um pontapé como se estivesse a jogar futebol e que o magoou muito e que teve que ir outra vez…
aa) Duas testemunhas houve, contudo, que afirmaram que a criança contara versões contraditórias para explicar a lesão (caso da testemunha …………….) e que a criança queria ir ter com o arguido (caso da testemunha ……………..).
bb) Ora, a testemunha …………… não merece credibilidade, atento o depoimento da testemunha ……………… na sessão de julgamento de 30.11.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150721565, tendo as suas declarações tido início pelas 11 horas e 12 minutos e termo pelas 11 horas e 39 minutos):
Do minuto 05:47 ao minuto 06:24:
Mandatário da Recorrente: Se tem algum, se tem memória de algum episódio que se terá passado entre a Dr.ª …………e o arguido.
Testemunha ……………………..: Sim, a Dr.ª ……… até tinha sempre muito medo, muito pânico de reunir com, nunca reuniu sozinha, queria sempre que eu estivesse presente, advertíamos sempre o vigilante para estar alerta à porta do gabinete, recusava-se até às vezes, às vezes era eu que tinha que reunir porque não estava em condições e dizia que tinha dois filhos e que tinha que zelar por eles e que não estava para…
Mandatário da Recorrente: Tinha medo e pânico do pai do ………….., era isso?
Testemunha ………………………: Chegou a desmaiar um dia.
cc) Entendemos, assim, que ……………………… não merece qualquer credibilidade, por ser patente o medo e pavor que o arguido lhe inspira.
dd) Também no que respeita à testemunha …………………….., não cremos que lhe deva ser atribuída credibilidade, pois, conforme resulta do Auto de notícia a fls. 126 a 128 dos autos, esta testemunha não percebeu sequer, do que lhe foi relatado pela Recorrente no dia 6 de março de 2019, que a agressão de que a criança fora vítima se situava na coxa, e não da cintura para cima, pelo que impõe a pouca fiabilidade das impressões desta testemunha.
ee) Portanto, os elementos probatórios acima assinalados demonstram que o menor …………………… contou às testemunhas e peritos identificados que o arguido lhe dera um pontapé numa perna, nunca divergindo no que a isto diz respeito, ainda que não soubesse explicar o exato motivo da fúria do arguido (o que é compreensível) ou que as referidas testemunhas e peritos já não se recordassem bem do relatado pela criança.
ff) Em terceiro lugar, não aceitamos que possa ser considerada credível a versão alternativa avançada pelas testemunhas …………….. e …………….. (como entendeu o Tribunal recorrido).
gg) Assim, a testemunha ………………, na sessão de julgamento de 07.12.2021 cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740, tendo o seu depoimento tido início pelas 14 horas e 47 minutos e termo pelas 15 horas e 5 minutos) referiu o seguinte:
Do minuto 04:15 ao minuto 04:51:
Defensor do arguido: O dia 4 [de março] é uma segunda-feira, diz o calendário, só para tentar situá-lo. Portanto, eu pergunto-lhe, se o seu neto passou convosco o fim-de-semana de sexta-feira dia 1, sábado dia 2 e domingo dia 3?
(………………………………………..)
hh) Ora, as atividades letivas estiveram interrompidas entre os dias 4 e 6 de março de 2019 (Carnaval), pelo que seria impossível que …………. tivesse entregue a criança no Colégio ……………., que estava encerrado.
ii) Depois, esta testemunha hesita ao afirmar se a criança esteve ou não sozinha com o arguido, conforme se verifica das gravações do seu depoimento do minuto 09:28 ao minuto 09:42 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740, tendo o seu depoimento tido início pelas 14 horas e 47 minutos e termo pelas 15 horas e 5 minutos):
Defensor do arguido: Mas o menino esteve o fim-de-semana todo sem ver o pai? Nunca falou com o pai o fim-de-semana todo?
(…………………………………………)
kk) Também a testemunha ……………… não merece qualquer credibilidade, quando afirmou na sessão de julgamento de 07.12.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740, tendo o seu depoimento tido início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 26 minutos):
(……………………………………………………………………..)
nn) Veja-se também o referido pela testemunha ………………. na sessão de julgamento de 07.12.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740, tendo o seu depoimento tido início pelas 11 horas e 45 minutos e termo pelas 12 horas e 6 minutos):
(……………………………………………………………………..)
pp) Da conjugação da prova acabada de referir verificamos que a lesão sofrida pela criança não é compatível com o cenário descrito por ………………., sendo, pelo contrário, perfeitamente compatível com a factualidade descrita pelo menor.
qq) Por outro lado, também não corresponde à verdade que o arguido, fruto da intervenção cirúrgica que realizou, não fosse praticamente capaz de dar um pontapé ao seu filho.
rr) Assim, da declaração médica de fls. 945 dos autos consta que “o período operatório decorreu sem intercorrências”, bem como que “não houve nenhum tipo de complicação a registar”, sendo que do próprio certificado de incapacidade temporária para o trabalho de fls. 948 dos autos se verifica que a doença não implicou sequer permanência na habitação.
ss) Também é falso que o arguido tenha estado acamado, pois este estado é desaconselhado para os doentes que realizam a cirurgia que o arguido realizou, conforme manual médico intitulado Plastic Surgery, Volume II, de Peter C. Neligan, onde se dispõe que o paciente deve evitar ficar de cama após a realização da cirurgia.
tt) Assim, atenta a prova aqui assinalada, mal andou o Tribunal recorrido a considerar como plausível a versão alternativa trazida ao processo por ……………….. e por ………………………...
uu)Também foram as declarações para memória futura prestadas pelo menor ……………………. incorretamente julgadas pelo Tribunal recorrido como inconsistentes e pouco naturais, não tendo sido levado em conta o facto de a criança se encontrar no espetro autista (cfr. depoimento do perito ……………… do minuto 14:50 ao minuto 15:09 da gravação com início pelas 12 horas e 8 minutos e termo pelas 12 horas e 26 minutos da sessão de julgamento de 07.12.2021, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740), não sendo esta,
por isso, propensa a mentir e a enganar, bem pelo contrário (cfr. Nuno Lobo Antunes, “Sentidos, o grande livro das perturbações do desenvolvimento e comportamento, do autismo à hiperatividade, da adição à Internet à dislexia”, Edições ASA, página 62.
vv) Assim, tendo em conta os elementos probatórios aqui referidos, resulta claro que os factos não provados contidos nas alíneas b), d) e g) deverão ser considerados como provados, passando, assim, a matéria de facto provada a incluir os seguintes segmentos: “b) Em visita feita pelo menor ao pai ocorrida até 4 de Março de 2019, o pai do menor desferiu no mesmo um pontapé na coxa esquerda.”; “d) O pai do menor desferiu-lhe um pontapé na perna esquerda”; e “g) Aquela lesão foi consequência direta e necessária do pontapé que o pai lhe desferiu provocando equimose na região externa do terço médio da coxa esquerda com 35/18mm arroxeada, demandando doença por 8 dias”, assim se concluindo pela realização, pelo arguido, do tipo objetivo do crime de violência doméstica pelo qual foi pronunciado.
ww) Também o facto considerado não provado pelo Tribunal recorrido sob a alínea j) (“j) O pai do menor agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que estas suas condutas são proibidas por lei.”) deveria constar da factualidade provada, atenta a seguinte prova:
xx)Dos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelos médicos ……………. e ………………, verificamos que a lesão não poderia ter resultado de um acidente, mas sim de uma ação deliberada e direcionada.
yy) Na sessão de julgamento de 07.12.2021, a testemunha ………………. referiu, do minuto 14:52 ao minuto 15:15 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740, tendo o seu depoimento tido início pelas 10 horas e 13 minutos e termo pelas 10 horas e 43 minutos):
Defensor do arguido:Uma lesão numa coxa é fora do normal? Uma lesão numa coxa é fora do normal? (…………………………………)
zz) A testemunha …………… referiu também na sessão de julgamento de 07.12.2021, no minuto 05:45 ao minuto 05:51 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150795740, tendo o seu depoimento tido início pelas 11 horas e 45 minutos e termo pelas 12 horas e 6 minutos):
(……………………………………………………)
aaa)Por outro lado, as testemunhas …………….., ……………….. e …………………, afirmaram em julgamento que o menor …………… lhes referira que o arguido o havia pontapeado de forma propositada.
bbb) Afirmou a testemunha …………….., no seu depoimento na sessão de julgamento de 30.11.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150721565, tendo as suas declarações tido início pelas 11 horas e 40 minutos e termo pelas 12 horas e 16 minutos), do minuto 03:38 ao minuto 05:59:
(……………………………………………………………………..)
ccc) Vejamos também o referido pela testemunha …………………… no seu depoimento na sessão de julgamento de 30.11.2021 (cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 150721565, tendo as suas declarações tido início pelas 12 horas e 17 minutos e termo pelas 12 horas e 30 minutos), do minuto 02:40 ao minuto 03:37:
(…………………………………………………………………….)
eee) Por último, também as declarações para memória futura do menor …………… em 01.07.2019 demonstram a intenção do arguido de magoar o menor (cfr. Auto de declarações para memória futura com a Ref.ª CITIUS 141697572, tendo as declarações tido início às 11h39m09s e fim às 12h15m42s):
(……………………………………………………………)
fff) Assim, o facto não provado contido na alínea j), deverá passar a integrar a matéria de facto dada como provada, aí passando a constar que: “j) O pai do menor agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que estas suas condutas são proibidas por lei.”
ggg) Estando preenchido pelo arguido o tipo subjetivo do crime de violência doméstica, nos termos da pronúncia, deverá este ser condenado pela prática desse mesmo crime, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) do CP, o que se requer seja declarado por V. Exas..
hhh) Por fim, o Tribunal recorrido considerou não provado que: “h) Todos estes comportamentos do pai para com o menor lhe causaram grande dor e sofrimento.”
iii) Também aqui as declarações para memória futura do menor …………….. em 01.07.2019 (cfr. Auto de declarações para memória futura com a Ref.ª CITIUS 141697572, tendo as declarações tido início às 11h39m09s e fim às 12h15m42s) impunham que tivesse sido considerado provado que a criança sofreu dor física causada pelo pontapé que lhe foi desferido pelo arguido:
Do minuto 04:54 ao minuto 06:30:
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Não tens saudades do pai?
……………………….: Não.
Mma. Juiz de Instrução Criminal: E queres-me dizer porquê? Olha para mim, querido.
……………: O pai fazia-me um bocado mal e deu-me um pontapé nesta perna, fiquei com uma nódoa negra. [realces nossos]
[…]
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Olha, e isso doeu-te?
………………………..: Doeu.
Mma. Juiz de Instrução Criminal: Doeu. Ficou com uma nódoa, não é? E disseste ao pai que te tinha doído?
…………………..: Sim. E depois… […]
jjj) Portanto, também o facto não provado sob a alínea h) deverá passar a integrar a matéria de facto provada, nos seguintes termos, o que se requer a V. Exas.: “h) O pontapé desferido pelo arguido na perna esquerda do menor causou a este grande dor e sofrimento.”
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS.
DOUTAMENTE SUPRIRÃO, REQUER-SE:
a) Seja declarado suficientemente descrito o elemento subjetivo do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi pronunciado;
b) Seja declarada a nulidade da Sentença, pelos motivos supra expostos e à luz do art. 379.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte e al. c), 1.ª parte do CPP, devendo ser suprida nos termos do art. 379.º, n.º 2 do CPP;
c) Caso assim não se entenda, seja a Sentença corrigida nos termos do art. 380.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CPP;
d) Seja o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) do CP pelo qual foi pronunciado.
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O arguido respondeu às alegações de recurso a fls.1166 a 1179 dos autos, apresentando as seguintes conclusões:
(:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::).
O Ministério Público respondeu às alegações de recurso da recorrente de fls. 1181 a 1192 v.º, apresentando as seguintes conclusões:
A) Inexiste qualquer despacho de pronúncia, não podendo ser considerado como tal o trecho do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 884, que indica qual a factualidade que se deve ter por indiciariamente considerada após as diligências de instrução, nem o subsequente despacho da Mm.ª Juíza de Instrução Criminal que, sem qualquer mediação, se limitou a remeter os autos para julgamento.
B) Caso assim não se considere, a factualidade imputada ao arguido não comporta o necessário elemento subjectivo que enforma o crime de violência doméstica, elemento este que o juiz de julgamento está impedido de aditar, na esteira do AUJ 1/2015 do STJ, pelo que o arguido nunca poderia ser condenado pela prática de deste ou de outro crime.
C) Não existe qualquer omissão de pronúncia, pois nunca foi posto em causa pelo Mm.º Juiz a quo que o menor, pelo menos no dia 5/3/2019, quando observado nas Urgências Pediátricas, apresentava uma equimose de pequenas dimensões
(35x18mm) na face externa da coxa esquerda, o que resulta de forma clara e evidente da justificação da convicção do julgador, podendo tal omissão ser facilmente suprida com recurso, pelo Tribunal Superior, à faculdade conferida pelo art.º 380º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
D) Não merece qualquer crítica a opção do Mm.º Juiz a quo de lançar mão do princípio in dubio pro reu quando confrontado, após a produção de toda a prova, com uma dúvida que não conseguiu ultrapassar com recurso às regras da lógica e experiência comum, quanto à origem da lesão que o menor apresentava.
E) Considerando que a factualidade imputada ao arguido teria tido lugar em 4/3/2019 e que as declarações para memória futura foram colhidas em 1/7/2019, o menor nunca teve oportunidade de fazer um relato espontâneo quanto à origem da equimose.
F) Em pouco tempo, e antes das declarações para memória futura, o menor foi levado à urgência pediátrica, foi presente ao perito médico do tribunal, foi visto pelo ao seu médico pediatra, teve de ser entrevistado por uma nova psicóloga em clínica particular e pelos técnicos da CPCJ, tudo pessoas que não tiveram do menor um relato em 1ª mão, uma vez que o tema a abordar já havia sido introduzido/mediado por conversa prévia com a progenitora, que nunca admitiu outra versão que não de que se tratava de uma agressão do progenitor.
G) A própria escola que o menor frequentava deu pouca relevância a este relato do menor, que associou às dificuldades no relacionamento entre progenitores e ao esforço que o menor fazia para não desapontar nenhum dos dois – esforço (hercúleo) confirmado pelo sr. perito médico ……………, que elaborou o relatório pericial junto aos autos, onde não detectou qualquer traço de receio ou de recusa do menor perante a figura paterna, revelando, antes, sofrimento pelo afastamento que já perdura desde Maio de 2019.
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Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, pugna pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, a recorrente respondeu, mantendo a posição por si assumida nas alegações de recurso.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:
1) O arguido reside com os pais e não vê o filho desde 10 de Maio de 2019.
2) O arguido é licenciado em Informática de Gestão.
3) O arguido trabalha na …, como responsável financeiro do…, auferindo 1.274,00€ líquidos por mês.
4) O arguido tem como despesas mensais: 186,00€ de crédito à habitação; 435,00€ de crédito automóvel; cerca de 32,00€ de água; cerca de 40,00€ de electricidade; cerca de 40,00€ de gás; 35,00€ de condomínio; 22,17€ de I.M.I. (equivalente a 266,00€ por ano); e 153,08€ de pensão de alimentos.
5) O arguido é tido, por amigos e conhecidos, como um indivíduo calmo, cuidador, bom pai, competente, afectuoso e incapaz de agredir o seu filho.
6) Do C.R.C. do arguido, junto em fls. 1055, nada consta.
FACTOS NÃO PROVADOS
Discutida a causa, e com relevância para a decisão final, não resultou provada a seguinte factualidade:
a) No dia 4 de Março de 2019 a mãe do menor verificou que o mesmo apresentava uma nódoa negra na face externa da coxa esquerda.
b) Em visita feita pelo menor ao pai ocorrida até 4 de Março de 2019, o pai do menor desferiu no mesmo um pontapé na coxa esquerda.
c) Isto após o menor lhe ter dito que tinha ido a uma consulta de um psiquiatra.
d) Nesse momento o pai do menor agarrou o menor pelos colarinhos e desferiu-lhe um pontapé na perna esquerda.
e) Dizendo-lhe “és um mentiroso, odeio-te e não devias ter nascido.”
f) Num primeiro momento o menor disse ter caído da cama.
g) Aquela lesão foi consequência directa e necessária do pontapé que o pai lhe desferiu provocando equimose na região externa do terço médio da coxa esquerda com 35/18mm arroxeada, demandando doença por 8 dias.
h) Todos estes comportamentos do pai para com o menor lhe causaram grande dor e sofrimento.
i) O menor vive com medo do pai e das suas atitudes violentas.
j) O pai do menor agiu de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que estas suas condutas são proibidas por lei.
É a seguinte a motivação da matéria de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
Antes de mais, há a esclarecer que, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 374º do C.P.P., o Tribunal deve indicar os “motivos, de facto e de direito, que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção (…)”.
Por outro lado, no que diz respeito à valoração da prova, rege o princípio da livre apreciação da prova do art. 127º do C.P.P. que estabelece que “(…) a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Ou seja, o Tribunal fundamenta a análise dos factos na íntima convicção que formou a partir do exame e ponderação das provas produzidas.
Assim, a antecedente decisão fáctica baseou-se na análise crítica:
(…………………………………………………………………)
*
Para a determinação da factualidade não provada, o Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, tomando em consideração, designadamente, o facto de não ter sido confirmado, por qualquer testemunha, perícia ou documento, o teor das als. a) a j) dos factos não provados.
Com efeito, o que ficou patente para este Tribunal foi a existência de uma relação parental disfuncional, disruptiva e bastante conflituosa, em que …………., uma criança de 7 anos de idade à data dos factos, era instrumentalizada e manipulada, por ambos os progenitores, com o único intuito de atacar e diminuir o outro.
É neste contexto de conflito parental que surgem os presentes autos, e que se encontra plasmado de uma forma nítida, no relatório do exame pericial psicológico do I.N.M.L. a que o menor foi sujeito (cfr. fls. 719 a 730) e que menciona que este “observa um sugestionamento manipulatório operado por cada um dos progenitores sobre o menor influenciando a percepção que este faz do outro no contexto de forte disputa em conflitualidade interparental e que uma vez que é com a mãe que o menor vive diariamente dela dependendo para a sua sobrevivência física e psicológica e dada a suspensão dos convívios pai-filho está presentemente ativa a influência exercida pela progenitora conseguindo a adesão acrítica (pelo menos a nível consciente) do menor à sua perspectiva tendente a rejeitar qualquer possibilidade de restaurar laços pai-filho”.
O teor deste relatório foi confirmado pelo depoimento do perito que o realizou, ………………., que manteve uma postura serena, objectiva e por isso, credível, que não só asseverou o teor do seu relatório, como esclareceu, taxativamente, que o ofendido era capaz de dizer que o pai lhe agrediu e vice-versa, a pedido de um dos progenitores, pois atendendo ao ambiente pressionante e manipulatório em que vive, …………… é “instruído pelos pais a dizer mal um do outro”.
Tratando-se de um relatório pericial e inexistindo motivos para divergir do mesmo, o seu juízo técnico impõe-se.
Feito este enquadramento, que se julga necessário para aclarar a motivação deste Tribunal, importa olhar criticamente para a prova produzida em julgamento.
Neste processo, em que estava em discussão, simplesmente, 9 (nove) factos, prestaram declarações, entre testemunhas e peritos, 19 pessoas.
Dos seus depoimentos ficou perfeitamente visível a conflituosidade patente entre os progenitores do menor. Sobre os factos em discussão, não tinham qualquer conhecimento directo, traduzindo-se a sua razão de ciência nos relatos que …………….., ao longo do tempo, fez a cada um dos intervenientes.
Ora, face aos elementos documentais carreados no processo, o Tribunal não tem dúvidas da existência de lesão física no menor porque atestadas clinicamente nos dias 5/3/2019 e 7/3/2019 – cfr. informação clínica do Serviço de Urgência Pediátrica do Hospital Dona Estefânia, de fls. 67 a 73 e auto de exame directo elaborado por perito médico nos serviços do Ministério Público de Loures e respeitante ao menor, constante de fls. 24.
Como inexiste dúvidas que a lesão ocorreu nos dias imediatamente anteriores, situados entre dia 1/3/2019 e 4/3/2019. Tal convicção resulta dos depoimentos do perito médico ………….., que elaborou o auto de exame directo de fls. 24 e da testemunha …………………., médica pediatra do hospital D. Estefânia, que elaborou o relatório de urgência de fls. 69 a 73. Ambos atestaram a elaboração dos respectivos documentos, asseverando com certeza e segurança o seu teor, tendo mantido uma postura e discurso sereno, esclarecido, o que convenceu o Tribunal da sua credibilidade. Explicaram a evolução do traumatismo, essencialmente sobre a coloração do mesmo (de vermelho nas primeiras 24 horas, a amarelado até 15 dias), esclarecendo que da sua observação, a equimose não teria mais de 3 dias. Mencionaram ambos que a lesão era compatível com um objecto contundente, que, considerando as dimensões da lesão, pode ser um pontapé, desde que fosse com a ponta do sapato, acrescentou o perito médico …………..
Tal circunstância foi, ainda, confirmada por ……………… (mãe do arguido e avó do menor), que avançou com a versão de que …………….. caiu sobre um pau, quando brincava no pátio de sua casa, entre 1 e 4 de Março de 2019.
Assim, concatenados todos estes elementos, o tribunal ficou convicto que o menor, entre os dias 1 e 4 de Março de 2019, quando estava na casa dos avós e do arguido, sofreu uma lesão na coxa esquerda traduzida numa equimose.
Porém, quando à origem da lesão, subsistem sérias dúvidas, coexistindo uma multiplicidade de possibilidades viáveis que não foram esclarecidas ou afastadas em julgamento. Concretizando.
O arguido ………….. decidiu, numa fase inicial, não prestar declarações quanto aos factos constantes da acusação, remetendo-se ao silêncio, direito que lhe assiste e em caso algum o pode desfavorecer – cfr. arts. 61º, n.º 2, al. c), 343º, n.º 1, e 345º, todos do C.P.P. – tendo apenas prestado declarações sobre as suas condições socioeconómicas, nos termos supramencionados. Após as alegações de Ministério Público, assistente e defesa, pediu a palavra para, laconicamente, negar os factos imputados, considerando-se um bom pai e dizendo-se incapaz de ter a as atitudes mencionadas no despacho de pronúncia, reiterando a versão apresentada pela sua progenitora.
Já o menor ………………, em declarações prestadas em sede de declarações para memória futura, em 1/7/2019 (altura em que vivia, exclusivamente, com a progenitora), mencionou que o pai, ora arguido, lhe deu um pontapé na perna por ter dito uma mentira, tendo ficado com uma nódoa negra e com dores.
Todavia, esta versão dos factos não se encontra coincidente com as versões apresentadas pelas várias testemunhas que relataram a este Tribunal aquilo que o menor lhes contou.
Com efeito, a testemunha ……………, terapeuta familiar no Colégio …………, que ……………. frequentava à data dos factos, mencionou que este lhe transmitiu que o pai lhe deu um pontapé por ter ido ao médico, e não por ter dito uma mentira.
Por seu turno, ………………, tia do menor, disse que este, nas férias da Páscoa de 2019 e de forma espontânea lhe relatou que o pai lhe tinha dado um pontapé por ter ido ao pedopsiquiatra.
Já …………….., professora do ofendido no Colégio ……….., afirmou que o discente, após a interrupção lectiva do Carnaval, lhe relatou primeiro que não ia mais para a casa do pai porque este lhe deu um pontapé e dias depois, alterou a versão, tendo dito que o pai nunca tinha batido e que a nódoa negra que tinha foi ao cair quando jogava futebol. Disse, ainda, que a primeira versão relatada pela criança foi contada após ter pernoitado na casa da mãe e a segunda versão após ter pernoitado na casa do pai, o que demonstra o grau de influência e manipulação que os progenitores exerceram sobre o próprio filho.
Por sua vez, o …………….., médico do ofendido até aos 8 anos de idade, que o observou no dia 6/3/2019 e reparou numa nódoa negra, que devido à sua cor, não teria mais de uma semana de existência. Disse que o menor lhe relatou que foi o pai com um pontapé que lhe provocou a nódoa negra, mas não se recorda qual o alegado motivo. Nesta sede, acrescentou que foi a mãe que levou a criança à consulta e que não falou com o pai, ora arguido, porque não se encontrava presente. Disse, ainda, que, pela localização na coxa, a morfologia da lesão e a descrição do episódio da criança, é possível que a lesão tenha sido criada por um pontapé.
Também a …………., acima identificada, disse que durante a consulta de urgência, o ofendido lhe relatou que se tinha portado mal por ter deixado sozinho o pai e por isso ele lhe deu um pontapé. Referiu, ainda, que criança lhe narrou que o pai lhe disse “tu não devias ter nascido”, o que não foi minimamente referenciado pelo menor, em sede de inquirição para memória futura.
Importa ainda salientar o depoimento de ………………, agente da P.S.P. da esquadra de S. João da talha e que elaborou o auto de notícia de fls. 126 a 128, que diz respeito a uma recusa de entrega do menor ao pai, por parte da mãe no dia 6/3/2019, isto é, dois dias após o regresso do menor da casa do pai. Nesta sede, e confirmando o teor do auto de notícia que elaborou, afirmou que o ofendido lhe referiu que queria ir para casa do pai, não percebia o porquê da não ida para casa do pai e que este nunca lhe bateu.
Por fim, também a testemunha ………….., professora no colégio de ………., mencionou que, numa sessão de cidadania em Abril do ano passado, o ofendido, perante a sua turma e em voz alta, disse que foi vítima do pai, que foi escravizado por este (palavras do próprio) e que o pai lhe deu um pontapé, como estivesse a jogar à bola.
Em suma, verifica-se que pelo ofendido foram relatadas várias versões a diversos intervenientes, sem consistência e coerência. De facto, se no dia 5/3/2019, logo após a ocorrência da lesão, relatou à médica das urgências que o pai lhe desferiu um pontapé por tê-lo deixado sozinho, no dia seguinte, ao agente …………. mencionou que o pai nunca lhe bateu e que queria ir ter com ele, sendo que, nesse mesmo dia (6/3/2019), relatou ao médico de família que a afinal a lesão se deveu a um pontapé desferido pelo arguido. Ou seja, só em dois dias, foram veiculadas três versões sucessivas e contraditórias com a antecedente. Acresce que, mais tarde e aos professores, …………. relatou que o pai lhe desferiu um pontapé por ter ido à pedopsiquiatra, sendo que, em sede de declarações para memória futura, já mencionou que o motivo do pontapé foi porque mentiu ao pai. Sintomático desta discrepância de versões, é o relatado pelo ofendido à professora ……………., a quem disse no início que o pai lhe deu um pontapé, e dias depois afinal foi a jogar à bola com o pai. Por fim, a versão mais recente, ouvida por …………., em Abril de 2021, o ofendido apresentou uma fabulação da relação com o pai, mencionado que era “escravizado”, uma palavra forte e pouco crível que seja dita, de forma natural e espontânea, por uma criança de 10 anos.
Pese embora inexista quaisquer motivos para desconsiderar o declarado por todas estas testemunhas, que se considerou verdadeiro e sincero, certo é que a fonte primária e directa da informação – o ofendido – relatou histórias diferentes, não tendo o Tribunal capacidade para discernir qual delas é a versão verdadeira.
Por outro lado, importa salientar que, ao longo de todo o seu depoimento em sede de declarações para memória futura, o ofendido manteve sempre uma postura e discurso hesitante, inconsistente e pouco natural. Relatou os factos de forma vaga, evitando responder a perguntas mais concretas, como foi o caso de não ter conseguido situar no tempo a dita agressão, nem explicar que mentira tinha dito e que levara …………..a desferir o alegado pontapé.
Por tudo isto, não se considerou credível o depoimento do ofendido, sendo que, perante a queda de credibilidade da fonte directa dos factos, pouco relevo tem o depoimento das testemunhas cuja razão de ciência advém dos relatos do próprio menor.
Noutra vertente, as testemunhas de defesa, ……………. e ………………, progenitores do arguido e avós do ofendido, veicularam uma versão oposta dos factos indiciados, que à luz das regras da experiência comum se mostra verossímil. Na verdade, afirmaram estas testemunhas que, no fim de semana em questão o arguido não teve contacto directo com o ofendido, apesar de terem pernoitado na mesma casa, porque o arguido se encontrava fechado no quarto, acamado, a recuperar de uma cirurgia à ptose grave bilateral do supracílio e dermatócalásia palpebral associada e não pretendia que o filho o visse com a cara deformada.
Pese embora estas testemunhas, como progenitores do arguido, tenham interesse directo no desfecho dos presentes autos, o certo é que parte dos depoimentos encontra-se congruente com a declaração médica de …………, junta em fls. 945, que atesta a ocorrência da operação no dia 22/2//2019 e a necessidade de descanso no pós operatório, bem como dos certificados de incapacidade temporária, juntos em fls. 947 a 949, do qual consta que o período de incapacidade durou entre 22/2/2019 e 22/3/2019.
Pode-se afirmar que tal informação clinica não exclui a possibilidade de, dentro do seu quarto e por escassos segundos, o arguido se tenha movimentado o suficiente para desferir um pontapé no filho. Porém, é igualmente plausível, atento ao estado físico em que se encontrava, patente na fotografia de fls. 946 dos autos, que com 6 dias de recobro, o arguido não tivesse capacidade para se levantar da cama e desferir um pontapé no ofendido, o que adensa a dúvida deste Tribunal quanto à veracidade dos factos indiciados.
(………………………………………………………………………)
No que diz respeito à expressão narrada em e) o ofendido não confirmou o seu teor em sede de declarações para memória futura, sendo que a única referência à dita expressão surge no depoimento da testemunha …………………, cujo conhecimento que tem advém do relatado por …………………...
Ora, tendo em conta a postura do menor em relatar a alegada agressão a vários intervenientes, estranha-se que no que respeita à referida expressão, que teria ocorrido no mesmo momento, apenas a tenha confidenciado à médica que o observou nas urgências.
Por outro lado, tratando-se de conhecimento indirecto sobre um facto que a fonte directa nunca referiu ou aludiu, é manifestamente insuficiente para sustentar a prova de determinado facto, razão pela qual se deu como não provado.
Quanto aos factos descritos nas alíneas a) e f), nenhuma prova foi produzida que confirmasse a sua veracidade, uma vez que não se apurou o momento em que a mãe do ofendido tomou conhecimento da nódoa negra, uma vez que aquela não prestou depoimento em sede de audiência de julgamento.
Em conclusão, pese embora a certeza quanto à existência da lesão na coxa esquerda do menor, não existem testemunhas directas dos factos, para além deste, e as versões apresentadas pelo mesmo foram contraditórias e dispares perante diferentes pessoas, o que impossibilita uma convicção segura e para além da dúvida razoável sobre a veracidade dos factos, ficando, contudo patente, a elevada conflituosidade parental existente entre os progenitores e a atroz pressão colocada sobre a criança ………………….
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Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso
Questões que cumpre apreciar:
Nas “conclusões” apresentadas, de a) a jjj), é patente a ausência de esforço de síntese, em várias transcrevendo-se passagens de gravação da prova.
Tal não impede que se indiquem as questões a debater e que são:
- Suficiência da descrição do elemento subjectivo do crime de violência doméstica;
- Nulidade por omissão de pronúncia;
- Impugnação da matéria de facto;
Vejamos.
Face aos incidentes processuais que este processo já registou e com vista a facilitar a apreensão da matéria em causa, iremos proceder a uma breve resenha do processado.
Assim, o processo inicia-se com uma queixa apresentada a 6.3.2019 por ………………. contra ………………., imputando-lhe a prática de maus tratos a si e ao filho de ambos, ……………….., nascido a ……………..2011.
Após a realização de várias diligências, o Ministério Público, em 8.11.2019, proferiu despacho de encerramento de inquérito, de fls. 415 a 426, determinando o arquivamento dos autos.
Por despacho de 4.12.2019, a fls. 444, a queixosa ……………….. foi admitida a intervir nos autos como assistente.
No dia 5.12.2019, a assistente apresentou requerimento para abertura de instrução (RAI), nos termos de fls. 449 a 458.
Igualmente, o arguido ………………… apresenta RAI, de fls. 478 a 488, com original de fls. 503 a 514, de novo a fls. 541 a 561 e ainda de fls. 558 a 563.
Entretanto, ………………… renova pedido de constituição como assistente, não sendo caso de renovação, na medida em que antes fora admitida a sua própria constituição (requerera admissão apenas por si) e agora era como representante do seu filho menor.
Por despacho da JIC de 20.12.2019 foi decidido:
1- Rejeitar o RAI apresentado por …………………….;
2- Indeferir o pedido de constituição como assistente por parte de ………………..;
3- Rejeitar o RAI apresentado por …………………...
………………… recorre deste despacho em 29.1.2020, sendo o recurso admitido a fls. 587.
…………………………. apresentou resposta a fls. 597 a 601.
O Ministério Público apresentou a resposta de fls. 602/4.
  Apreciando o recurso interposto por ……………, o Tribunal da Relação de Lisboa, 9ª secção, em 9 de Julho de 2020, deliberou:
1- Negar provimento quanto ao recurso interposto por …………. da decisão que rejeitou o RAI por si apresentado;
2- Julgar procedente o recurso, na parte em que, em representação do filho, veio requerer a abertura de instrução;
3- Revogar a decisão recorrida que rejeitara o RAI, devendo ser substituída por outra que declare aberta a instrução.
Por despacho de 27.8.2020 é declarada aberta a instrução- fls. 664.
No despacho da Juíza de Instrução Criminal de 4.9.2020, de fls. 669 a 671, consigna-se que na sequência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a fase de instrução foi declarada aberta para apreciação da matéria de facto atinente aos artigos 35º a 48º e imputação jurídica do artigo 49º do requerimento de abertura de instrução apresentado por ………… em representação do seu filho menor …………………………...
Tendo sido indicadas pela assistente no RAI por si apresentado 15 testemunhas, foi indeferida a inquirição relativamente a 14, sendo que relativamente a 9 foi por se entender a sua inquirição processualmente inadmissível e as outras cinco por se entender como impertinentes às finalidades da instrução, sendo deferida apenas a inquirição da testemunha ……………….., designando-se dia para inquirição seguida de debate instrutório.
A testemunha foi ouvida a 21.10.2020, seguindo-se debate instrutório, como consta da acta de fls. 782, designando-se o dia 28.10.2020 como data para inserção da decisão instrutória no Citius.
Pela decisão instrutória de 28.10.2020, foi dado como suficientemente indiciado que “ no dia 4 de Março de 2019 a mãe do menor verificou que o mesmo apresentava uma nódoa negra na face externa da coxa esquerda”, dando-se como não suficientemente indiciada a factualidade de I a XV, decidindo-se não pronunciar o arguido …………….
A assistente ………….. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 812, com alegações de fls. 813 a 829, o qual foi admitido por despacho de 15.12.2020.
O arguido ……….. e o Ministèrio Público responderam, respectivamente, de fls. 839 a 850 e de fls. 854 a 859.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 5ª secção, de 13.4.2021, fls. 873 a 884, concluiu por dar como indiciado o facto já dado como indiciado na decisão recorrida e outros nove factos que enuncia, dando por indiciada a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al.d) e n.º 2 al. a) do Código Penal, relativamente ao filho menor, devendo o arguido ser pronunciado nesses termos. Julga, assim, o recurso parcialmente provido nos termos indicados, devendo ser o arguido pronunciado pelos factos e crime referidos.
No despacho de 24.5.2021, a fls. 908 escreveu a Juiza de Instrução Criminal:
“Em conformidade com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa remeta a Julgamento em Processo Comum e com intervenção de tribunal Singular porquanto o arguido ……………. foi pronunciado pelos factos consignados em tal Acórdão como autor material de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art. 152º, n.º 1, al. d) e n.º 2 a) do Código Penal.
Notifique e remeta à distribuição”.
O processo foi remetido ao Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 1, que em despacho de fls. 915/6 verso, de 27.5.2021, mandou autuar como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, designando datas para julgamento, consignando que “a factualidade em discussão é a constante de fls. 906 (cfr. douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa)”. O Juiz não se refere ao original de fls. 873 a 884 v.º, mas a cópia do acórdão junta de fls. 895 a 906 verso.
O Juiz designa para julgamento o dia 9.11.2021, pelas 9:30, para eventual audição do arguido e inquirição das 1.ª a 7.ª testemunhas arroladas a fls. 456 e 457, pelas 14:00 para inquirição das 8.ª a 15.ª testemunhas arroladas em fls. 457 e 458 e o dia 16-11-2021, pelas 9:30, para eventual inquirição das testemunhas que viessem a ser arroladas pela defesa.
…………… deduziu pedido de indemnização cível (PIC) a fls. 921/4, dando por “integralmente reproduzida a douta acusação deduzida” (sic!!!), pedindo a condenação do demandado no pagamento da indemnização de 3 000,00 €, acrescida de juros de mora, arrolando 15 testemunhas. 
Por despacho de 7.6.2021, a fls. 929/930, o PIC foi considerado manifestamente extemporâneo, sendo indeferida a sua junção, determinando-se o seu desentranhamento e devolução ao apresentante. Dando sem efeito as datas indicadas, designa novas datas para julgamento, sendo 30.11.2021, pelas 9:30 e 7.12.2021, pelas 9:30 e 14:00, com a mesma indicação das testemunhas arroladas a fls. 456 e 457 e a fls. 457 e 458.
O arguido, a fls. 935, invoca irregularidade/nulidade por não junção de cópia da pronúncia, por lhe ter sido enviada apenas uma cópia do requerimento instrutório. Pede remessa do “despacho/acórdão de pronúncia”.
A assistente ……………… prescinde de 8 testemunhas - fls. 941.
O arguido apresenta contestação a fls. 943/4: indica dois peritos, arrola 12 testemunhas e junta documentos, referindo “Mui Douto Acórdão e pronúncia”, a fls. 944, no final.
Segue-se reagendamento da produção da prova, a fls. 963 e verso, designando o dia 30.11.2021 para inquirição das sete testemunhas sobrantes arroladas pela assistente no RAI e no PIC, e o dia 7.12.2021, pelas 9:30, para audição dos dois peritos e 5 testemunhas arroladas pela defesa e pelas 14:00, outras sete arroladas pela defesa.
O arguido adita uma testemunha, a fls. 990.
A assistente ………………….. adita uma testemunha, a fls. 1045.  
O julgamento teve início em 30.11.2021, como consta da acta de fls. 1073 a 1079.
Nessa sessão a Sra. Procuradora da República, em sede de exposição introdutória em requerimento ditado para a acta suscitou a questão da inexistência de pronúncia, a omissão quanto ao elemento subjectivo do crime de violência doméstica, não sendo elencada qualquer prova que deva ser produzida em audiência, requerendo fosse declarada a inexistência de despacho de pronúncia, ordenando-se a devolução dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal, a fim de ser proferido o despacho em falta. O arguido subscreveu esta posição, dissentindo no que respeita ao elemento subjectivo, entendendo estar perante nulidade insanável, devendo o julgamento ser suspenso de imediato. O Juiz afirmou que a questão seria debelada em sede de sentença como questão prévia.
O julgamento continuou em 7.12.2021, como consta da acta de fls.1089 a 1097.
A assistente ………………….. em 9.1.2022 responde à alegada inexistência jurídica suscitada pelo Ministério Público, bem como insuficiência da caracterização do elemento subjectivo do crime em causa nos autos, a fls. 1101/2 verso, defendendo que não há inexistência jurídica do despacho de pronúncia, antes uma mera nulidade sanável que não foi arguida, defendendo que o despacho de pronúncia resulta da conjugação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.4.2021 com o despacho de 24.5.2021, não podendo dissociar-se um do outro e que a eventual nulidade da pronúncia se encontra há muito sanada.
Na sessão de 10.01.2022, acta de fls. 1105, em despacho ditado para a acta, a resposta da assistente foi considerada manifestamente extemporânea, sendo determinado o seu desentranhamento e devolução ao apresentante.
Como consta da acta de 10.01.2022, a fls. 1105 a 1117, é ditada a sentença que aborda a questão prévia da inexistência de pronúncia, considerando improcedente a requerida declaração nesse sentido e terminando por absolver o arguido.
Começamos, então, por apreciar a questão prévia colocada pela Exma. Procuradora na sessão de julgamento de 30.11.2021.
Questão Prévia – Inexistência do despacho de pronúncia
Na acta de audiência de julgamento, de fls. 1073 a 1079, partilhada com o Juiz via Citius, em 6-12-2021, a Exma. Procuradora da República em requerimento ditado para a acta suscitou a questão da inexistência de pronúncia, nos termos que de seguida se transcrevem na íntegra até para melhor esclarecimento do que está em causa.
“Após prolação do despacho de arquivamento do Ministério Público, e concluída a fase de instrução, foi proferido despacho de não pronúncia no que toca ao arguido e no que se refere ao crime de violência doméstica, que teria como ofendido o seu filho, ………………...
Inconformada com tal despacho, a assistente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde, contrariamente ao decidido pela Mm.ª JIC, se decidiu existirem indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica, elencando-se a factualidade que sustentaria a sujeição do arguido a julgamento pela prática de um crime de violência doméstica, pelo qual deveria ser pronunciado.
Após elencar tais factos, termina o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa com o dispositivo “Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente provido nos termos supra indicados devendo ser o arguido pronunciado pelos factos e crime referido”.
Regressados os autos à Instrução Criminal, a Mm.ª JIC não proferiu despacho de pronúncia mas, ao invés, por entender que o arguido já se encontrava pronunciado pelo tribunal superior, remeteu os autos à distribuição, para julgamento, cfr. despacho datado de 24/5/2021.
Recebidos os autos, foi designada data para julgamento, consignando-se, no despacho de recebimento, que a factualidade em discussão seria a constante de fls. 906 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
E aqui nos vemos chegados.
Ora, compulsados os presentes autos ao preparar o presente julgamento, entende o Ministério Público que, em rigor, o arguido não foi ainda pronunciado pelos factos que a Relação considerou indiciariamente provados, estando-se perante uma verdadeira e literal ausência de pronúncia, de despacho de pronúncia, pelo que os autos devem voltar à Instrução Criminal, a fim de ser proferido o despacho de pronúncia em falta.
Da leitura do Acórdão verifica-se que a sua decisão quanto à matéria indiciariamente provada não pode equivaler a uma pronúncia, desde logo, da perspectiva meramente formal:
Tal excerto, a fls. 906, onde se elencam os factos a serem apreciados em sede de julgamento, é omisso quanto ao elemento subjectivo do crime de violência doméstica, limitando-se a afirmar que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e, mais notório, não elenca qualquer prova que deva ser produzida em sede de audiência, seja pericial, documental ou testemunhal, de modo a fazer prova da factualidade que se considera indiciariamente provada, não se podendo constituir como uma verdadeira pronúncia. Aliás, a escolha de palavras em tal Acórdão parece-nos inequívoca: O arguido não é pronunciado, mas considera-se que deve ser pronunciado, o que é coisa diferente, remetendo para uma acção futura.
Não podemos esquecer que o despacho de pronúncia, por imposição legal, deve conter os elementos essenciais a uma acusação pública, sob pena de nulidade, art.º 283º, n.º 3, ex vi do art.º 308º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, o que aqui não se verifica e que justifica o nosso entendimento.
Aqui chegados não podemos deixar de considerar que o despacho de pronúncia não existe, nunca foi proferido, pelo que não poderá ser produzida qualquer prova nem ser proferida uma sentença que não tenha subjacente uma pronúncia válida.
O vício de que enfermam os presentes autos após a descida dos autos do Tribunal da Relação de Lisboa é de tal forma intenso e afecta a regularidade da instância de tal modo que se está, a nosso ver, perante a figura da inexistência jurídica.
A situação reflectida nos presentes autos não tem, porém, cabimento em sede de nulidade insanável do processado, porquanto não se encontra prevista no art.º 119º do Código de Processo Penal, que apenas determina a nulidade do processado no caso de omissão da fase da Instrução, al. d), o que seguramente não é o caso, pois que a fase de instrução existiu efectivamente, com um senão, não se mostra concluída.
Também, atenta a gravidade das consequências, a ausência de despacho de pronúncia não se pode considerar uma nulidade sanável ou uma mera irregularidades, art.º 120º e 123º, do Código de Processo Penal, não podendo ser realizado julgamento sem factos cristalizados sob a forma de uma acusação pública, que não existiu, ou de uma pronúncia, também inexistente.
Cremos, assim, que o vício de que enferma o processo é efectivamente o de inexistência jurídica, figura extrema do conceito de invalidade - neste sentido Código de Processo Penal anotado pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, fls. 297 e 298.
Como sustentado por José Costa Pimenta, Código de Processo Penal anotado, “A inexistência do acto processual consiste na sua inidoneidade em enquadrar-se no esquema da relação processual penal e em produzir, portanto, quaisquer efeitos, sequer de natureza processual, e, em particular, o máximo e final efeito jurídico que é o caso julgado. Daqui resultam duas consequências: (1) a inexistência é insusceptível de ser, em algum tempo, sanada; (2) Não precisa de ser declarada, (…) mas convém que o seja por uma razão de clareza, podendo sê-lo oficiosamente. Afecta todos os actos posteriores que dependam do acto inexistente. Ao passo que o acto processual ferido de nulidade (mesmo) absoluta fica coberto com o trânsito em julgado da decisão final, a inexistência ultrapassa toda a possibilidade de preclusão e fere o acto de modo absoluto e por tempo indefinido: o acto inexistente só aparentemente transita em julgado.” (sic)
A figura da inexistência jurídica é abordada no Acórdão do STJ datado de 14.12.2016, relatado por Nuno Gomes da Silva, onde se entende que “O regime fixado no Código de Processo Penal no tocante à apreciação das deficiências dos actos processuais e sua classificação de acordo com a gravidade dessas deficiências está sujeito ao princípio da legalidade com as exigências de fundamento e critério que lhe estão associadas. E nesse regime não está prevista a sanção de inexistência”.
Admitindo-se, contudo, haver formulações doutrinais que admitem conceptualmente o vício da inexistência do acto processual, a sua ocorrência decorreria de uma falta de tal modo grave que a esse acto faltariam elementos essenciais à sua própria subsistência de modo que, em caso algum, ele poderia produzir efeitos jurídicos, o que se traduziria na inexistência da própria relação jurídica processual.
Exemplo paradigmático de tal vício podemos invocar o decidido no Acórdão do STJ de 24.6.1992, que declara como inexistente a condenação proferida contra pessoa que não tenha sido acusada, ou pronunciada, dizemos nós, da prática desse crime nem a quem não tenham sido imputados os factos que o podem integrar.
A função da categoria da inexistência será, então, a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado. Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 30.9.2014, relator António João Latas, onde se aponta claramente que “embora a lei processual não mencione a inexistência no quadro das invalidades processuais admitem-no pacificamente a doutrina e jurisprudência, pois há actos com a aparência de actos processuais que se impõe distinguir destes, sendo impensável no plano teórico e insustentável em termos práticos que situações de maior gravidade fiquem desprotegidas por terem sido omitidas pelo legislador”.
Ora, não tendo havido promoção do processo por parte do JIC após a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, estamos perante uma verdadeira inexistência jurídica, que afectará de modo irreversível a validade dos autos que se seguem ao lapidar despacho da Mm.ª JIC, obstando a que, caso os autos prossigam e seja realizado julgamento por referência ao elenco de factos de fls. 906 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou que o arguido deveria ser pronunciado, jamais se alcançará uma decisão final que possa transitar em julgado, o que é o objectivo último dos presentes autos, nesta fase.
Assim, requer o Ministério Público que seja declarada, nesta sede, a inexistência de despacho de pronúncia, ordenando-se a devolução dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal, a fim de ser proferido o despacho em falta, dando-se sem efeito a presente diligência.”
*
A defesa, a fls. 1076 verso/1077, ditando para a acta considerou a posição do Ministério Público notável, subscrevendo-a quase na integra, mas considerou num terceiro segmento “que a nossa discrepância quanto ao douto pensamento da Sra. Procuradora da república aqui presente é saber se estamos perante uma inexistência ou perante uma nulidade processual insanável, que determina a extinção imediata dos presentes autos”.   Defende que o julgamento devia ser suspenso de imediato.
O Juiz na altura decidiu que a questão seria apreciada na sentença como questão prévia, prosseguindo a audiência de julgamento, após ter sido ouvida a posição do MºPº e da defesa, com a audição do arguido e de 5 testemunhas que na acta constam como tendo sido arroladas pelo MºPº(!).  
Como referido, a assistente apresentou resposta, sendo a mesma desentranhada por extemporânea.
Na sentença o Juiz julgou improcedente a requerida declaração de inexistência.
Como já se referiu, o acórdão da Relação de Lisboa de 13.4.2021, julgando parcialmente provido o recurso interposto pela assistente do despacho de não pronúncia proferido pela Juíza de Instrução Criminal, dando por indiciados factos que indica, termina no sentido de dever ser o arguido pronunciado pelos factos e crime referidos.
Refere de forma expressa e muito clara “devendo o arguido ser pronunciado nesses termos” e “Julga-se o recurso parcialmente provido nos termos indicados devendo ser o arguido pronunciado pelos factos e crime referidos”.
A Exma. Juíza de instrução criminal, em vez de cumprir o determinado pela Relação e pronunciar o arguido pelos factos e crime referidos como dizia o acórdão, em 24.5.2021, ordenou a remessa a julgamento afirmando que o arguido foi pronunciado pelo Tribunal da Relação.  
O que acontece é que a JIC incorre em erro quando diz que o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou o arguido.
O Tribunal da Relação de Lisboa não pronunciou o arguido.
Apreciando o recurso da assistente entendeu estarem indiciados determinados factos e ser de imputar o crime, mas competente para a pronúncia era a JIC, que se exonerou da obediência à injunção clara da Relação, entendendo que cabia ao Tribunal da Relação pronunciar o arguido e que esta o havia feito.
O Tribunal da Relação apenas pronuncia ou não pronuncia nos casos em que são arguidos juízes de direito, procuradores da República e procuradores-adjuntos, como dispõe o artigo 12.º, n.º 3, alínea a), do CPP.
Aqui a Relação não se substitui ao JIC. Apreciando o recurso, entende que o arguido deverá ser pronunciado, por para tanto estarem indiciados certos factos, que enumera. Mas a pronúncia compete ao JIC, que omitiu cumprimento do determinado pela Relação de Lisboa. 
A menos que se tenha de ter por subentendido que a M.ma JIC alinhou com alguma jurisprudência que entende que nestes casos a Relação pode desde logo pronunciar. A dificuldade aqui é que a Relação foi muito clara ao determinar que o arguido devia ser pronunciado pelos factos e crime referidos, o que significa indubitavelmente que não pronunciou e determinou que a 1ª instância o fizesse.
Também o juiz de julgamento extrapolou indevidamente as suas competências, não só ao sugerir o objecto do processo - de facto inexistente - como a indicar prova de fls. 456/7/8 que foi a prova apresentada pela assistente aquando do RAI.
Não teve em devida conta que das 15 testemunhas arroladas no RAI, por despacho transitado da Juíza de Instrução Criminal, havia sido indeferida a inquirição de 14 dessas testemunhas, por processualmente inadmissíveis, ou por impertinentes às finalidades da instrução, restando apenas uma. A prova deveria ter sido arrolada no despacho de pronúncia. A “dita pronúncia” não tinha prova. O juiz de julgamento não podia colmatar a lacuna, suprir a omissão, recorrendo às testemunhas de fls. 456/7/8, que a JIC não aceitara, à excepção de uma, até porque de acordo com o disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. d), aplicável ex vi do art. 308.º, n.º 2, do CPP, a falta de cumprimento da al. d) conduz a nulidade (da acusação e da pronúncia). 
Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 4.ª edição 2008, pág. 88, afirma: “Invalidade e ineficácia são conceitos próximos, mas não coincidem. De facto, no direito processual não tem aplicação o princípio quod nullum est nullum producit effectum, salvo o caso de actos inexistentes.”.
Sobre inexistência, refere, a págs. 106/7: “A categoria da inexistência afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua sanação.
É bem de ver que seria tecnicamente inconcebível, para além de profundamente iníquo, deixar sem tutela vícios do acto mais graves do que os que a lei prevê como constituindo nulidades.
A função da categoria da inexistência é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado: a inexistência é insanável. A inexistência do acto, de facto, impede de modo irremediável a produção dos efeitos próprios do acto perfeito, como acontece nas nulidades e irregularidades.
Fruto de elaboração doutrinária e jurisprudencial, a categoria da inexistência foge a toda a previsão normativa. Seria praticamente impossível ao legislador prever todos os hipotéticos casos de inexistência.
A inexistência jurídica do acto tem de ser demarcada em função das nulidades, isto é, os vícios que geram a inexistência hão-de ser mais graves que aqueles que determinam a nulidade; mais do que vícios do acto, por lhes faltar algum requisito, é o próprio acto que falta por carecer de elementos essenciais à sua consideração como acto do processo. É precisamente porque lhes falta a essência do acto processual que alguns autores entendem mesmo que a própria categoria da inexistência não é de considerar, porque está fora do processo, não existe para o processo, é um fantasma processual”.  
A jurisprudência tem entendido que enquanto o acto inexistente não é susceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, o acto nulo, embora não produza os efeitos que lhe são próprios, pode produzir efeitos laterais.
Para os acórdãos do STJ de 14.5.2008, proc. n.º 1672/08, CJSTJ 2008, T 2, p. 232, e de 30.06.2010, proc. n.º 1375/07.6PBMTS.P1.S1:
“Na figura da inexistência jurídica estão em causa vícios do acto mais graves do que os que a lei prevê como constituindo nulidades. A função da inexistência - categoria que foge a toda a previsão normativa - é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado - a inexistência, ao contrário das nulidades, é insanável.
Tal categoria afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua sanação.
Declarada a invalidade do acto é ordenada a sua repetição e aproveitados todos os actos  que ainda puderem ser  salvos do efeito daquela, regressando o processo ao estádio em que o acto nulo foi praticado. (cfr. a propósito, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume II, 88).
Para Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I volume, edição dos SSUL, 1972-1973, p. 285/9, a anulação de um acto supõe a sua existência jurídica; há que declarar a sua nulidade. O acto pode porém, não ter consistência jurídica, e enquanto inexistente não carece mesmo de ser objecto de anulação.
 (...) O acto nulo não produz quaisquer efeitos, mas, em si mesmo, não seria inidóneo para os produzir; inexistente é o acto que não só não produz quaisquer efeitos jurídicos, como em caso algum poderia produzir. O primeiro é inidóneo, em acto, para a produção de efeitos jurídicos; o segundo é inidóneo também em potência.
Os actos nulos, ao contrário dos inexistentes, têm ainda idoneidade para originar caso julgado.
(...) Um acto inexistente não é susceptível de produzir quaisquer efeitos, e é por isso que não carece de ser anulado, nem o acto se refaz ou a inexistência é absorvida pelo trânsito em julgado; o acto judicial inexistente não dá nunca lugar a caso julgado.
Os actos inexistentes não carecem de ser anulados”.
Para o acórdão do STJ de 31.03.2004, proc. n.º 1494/04-3ª, a anulação de um acto não é o mesmo que inexistência do acto; naquela o acto existe, mas não produz efeitos; nesta o acto não chega a existir para o mundo do direito.
Para o acórdão do STJ de 16.04.2004, proc. n.º 1610/04-5ª “Acto processual nulo não se confunde com acto puramente inexistente: enquanto a inexistência corresponde àqueles casos mais graves «em que verdadeiramente se pode dizer que para o direito não há nada», na nulidade o acto existe, mas não produz ou pode não produzir os efeitos para que foi criado, ante uma falta ou irregularidade no tocante aos seus elementos internos”.
Segundo o acórdão do STJ de 30.8.2002, proc. 02P2943 e de 7.12.2006, proc. n.º 4583/06 - 5.ª “Enquanto a inexistência corresponde àqueles casos mais graves «em que verdadeiramente se pode dizer que para o direito não há nada», na nulidade o acto existe. Apenas não produz ou pode não produzir os efeitos para que foi criado, ante uma falta ou irregularidade no tocante aos seus elementos internos. Tanto assim que os casos de inexistência da sentença se resumem a estas três hipóteses: a) não provir a sentença de pessoa investida do poder jurisdicional; b) ser o acto emitido a favor de ou contra pessoas fictícias ou imaginárias; c) não conter a sentença uma verdadeira decisão ou conter uma decisão incapaz de produzir qualquer efeito jurídico”.
Segundo o acórdão do STJ de 21.01.2006, proc. n.º 281/06-3.ª “Ao contrário do inexistente, o acto inválido existe, quer social, quer juridicamente, produzindo alguns efeitos, variáveis consoante as circunstâncias (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte geral, p. 657)”.
Concluindo.
O que a lei estatui é que considerada a verificação de indícios suficientes da prática dos factos e incriminação, a pronúncia seja feita pelo Juiz de instrução criminal. Não por acórdão do Tribunal da Relação, que aprecia recurso interposto pela assistente do despacho de não pronúncia proferido pela Juíza de instrução criminal. Muito menos ainda, que seja o resultado de combinação do acórdão da Relação com despacho subsequente da juíza de instrução criminal que entende que a pronúncia foi dada pela Relação.
Não é ao Tribunal da Relação que compete pronunciar. Como claramente consta do dispositivo e do parágrafo anterior, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o arguido deveria ser pronunciado pelos factos e crime referidos. 
Além disso, a existir pronúncia, esta seria nula por total ausência de indicação de prova.
Não é ao juiz do julgamento que cumpre indicar a prova que ele próprio vai ouvir e apreciar em julgamento, para mais fazendo-o com indicação de testemunhas arroladas pela assistente no RAI que a Juíza de instrução criminal afastara na esmagadora maioria.
Faltando a pronúncia, falta o objecto do processo.
A falta de pronúncia conduz à sua inexistência, inquinando todo o processo posterior.
Em consequência, o processo deve voltar ao tribunal de instrução criminal a fim de ser elaborado o despacho de pronúncia, tal como determinado pelo Tribunal da Relação.
Com esta solução fica prejudicada a apreciação das questões colocadas no recurso.
No entanto, relativamente à descrição do elemento subjectivo do crime de violência doméstica, que o MP inclui na figura da inexistência e a que se referem a defesa e o Juiz de julgamento, invocando o AFJ n.º 1/2015, considerando-a como insuficiente, apenas se dirá que muito provavelmente não se terão tomado conta de que a descrição do elemento subjectivo foi feita pela Relação, não colhendo as críticas feitas ao acórdão do TRL de 13.04.2021. A fls. 884 escreve-se claramente no ponto 9. que o pai do menor agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que estas suas condutas são proibidas por lei.
O juiz de instrução criminal terá de pronunciar nos exactos termos do acórdão, incluído o elemento subjectivo.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em declarar a inexistência de despacho de pronúncia, remetendo-se os autos ao TIC de Loures para que seja proferido o despacho de pronúncia, nos termos determinados no Acórdão da Relação de Lisboa de 13.04.2021.  
Sem custas.

Lisboa, 02-06-2022
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
Paula Cristina Jorge Pires