Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4261/19.3T8LRS.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
PRIVAÇÃO DE USO
VIATURA DE SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) A mera privação do uso de um bem determina a prova perfunctória ou de primeira aparência da verificação de um dano.
II) Para se eximir a indemnizar, cabe ao réu demonstrar que nenhum dano se verificou.
III) A convenção de obrigação da seguradora a substituir o veículo sinistrado, constitui fundamento contratual para indemnização pela privação do uso.
IV) Estando a Ré obrigada a entregar uma viatura de substituição ao Autor e é em relação à privação do uso dessa viatura de substituição que se deve ter por convencionada a cobertura de privação de uso de veículo cuja perda total foi declarada.
V) O valor máximo diário convencionado como garantido pela Seguradora em sede de veículo de substituição constitui indicação do valor a considerar como de privação do uso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
F…, com os sinais dos autos, veio instaurar acção declarativa comum contra SEGURADORAS UNIDAS, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe € 80.000,00 (oitenta mil euros) a titulo de capital seguro por cobertura de incêndio, raio e explosão estabelecida contratualmente entre Autor e antecessora da Ré, indemnização por privação do uso de veículo no valor diário de € 200,00 (duzentos euros), desde a data do sinistro até à data de pagamento do valor venal do mesmo, a apurar a final, e juros de mora calculados desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, ter deflagrado um incêndio no veículo segurado, quando circulava com este, sinistro esse coberto pelo contrato de seguro celebrado, que a Ré se recusa a cumprir.
A Ré contestou defendendo a improcedência da acção, alegando, em resumo que o incêndio não foi acidental, estando excluída a responsabilidade da Ré por o evento se não enquadrar na cobertura da apólice. Convidada por despacho judicial a esclarecer qual a exclusão que alega, disse que o Autor não relatou o sinistro de modo conforme com a realidade, violando o disposto no artigo 27.º, da CGA. Mais referiu que após produção de prova se poderá aquilatar das exclusões previstas nas cláusulas 3.ª e 40.ª.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e organizados os temas da prova.
Procedeu-se a perícia ao veículo e foi junto o respectivo relatório.
O Autor veio requerer a ampliação do pedido, acrescendo o de condenação da Ré a pagar o valor de € 6.892,52 (seis mil oitocentos e cinquenta e dois euros) correspondente ao montante devido pelo parqueamento do veículo na oficina onde se encontra desde o sinistro, a liquidar a final à razão diária de € 10,24 (dez euros e vinte e quatro cêntimos).
A Ré respondeu pronunciando-se pela improcedência do pedido ampliado.
Foi proferido despacho que indeferiu a requerida ampliação por a mesma consubstanciar uma alteração simultânea do pedido e da causa de pedir que a Ré não aceitou.
Houve audiência de julgamento no decurso da qual foi ordenada a junção pela Ré do relatório pericial a que havia procedido e que determinara a recusa em indemnizar.
Foi junto o relatório e suscitada pronúncia do perito da Polícia de Judiciária quanto ao mesmo, a qual foi junta aos autos.
Concluída a audiência, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente improcedente, condenando a Ré a pagar ao Autor o montante de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até integral pagamento, correspondendo o montante ao valor seguro deduzidos os salvados, absolvendo a Ré do demais pedido.
Desta sentença interpôs o Autor o presente recurso e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:
1.ª A presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário proposta por F…. contra a aqui recorrida Generalli Seguros S.A., foi julgada parcialmente procedente, tendo a Recorrida sido condenada no pagamento do valor do veículo sinistrado e absolvida do restante pedido, sendo que, o aqui Recorrente não concorda com a Decisão na parte que absolveu a Recorrida, daí o presente recurso.
2.ª O presente recurso tem por objecto a matéria de facto e de direito da Sentença proferida nos presentes autos.
3.ª A Recorrida, por douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo foi condenada no pagamento do valor de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) pelo dano de perda total da viatura, quanto a esta parte o Recorrente congratula-se com tal Decisão.
4.ª Na opinião do Recorrente, de acordo com a prova que foi produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, ficou demonstrado que lhe é também devido o valor peticionado por privação do uso do veículo, e ainda o valor correspondente ao dano de parqueamento na oficina, da viatura sinistrada, o que não foi atendido na douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo.
5.ª. Por isso o Recorrente considera que foram incorrectamente julgados os pontos da fundamentação de facto identificados como n.ºs 20) a 23) (matéria de facto dada como não provada), acima transcritos, quando analisada a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.
6.ª O Recorrente economizou para conseguir adquirir o veículo dos seus sonhos, que, utilizava para as suas deslocações diárias e famíliares.
7.ª O Recorrente não pode concordar que o ponto 20) da matéria de facto dada como não provada não tenha sido dado como provado, atendendo à prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, onde ficou claro que esta viatura era utilizada pelo mesmo, com frequência.
8.ª O aqui Recorrente, teve e tem que se deslocar noutra viatura pertença da sua empresa, trata-se de uma carrinha comercial marca Citroen, modelo Berlingo, atendendo a que a pequena empresa de que é proprietário dedica-se à distribuição de carnes.
9.ª O Recorrente ainda tentou alugar uma viatura equivalente à sua, mas o valor diário para esse aluguer rondava os € 400 (quatrocentos euros), e, o mesmo para além de não possuir verba que lhe permitisse alugar este tipo de viatura, e mesmo que o quisesse, não existia disponibilidade destas no mercado.
10.ª O Recorrente não pode concordar com a conclusão a que chegou o Tribunal a quo nesta parte, não só pelo que acima se disse quanto à prova testemunhal produzida, como também tendo em consideração a Jurisprudência dominante quanto a este tipo de dano, que considera existir nexo causal entre a apontada conduta ilícita da Recorrida e o dano invocado pelo Recorrente, nos termos estabelecidos pelo artigo 563.º do Código Civil este dano é indemnizavel, mesmo que o contrato não cubra tal risco, uma vez que o dono do veículo ficou privado de exercer os poderes inerentes ao seu direito.
11.ª A Recorrida chegou a remeter missiva ao Recorrente, colocando à disposição do mesmo o valor de € 75.000,00, ou seja, o valor contractualizado, depois de abatido o de € 5.000,00 em que ainda foi avaliado o veículo, tendo, após decorrido cerca de um mês, declinado a sua responsabilidade pelos danos.
12.ª O aqui Recorrente peticionou o pagamento do valor de € 200,00 (duzentos euros) à razão diária, desde o dia em que deixou de poder dispor da sua viatura, obteve este valor ao tentar alugar uma viatura similar e foi este o valor que a empresa de aluguer lhe indicou, como o mesmo afirmou em Audiência de Julgamento.
13.ª E por isso deverá a Recorrida ser condenada no pagamento ao Recorrente do valor diário de € 200,00 (duzentos euros), por se entender ser este um valor mais do que razoável para o aluguer de uma viatura com caracteristicas incluisive inferiores ao Porsche Panamera que está em causa nestes autos, o que desde já se requer a V. Exas. seja considerado.
14.ª Por requerimento, o aqui Recorrente, peticionou a ampliação do pedido nos termos e para os efeitos do art.º 265.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, para que a Recorrida fosse condenada no pagamento do valor diário de 10,24 (dez euros e vinte e quatro cêntimos), por parqueamento na oficina onde a viatura tem permanecido, que totalizava naquela data o valor de € 6.892,52 (seis mil oitocentos e noventa e dois euros e cinquenta e dois cêntimos).
15.ª Para o efeito juntou um documento – declaração – emitido pela oficina de Luis M. Lopes & Filhos, Lda., que refere que o valor de referência estabelecido para estas situações é € 1,28 (um euro e vinte e oito cêntimos) por m2, determinado pela ANECRA, refere ainda que a área ocupada pela viatura é de 8m2, o que implicava um valor diário de € 10,24.
16.ª O Tribunal a quo entendeu tratar-se de uma alteração da causa de pedir/ampliação da causa de pedir, e por isso não deu provimento ao pedido do Recorrente.
17.ª Salvo o devido respeito por tal Decisão, que é muito, o Recorrente considera que a ampliação do pedido formulada está intimamente ligada ao pedido original, até porque, este decorre dos danos ocorridos na viatura, e do não pagamento destes pela Recorrida, porque o custo do parqueamento é ainda uma consequência do sinistro, o que leva a que estejamos perante uma ampliação/consequência do pedido primitivo.
18.ª Quer a Recorrida, quer o próprio Tribunal a quo tinham perfeito conhecimento de que a viatura tem estado parqueada nesta oficina desde a data do sinistro, uma vez que todas as peritagens foram efectuadas na citada oficina.
19.ª Assim, na opinião do Recorrente, e face ao exposto, também a ampliação do pedido deveria ter sido atendida pelo Tribunal a quo, por isso também quanto a esta parte o Recorrente não pode concordar com a Sentença agora em crise, pelo que requer a V. Exas. que também este dano seja considerado, com a consequente condenação da Recorrida.
20.ª Além do mais, também por tudo isto, é manifesto que a Decisão de que aqui se Recorre foi lavrada em lapso e assim, deve ser deve ser revogada, o que desde se requer a V. Exas.
Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências não deixarão de doutamente suprir, deve ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e revogada a douta Sentença Recorrida, sendo proferido um Acórdão que condene a Recorrida a pagar ao Recorrente Apelante a quantia de € 200,00 (duzentos euros) à razão diária, até efectivo e integral pagamento da indemnização devida pelo sinistro da viatura, e ainda, seja condenada a Recorrida no pagamento do dano devido pelo parqueamento da viatura na oficina onde tem permanecido, calculado à razão diária de € 10,24 (dez euros e vinte quatro cêntimos) desde o sinistro até pagamento da indemnização devida ao Recorrente, como é de Direito e de SÃ JUSTIÇA.
A Ré apresentou contra-alegações em que defendeu a confirmação do julgado.
O recurso foi admitido para subir imediatamente nos autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, já que a tal nada obsta.
II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões do Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º A, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar das seguintes questões:
1. Da admissibilidade da requerida ampliação do pedido e da consequente ampliação/alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2. Da privação do uso do veículo: indemnização e valor.
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. Da ampliação da decisão quanto aos factos
1.1. Embora indicando tal pretensão como de ampliação da decisão sobre a matéria de facto, para apreciação das questões de facto relacionadas com as despesas de parqueamento do veículo acidentado, esta pretensão surge como consequência de uma outra, a de impugnação do despacho que indeferiu a ampliação do pedido com fundamento em a mesma implicar uma alteração simultânea do pedido e da causa de pedir vedada pelo artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Tal decisão é susceptível de impugnação com a decisão final por não estar prevista a sua impugnação em apelação autónoma – artigo 644.º, n.º 3, do Código de Processo Civil – cumprindo apreciá-la nesta apelação.
1.2. O Autor na sua petição pediu a indemnização pela perda do veículo decorrente do incêndio e pela privação do seu uso, fazendo-o ao abrigo do contrato de seguro celebrado com a Ré.
No requerimento que indicou como de ampliação do pedido, veio alegar que, em razão do acidente, havia colocado o veículo numa garagem, ao que correspondia determinado montante por cada dia de permanência do veículo. Com esse fundamento, pediu que a Ré fosse condenada também a pagar-lhe as despesas de parqueamento do veículo porque decorrentes do sinistro fundamento da acção e da atitude da Ré de não suportar a indemnização.
A Ré impugnou o alegado e defendeu que, tendo em conta os factos alegados e que os mesmos não resultam do pedido primitivo, entende que a douta ampliação deverá improceder.
A Ex.ma Senhora Juiz interpretou tal como expressão de não consentimento na alteração do pedido e da causa de pedir.
1.3. O pedido de uma acção exprime a pretensão deduzida pelo Autor, enquanto a causa de pedir enuncia os factos e razões de direito dos quais decorre a procedência da pretensão.
Os factos alegados podem ser de diversa natureza, importando nesta sede distinguir entre os factos essenciais e os instrumentais, complementares ou concretizadores[1]. Os primeiros, simplificando, são aqueles sem os quais a pretensão não procede e que devem ser adquiridos através da alegação em articulados (veja-se o artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), os segundos aqueles os que se revestem de valor probatório indiciário ou que enquadram circunstancialmente os factos essenciais, podendo ser adquiridos para o processo nos termos definidos pelo n.º 2, da norma citada.
A causa de pedir (facto ou factos sem os quais a pretensão não pode proceder) pode ser complexa (é-o as mais das vezes), entendendo-se por tal aquela que compreende uma pluralidade de factos essenciais.
A qualificação dos factos da vida real como essenciais ou instrumentais, complementares ou concretizadores depende do enquadramento normativo resultante do direito substantivo, que o mesmo é dizer, é uma realidade normativa e não puramente factual.
Estando em causa um contrato de seguro e as obrigações dele decorrentes para a seguradora face ao segurado, os factos essenciais são aqueles que respeitam à existência e validade do contrato, às características do sinistro dele objecto e aos danos que estejam em relação de causalidade com esse sinistro.
Estes os factos que integram a causa de pedir. Assim sendo, os factos relativos a gastos que o Autor tenha feito ou haja de fazer causados pelo sinistro são factos essenciais que, por isso, integram a causa de pedir.
Encontram-se nesse caso os gastos com o parqueamento do veículo pelo que os factos relativos a ter ocorrido tal parqueamento e ser o mesmo oneroso são factos que integram a causa de pedir fundamento do pedido de pagamento das respectivas despesas.
A ampliação do pedido com inclusão das despesas de parqueamento constitui uma ampliação que não é mero desenvolvimento do pedido primitivo (porque nele não se encontrava incluída), por um lado, e implica uma alteração da causa de pedir, por outro. Dimensões que estão, aliás, relacionadas.
Em conclusão, concordamos com a primeira instância em que o requerimento que o Autor qualificou como ampliação do pedido constitui uma alteração do pedido e da causa de pedir, por isso não enquadrável na previsão do artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, sendo-o antes na previsão do artigo 264.º, do mesmo Código.
1.4. A modificação objetiva da instância prevista no artigo 264.º citado depende de não consistir em perturbação inconveniente da instrução, discussão e julgamento do pleito e de haver acordo das partes.
Com fundamento em falta de consentimento da Ré foi o requerimento indeferido. A Ré não se pronunciou explicitamente sobre a admissibilidade da ampliação, o que implica a interrogação sobre a admissibilidade, no caso, de aceitação/oposição tácita.
Entendemos que a resposta é positiva. A regra de que a declaração pode ser expressa ou tácita – artigo 217.º, do Código Civil - não se encontra excluída no caso, por isso que o n.º 2 da norma expressamente prevê que o carácter formal da declaração (como o é necessariamente a declaração a fazer no processo) não obsta a que a mesma seja tácita, bastando que a forma exigida seja seguida quanto aos factos de que a declaração tácita é deduzida.
No caso, a Ré pronunciou-se como segue na resposta ao requerimento de ampliação (consignada na acta de 23 de Novembro de 2020, ref.ª 146585054):
Tendo o Ilustre Mandatário da R. tomado agora conhecimento do requerimento entrado a 19/11/2020 com a referência 10281637, pelo mesmo foi dito que por serem factos do desconhecimento da R., impugna a matéria alegada nos itens 3º a 9º da douta ampliação do pedido, bem como o documento junto com a mesma.
Ademais, tendo em conta os factos alegados e que os mesmos não resultam do pedido primitivo, entende que a douta ampliação deverá improceder.
Pode retirar-se da impugnação dos factos e da pronúncia pela improcedência da ampliação uma aceitação tácita da alteração simultânea do pedido e da causa de pedir?
Em princípio assim seria, uma vez que apenas na admissibilidade da alteração seria útil impugnar os factos que a fundamentam e que a improcedência da mesma não se confunde com a inadmissibilidade, por se referir aquela ao mérito após admissão e esta à possibilidade mesma da admissão.
Em suma, da pronúncia sobre a verdade dos factos alegados e sobre a improcedência da ampliação, teria de retirar-se, com toda a probabilidade, que a Ré havia aceitado a alteração do pedido e da causa de pedir por apenas a admissibilidade dela justificar aquela pronúncia, tanto mais que não foi indicada a natureza cautelar da mesma.
Não entendemos que assim possa concluir-se com toda a probabilidade por esta probabilidade ser colocada em crise pelo fundamento indicado para a conclusão pela improcedência – alegação de que que os [factos alegados] não resultam do pedido primitivo – a qual pertence à pronúncia sobre a admissibilidade e não sobre o mérito.
Ora, pronunciando-se a Ré sobre a admissibilidade e concluindo por uma pronúncia de improcedência, não pode extrair-se com toda a probabilidade que concorda com a alteração, antes se tem de concluir que não concorda. Sufragamos, pois, a conclusão da primeira instância.
1.5. Concluindo-se que está em causa no requerimento intitulado de ampliação do pedido (ref.ª 37209624) uma alteração simultânea do pedido e da causa de pedir e de que tal alteração não foi aceite pela Ré, é inelutável concluir pela inadmissibilidade da requerida modificação objectiva da instância e pela confirmação da despacho de primeira instância que assim decidiu, improcedendo nessa parte a apelação, tanto na dimensão de revogação do despacho, como na correlativa pretensão de ampliação da decisão de facto.
 2. Da impugnação da decisão de facto
2.1. O Apelante considera que foram incorrectamente julgados os factos não provados constantes dos pontos 20 a 23. São eles os seguintes:
20) Que o A. utilizasse o veículo referido em 1) diariamente em deslocações pessoais e da família e que a falta dele implique para si gastos em transportes alternativos.
21) Que o A. esteja sem viatura para se poder deslocar.
22) Que, por não ter recebido o valor venal do veículo incendiado, o A. não tenha podido adquirir outro para o substituir.
23) Que o aluguer de uma viatura idêntica à referida em 1) tenha um custo diário de € 200.
2.2. Alega a Recorrente a respeito que do depoimento do Recorrente e de toda a prova produzida nos autos decorre que:
a) O Recorrente teve que trabalhar bastante, por forma a obter as economias fundamentais para poder adquirir o veículo dos seus sonhos, sendo que, o utilizava para as suas deslocações semanais e aos fins-de-semana com a sua família e que utilizava a sua viatura diariamente e também nos seus passeios familiares.
Devendo ser considerada provada a matéria de facto constante do ponto 20).
b) Embora o Recorrente tenha outras viaturas, pertença da sua empresa, as mesmas são de outra natureza, não permitindo aquela utilização, por serem viaturas comerciais, uma vez que, a viatura que o Recorrente fez alusão no seu depoimento é uma carrinha comercial “Citroen Berlingo”, atendendo a que a pequena empresa de que o mesmo é sócio gerente dedica-se à distribuição de carnes enquanto a viatura dos seus sonhos era um Porsche Panamera e não uma viatura comercial, por isso investiu grande parte das suas economias na aquisição dessa viatura para poder desfrutar da mesma, o que, se revelou impossível após o sinistro.
c) O aluguer de uma viatura similar à sinistrada, conforme o Recorrente referiu rondava os € 400 (quatrocentos euros), e, mesmo que [o Recorrente] tivesse a necessária disponibilidade financeira para o efeito, não existia disponibilidade dessa viatura no mercado.
2.3. Ouvidas as declarações do Recorrente em audiência, é certo que o mesmo referiu a utilização dada à viatura e também que tinha várias viaturas pertença da sua empresa.
Não se vê que das suas meras declarações haja que extrair outra coisa para além de que é essa a posição do Recorrente no processo. Certo é que as declarações de parte constituem meios de prova sujeitos à livre apreciação e podem fundar a convicção do tribunal num ou noutro sentido. Mas tal é inteiramente diverso de se entender que, sem outra matéria corroborante, a reprodução pela parte em audiência da posição tomada nos articulados seja, sem mais, prova bastante.
O Recorrente fez um apelo vago ao sentido de toda a prova produzida, mas enquanto meio de prova a considerar na reapreciação indicou apenas as declarações de parte. Entendemos que não são bastantes a que se dê como provada a indicada utilização da viatura. O mesmo se diga quanto ao valor do aluguer de uma viatura similar à sinistrada.
Quanto a serem comerciais todas as viaturas da sua empresa, o Recorrente não afirmou tal ao depor.
Improcede a impugnação da decisão de facto.
3. Fixação da matéria assente
Configura-se do seguinte modo a matéria de facto assente, tendo em atenção a improcedência da impugnação:
1) O A. é proprietário do veículo de marca Porsche, modelo Panamera, com a matrícula 25-RA-99.
2) Em 3.3.2016, com início na mesma data, o A. contratou para o veículo de matrícula 25-RA-99 com a Companhia de Seguros Açoreana, S. A. um seguro do ramo automóvel a que coube a apólice nº.90002217308, no âmbito do qual foi incluída a cobertura facultativa de incêndio, raio ou explosão, sendo o capital seguro de € 80 000 e a franquia de € 0.
3) No âmbito do referido contrato foi convencionado que “o capital seguro para a cobertura de danos próprios é o indicado nas condições particulares da apólice. A Açoreana Seguros compromete-se a garantir este capital, pelo período de 3 anos a contar da data início da apólice de seguro. Após este período, a desvalorização a aplicar será a constante nas tabelas de desvalorização correspondentes/adequadas ao veículo garantido”.
4) Nos termos do mesmo contrato, para efeito da condição especial de cobertura relativa a incêndio, raio ou explosão, considera-se “incêndio, raio ou explosão: dano no veículo resultante da ocorrência de qualquer destes eventos, quer este se encontre em marcha ou parado, recolhido em garagem ou em qualquer outro local”.
5) Na cláusula 40, nº.1, al. b) das condições especiais da apólice referida em 2) consta “Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) b) danos causados intencionalmente pelo tomador do seguro, segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro”.
6) Na cláusula 40, nº.1, al. h) das condições especiais da apólice referida em 2) consta “Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) h) danos causados intencional ou involuntariamente pelos próprios ocupantes ou outras pessoas, com quaisquer objectos que empunhem ou arremessem”.
7) Na cláusula 40, nº.2, al. d) das condições especiais da apólice referida em 2), inserida na parte respeitante aos riscos e garantias de subscrição facultativa, consta: “Salvo convenção expressa em contrário, devidamente especificada nas condições particulares, não ficam garantidas as indemnizações por: (…) d) lucros cessantes ou perdas de benefícios ou resultados advindos ao tomador do seguro ou segurado em virtude da privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais”.
8) A Companhia de Seguros Açoreana foi integrada na Companhia de Seguros Tranquilidade, S. A., que faz parte da R.
9) No dia 12.1.2019 o veículo de matrícula 25-RA-99 sofreu um incêndio.
10) Em consequência do incêndio o veículo de matrícula 25-RA-99 ficou destruído.
11) Na data referida em 9), de noite, a hora não exactamente apurada, o A. circulava na EN 115 na viatura referida em 1), quando se apercebeu de um cheiro a queimado, que o levou a imobilizar a viatura.
12) Após a imobilização do veículo o A. e a pessoa que o acompanhava saíram do respectivo interior.
13) Então observaram que saía fumo da frente da viatura, a que se seguiu o aparecimento de chamas.
14) Após o incidente o veículo de matrícula 25-RA-99 foi transportado para a oficina Auto Luís M. Lopes & Filhos, Lda, onde permanece.
15) Por carta datada de 30.1.2019, a R. informou o A. que considerava a reparação do veículo excessivamente onerosa e que, embora não lhe fosse possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, colocavam condicionalmente à disposição do demandante a quantia de € 75 000, mantendo ele a posse do veículo danificado, o qual foi avaliado pela R. em € 5 000.
16) Por carta de 28.2.2019, a R. comunicou ao A. que declinava qualquer responsabilidade pela liquidação dos danos decorrentes do sinistro, por entender que o mesmo não ocorreu de forma aleatória, súbita e/ou imprevista.
17) Por mail datado de 21.3.2019, a R. reiterou a posição dita em 16).
Dos autos resulta ainda com pertinência, o que se adita nos termos do artigo 663.º, n.º 2, com referência ao artigo 607.º, n.º 4, ambos do CPC, por não ser controverso:
18) Nos termos do acordo celebrado entre o Autor e a antecessora da Ré, no capítulo epigrafado “privação do uso – VIP” a cláusula 2.ª garante ao segurado o pagamento do valor diário estabelecido nas condições particulares para ressarcimento dos danos decorrentes da privação forçada do uso da viatura, durante o período da reparação ou do desaparecimento, em consequência da verificação de qualquer situação prevista na cláusula 3.º, a qual cláusula prevê o incêndio como causa do desaparecimento, e estabelece o pagamento de um valor diário até ao limite de trinta dias por anuidade.
19)  Nos termos do acordo celebrado entre o Autor e a antecessora da Ré, no capítulo epigrafado “automóvel de substituição” a cláusula 1.ª/1 garante ao segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro, em consequência de danos enquadráveis nos riscos de choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo, ou de incêndio, raio ou explosão, a atribuição, nas condições previstas na presente condição especial de uma viatura de substituição da classe C, F ou H, conforme definido nas condições particulares.
20) Nos termos do acordo celebrado entre o Autor e a antecessora da Ré, no capítulo epigrafado “automóvel de substituição” a cláusula 2.ª/2 prevê que em caso de perda total, os efeitos da cobertura cessam na primeira das seguintes datas: no dia em que for posta à disposição do segurado a indemnização garantida pela cobertura do risco em causa, quando a mesma tenha sido subscrita; no final do prazo limite definido na cláusula 3.ª desta condição especial.
21) Nos termos do acordo celebrado entre o Autor e a antecessora da Ré, no capítulo epigrafado “automóvel de substituição” a cláusula 2.ª/ 5 estabelece os limites do valor diário garantido pela Seguradora consoante a cilindrada seja até 1200, 1600 ou 2000, de, respectivamente, € 14,70, € 19,60 e € 31,20, não constando das condições particulares especificação da natureza do veículo de substituição previsto.
22) Nos termos do acordo celebrado entre o Autor e a antecessora da Ré, no capítulo epigrafado “automóvel de substituição” a cláusula 3.ª/1 estabelece que o período de privação, para efeitos da presente condição especial, não poderá ultrapassar o período máximo de quinze (15) dias por anuidade.
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. A questão colocada nos autos é a da responsabilidade da Ré seguradora pela indemnização decorrente do sinistro – incêndio – ocorrido no veículo a que respeitava o contrato de seguro.
É pacífico que era essa a natureza do acordo estabelecido por Autor e Ré em 3 de Março de 2016 titulado pela apólice 90002217308, nos termos do qual o Autor transferiu para a Ré o risco de ocorrência de danos no veículo, nomeadamente em razão de incêndio.
A condenação da Ré a pagar o valor do veículo deduzido o dos salvados, transitou em julgado. Tendo sido julgada improcedente a impugnação do despacho que indeferiu a ampliação do pedido, está o recurso limitado à apreciação da indemnização por privação de uso do veículo.
2.2. No que tange à privação de uso resulta do contrato que não foi estabelecida nas condições particulares qualquer quantia específica enquanto indicada como destinando-se ao ressarcimento da privação do uso do veículo. Ora, nos termos da cláusula transcrita em 18 dos factos assentes, apenas se poderia considerar convencionada a cobertura da privação do uso se tal tivesse sido estabelecido.
Nos termos do artigo 130.º, n.º 2 e 3, do RJCS, no seguro de coisas o segurador apenas responde pelo valor de privação de uso do bem se assim for convencionado.
Não basta, todavia, para análise adequada do que foi convencionado, atentar no regime estabelecido quanto ao valor de privação do uso do bem.
Seguindo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Julho de 2017[2], entendemos que estando convencionada a substituição do veículo que pereceu em razão do sinistro, pode encontrar-se nessa convenção das partes o fundamento contratual para indemnização pela privação do uso.
Lê-se no referido aresto:
Contudo, como entendeu a Relação, essa não é a única obrigação assumida pela R. no contrato de seguro sub judice. Tanto do facto provado 9 como dos demais factos dados como provados por documentos (cfr. art. 607º, nº 4, do CPC, aplicável em conjugação com os arts. 679º e 662º, nº 1, do CPC), resulta ter-se a R. obrigado contratualmente a, em caso de sinistro que inviabilize a utilização do veículo seguro, entregar um veículo de substituição ao A. O efeito prático-jurídico do pedido de compensação pela privação de uso de veículo é compatível com o entendimento da Relação de que a privação resulta do incumprimento desta obrigação contratual, prevista tanto para a hipótese de reparação do veículo automóvel (cláusula 3ª, nºs 1 e 2, do ponto 05, e cláusulas 2ª e 3ª do ponto 06, das Condições Especiais de fls. 76 e segs.; e Condições Particulares) como de perda total (cláusula 3ª, nº 3, do ponto 05 das Condições Especiais de fls. 76 e segs.).
Deste modo, diversamente da perspectiva da Recorrente, para que o seguro dos autos cubra a privação de uso de veículo não é necessário que esta privação se reporte directamente ao veículo sinistrado, referindo-se antes à privação de uso do veículo que devia ter sido entregue em sua substituição. O que se afigura inteiramente compatível com a previsão do art. 130º, nº 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril – que, tendo entrado em vigor a 1 de Janeiro de 2009, se aplica ao contrato de seguro dos autos, celebrado em 12/11/2010 – no qual se prevê que, no seguro de coisas, o segurador apenas responda pelo dano de privação de uso do bem se assim for convencionado.
No caso dos autos foi convencionada a entrega de uma viatura de substituição, conforme resulta das condições particulares, viatura de substituição a entregar na circunstância que é a dos autos de o sinistro ser um incêndio e mesmo em caso de perda total (cf. factos assentes em 19 e 20).
Em suma, a Ré estava obrigada a entregar uma viatura de substituição ao Autor e é em relação à privação do uso dessa viatura de substituição que se deve ter por convencionada a cobertura de privação de uso de veículo cuja perda total foi declarada, exactamente nos termos em que foi decidido no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a respeito de factualidade em tudo idêntica.
Conclui-se então que resulta do contrato a obrigação de a Ré substituir o veículo sinistrado e, não o fazendo, indemnizar a privação do uso do mesmo a que a substituição visava obstar, uma vez que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor – artigo 798.º do Código Civil – presumindo-se a culpa do devedor – artigo 799.º, n.º 1, do mesmo Código.
2.3. Como no acórdão que vimos seguindo, também nos importa seguidamente apurar se estão verificados danos decorrentes da privação do uso do veículo.
Em torno da questão da indemnização pela privação de uso de bem próprio[3], a jurisprudência acolhe-se a duas teses principais[4]. Uma primeira defende que a mera privação do uso determina o direito a indemnização, uma outra, oposta, entende que a indemnização apenas é devida se demonstrada a ocorrência de danos efectivos.
Podem ainda distinguir-se sub-espécies, intermédias, reconhecendo a verificação do dano se estiver provada a utilização anterior ou presumindo-o, sem prejuízo de o obrigado poder ilidir a presunção.
Vejam-se de entre os acórdãos mais recentes do Supremo Tribunal de Justiça os seguintes (indicando o sentido em que os consideramos):
- de 18 de Setembro de 2018, proferido no processo 108/13.2TBPNH.C1.S1 (José Rainho) entendendo necessária a prova de danos efectivos.
- de 25 de Setembro de 2018, proferido no processo 2172/14.8TBBRG.G1.S1 (Roque Nogueira), entendendo que a mera privação de um bem que era utilizado justifica a indemnização.
- de 29 de Outubro de 2020, proferido no processo 515/04.1TBGDM.P1.S1 (Tomé Gomes), entendendo que basta a privação do uso.
Entendemos que a privação de um bem, antes disponível no património do lesado para ser por ele utilizado, determina que se considere a ocorrência de uma diminuição daquele património, bastando à prova perfunctória ou de primeira aparência do dano, sem prejuízo da demonstração em contrário que caberá ao obrigado a indemnizar[5]. O mesmo é dizer que aderimos à tese de que basta a privação do uso para que se considere verificado um dano, sem prejuízo da possível demonstração de que, nas concretas circunstâncias de facto, tal dano não se verificou.
Voltando à situação concreta, nada mais se provou para além da privação do uso do veículo, o que não obsta a que se entenda verificado o indicado dano uma vez que não foi feita prova em contrário que demonstre verificada uma situação em que esse dano se não verifique, cuja excepcionalidade, repetimos, impõe que seja a Ré a prová-las, o que não fez[6].
Encontra-se assim verificado dano indemnizável em razão da privação de uso do veículo e do incumprimento de entrega de veículo de substituição.
2.4. Necessário é saber o valor do dano que assim se verifica, sabendo-se que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – artigo 562.º do Código Civil.
No caso dos autos, as próprias partes convencionaram qual era o valor máximo diário garantido pela Seguradora em sede de veículo de substituição:
21) Nos termos do acordo celebrado entre o Autor e a antecessora da Ré, no capítulo epigrafado “automóvel de substituição” a cláusula 2.ª/ 5 estabelece os limites do valor diário garantido pela Seguradora de, respectivamente, consoante a cilindrada seja até 1200, 1600 ou 2000, € 14,70, € 19,60 e € 31,20, não constando das condições particulares especificação da natureza do veículo de substituição previsto.
Das condições particulares consta a convenção de entrega de veículo de substituição, mas não as características do veículo a entregar. Tal omissão tem de ser suprida considerando que seria similar ao veículo sinistrado, o que indica o valor de € 31,20 diários.
Neste sentido ainda seguimos o aresto do SJT que já indicámos.
2.5. A determinação da indemnização exige também que se estabeleça o período a considerar.
Convencionalmente, esse período está limitado a um máximo de 15 dias por anuidade, caso a indemnização não seja disponibilizada mais cedo, caso em que se contará a esse momento.
O Autor pediu a indemnização desde a data do sinistro até à data do pagamento do valor venal do veículo, o que impõe se aprecie se pode considerar-se período superior ao convencionado, uma vez que nos encontramos em sede de responsabilidade contratual.
O artigo 153.º, n.º 1, da Lei 147/2015, de 9 de Setembro, estabelece que as empresas de seguros devem atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados.
Norma que, conjugada com a do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, - no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé – vem determinando posição consistente da jurisprudência no sentido de acolher a pretensão indemnizatória dos segurados em caso de dilação exagerada por parte da seguradora em regular o sinistro ou declinar a responsabilidade de o fazer.
Por todos veja-se o acórdão de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo 2604/13.2TBBCL.G1.S1 (Fernanda Isabel Pereira), justamente referente a uma situação de averiguação da responsabilidade envolvendo apuramento da dimensão criminal em processo penal.
Nele se refere:
Esta indemnização [devida a título de privação de uso por atraso injustificado na regularização do sinistro] tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.
E a sua atribuição não implica violação do designado princípio indemnizatório, de acordo com o qual a obrigação de indemnizar tem por finalidade reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso e não proporcionar um enriquecimento injustificado do lesado (cfr. Acórdãos deste Supremo Tribunal de 22 de Fevereiro de 2011 e de 24 de Abril de 2012, proferidos, respectivamente, nos processos nº 667/06.8TBOHP.C2.S1 e nº 32/10.0T2AVR.C1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj, e, bem assim, o já citado de 9 de Julho de 2015).
Com efeito, o princípio indemnizatório procura impedir que exista sobreposição de indemnizações, mas não obsta a que se cumulem indemnizações que se complementem por forma a abranger um leque mais vasto de danos do que aqueles que seriam ressarcidos unicamente com base na participação de um sinistro no âmbito de um contrato de seguro, no caso, facultativo (danos próprios).
A atribuição de indemnização a este título implica que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
1) negligência da seguradora no apuramento das condições de cobertura determinante de dilação injustificada da decisão relativa à participação do sinistro;
2) verificação de danos na esfera jurídica do segurado;
3) causalidade entre o atraso e os danos.
Contrariamente ao que sucede no âmbito do seguro obrigatório automóvel, não se encontra legalmente fixado um prazo para a seguradora regularizar o sinistro, face ao que a negligência deve ser apurada face às circunstâncias do caso e à luz dos deveres acessórios de cumprimento de boa fé.
O acidente ocorreu em 12 de Janeiro de 2019, a Ré em 30 de Janeiro colocou à disposição do segurado o montante de € 75.000,00, vindo após, por carta de 28 de Fevereiro, comunicar que declinava qualquer responsabilidade pela liquidação dos danos decorrentes do sinistro, por entender que o mesmo não ocorreu de forma aleatória, súbita e/ou imprevista.
Os tempos de resposta que se cifram em menos de dois meses até à comunicação de não assunção da obrigação de indemnizar, não indicam uma situação de demora na tomada de posição que permita ao segurado o exercício dos seus direitos. A demora resulta, ao invés da posição da Ré de não assunção da obrigação, implicando a necessidade de resolução do litígio por meios judiciais.
Ora, tão legítima é a posição de não assunção da responsabilidade como a decorrente necessidade de resolução judicial do litígio. Mas a não assunção de responsabilidade tem de fundar-se em razões de substância, não podendo bastar-se com meras suspeitas, sobretudo com suspeitas tardias face à anterior decisão de aceitar a responsabilidade.
Agindo com base em suspeitas de não aleatoriedade do sinistro que não tiveram qualquer corroboração, a acção da Ré no cumprimento dos seus deveres contratuais tem de considerar-se incumprimento contratual culposo que impõe que seja a Ré a suportar as consequências prejudiciais da demora, ao invés de as mesmas serem suportadas pelo Autor. Nas palavras do artigo 798.º, n.º 1, do Código Civil, seja a Ré responsável pelo prejuízo causado ao Autor.
Nem se diga que tal permite um alargamento da esfera de protecção irrestrito ou pouco delimitado, visto o apelo a deveres acessórios ou laterais decorrentes do contrato, fora já do seu núcleo essencial.
A crítica não colhe, a nosso ver, porque o dever de diligência no tratamento das participações está suficientemente positivado no citado artigo 153.º do RJCS, mesmo se não está estabelecido limite temporal específico como acontece no âmbito do seguro obrigatório.
Não colhe ainda porque os valores que se pretendem ver assegurados pelo típico contrato em causa, o de seguro, é o resultado de indemnidade do segurado o qual exige, em situações que tais, a inclusão dos danos decorrentes da acção da seguradora entre os danos indemnizáveis.
Sobre a problemática, permitimo-nos transcrição extensa do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Maio de 2014[7], por ser lapidar a argumentação a cuja luz nos acolhemos:
Não basta, porém, assentar na origem objectivada e imperativa dos deveres laterais de protecção, baseados no primado da boa fé na formação e execução dos contratos, para,  sem mais, se poder concluir que tais deveres acessórios integram, de forma amplíssima e irrestrita, o âmbito da generalidade das relações contratuais, de tal modo que lesão culposa da integridade pessoal ou patrimonial de uma das partes, por facto imputável à outra, deva subsumir-se necessariamente ao instituto da responsabilidade contratual. Ou seja: não pode razoavelmente considerar-se que está subjacente à generalidade das relações contratuais, independentemente dos seus fins específicos e da funcionalidade e natureza das prestações convencionadas, um dever contratual irrestrito de protecção da pessoa e património das partes, envolvendo, nomeadamente, a preservação e consolidação de uma boa imagem pública do outro contraente – de tal modo que a lesão destes direitos absolutos deva, em regra, gerar responsabilidade contratual por todos os danos ocasionados.
Saliente-se que, num sistema jurídico como o vigente à face do CC português, em que a cláusula geral do art. 483º assegura praticamente, de forma integral e sem lacunas, a tutela efectiva dos direitos absolutos, só se justificará o reforço da tutela desses direitos através da chamada à colação dos mecanismos típicos da responsabilidade contratual ( ampliação drástica do prazo prescricional, presunção de culpa a cargo do devedor, responsabilidade amplíssima deste por actos dos seus auxiliares,….) em situações bem delimitadas, em que se mostre materialmente justificada uma mais intensa tutela do direito ( absoluto ) à integridade pessoal e patrimonial de cada um dos contraentes , trazido para o perímetro do contrato através da aplicação da figura dos deveres laterais de protecção e da responsabilidade contratual que corresponde à sua violação.
A tutela reforçada dos direitos absolutos de cada um dos contraentes não pode, assim, fundar-se na criação irrestrita pelo intérprete e aplicador do direito de deveres laterais de protecção da integridade pessoal e patrimonial de um dos contraentes, aplicáveis à generalidade dos contratos, de modo a abranger o ressarcimento de todos os danos decorrentes da lesão do direito absoluto, quando a ligação ao contrato e aos seus fins se configure como  meramente ocasional ou circunstancial - implicando antes uma cuidada  indagação e ponderação acerca da natureza, teleologia e funcionalidade de cada relação contratual , só se justificando inserir no perímetro de certa  relação contratual complexa – sujeitando-a, consequentemente, à disciplina da responsabilidade contratual – a tutela dos direitos absolutos de uma das partes quando tal for imposto pelo próprio fim do contrato e pela natureza específica das prestações acordadas ou quando a relação contratual tenha originado um risco particular e acrescido para uma das partes.
Saliente-se que grande parte dos casos que a doutrina vem configurando como de responsabilidade contratual pela violação de um dever lateral de protecção da integridade pessoal e patrimonial de um dos contraentes têm precisamente a ver com a existência de perigos específicos das instalações ou locais onde o contrato irá ser executado, visando a respectiva previsão alcançar uma tutela acrescida da integridade do contraente mais vulnerável aos riscos da empresa da contraparte: é o que sucede com a obrigação de um dos contraentes de – para tutela da integridade do utente/consumidor – assegurar as providências adequadas à segurança do estabelecimento que utiliza na prossecução da sua actividade, em que se insere a relação contratual em causa, ou dos instrumentos, dotados de particular perigosidade, que utiliza como instrumento para cumprir da prestação principal a que se vinculou ( ex.: danos causados em utentes de transportes públicos , decorrentes de riscos específicos do cais de embarque).
O mesmo ocorre nos casos em que a execução do contrato implica para uma das partes o domínio de facto sobre determinada coisa, ficando, consequentemente, a parte particularmente  obrigada à respectiva guarda onerada com especiais deveres respeitantes à prevenção de danos, quer na própria coisa, objecto do contrato, quer na esfera de todos os que com ela possam vir a contactar.
Noutras situações, o dever especial de protecção da integridade do outro contraente não resulta dos riscos típicos e acrescidos, associados à empresa ou estabelecimento, ou à guarda ou domínio de uma coisa ou objecto, estando antes ligado às típicas prestações emergentes da relação contratual em causa e a uma privilegiada posição de garante imposta a uma das partes, envolvendo um específico dever de evitar a ocorrência de determinadas situações lesivas e danosas para a contraparte – como ocorre em numerosos contratos de prestação de serviços .
No caso dos autos, a recusa de responsabilidade implica uma violação de deveres acessórios que viola o comando de regência pela boa-fé e gera uma autónoma fonte de responsabilidade pelos danos causados, diversa da mera obrigação de pagamento de juros moratórios.
Entendemos por isso que deve considerar-se todo o período desde a data do sinistro até ao pagamento do montante de € 75.000,00 em que a Ré foi condenada.
Como se lê no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, embora numa situação de paralelo processo de natureza penal:
Efectivamente, a ré não logrou provar que as suas suspeitas relativamente a uma eventual actuação fraudulenta do autor eram fundadas, como decorre do despacho de arquivamento exarado no processo de inquérito desencadeado pela sua queixa-crime.
A apresentação de queixa-crime que venha a revelar-se, posteriormente, inconsequente no desenrolar do processo de inquérito não é susceptível de libertar a ré seguradora do cumprimento da sua obrigação contratual em tempo. Com efeito, o arquivamento com base na falta de prova sobre a actuação ilícita imputada pela ré ao autor retira fundamento ao incumprimento da sua prestação no prazo contratual ou legalmente fixado para o efeito.
Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.
Entendemos que assim se encontra verificado o primeiro dos indicados requisitos.
O segundo foi anteriormente apreciado e o terceiro é manifesto uma vez que a privação do uso ocorreu em razão do não pagamento da indemnização.
Procede a pretensão de indemnização pela privação do uso à razão diária de € 31,20 desde o dia do sinistro, exclusive, até ao do pagamento, inclusive.
2.6. Pede ainda o Autor juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.
O montante dos créditos em causa apenas se fixa/liquida com o trânsito em julgado da decisão que os julgue procedentes.
No entanto, existe na nossa ordem jurídica norma especial que fixa como momento da constituição em mora em tais casos, a do artigo 805º, nº 3, do Código Civil, uma vez que a citação (ocorrida em 6 de Maio de 2019) tem de entender-se como interpelação judicial.
Atento o disposto no artigo 804º, nº1, do Código Civil, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
Indemnização que, em obrigações pecuniárias como a dos autos, corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora - cfr. artigo 806º, nº 1, do Código Civil - dispondo o nº 2 da norma citada que, na ausência de convenção, os juros devidos são os legais.
A taxa legal aplicável é a prevista no artigo 559.º do Código Civil e na Portaria 291/2003, de 8 de Abril, a saber, a de 4%, sem prejuízo de alteração legal dessa taxa.

IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
a) Confirmar o despacho de 23 de Novembro de 2020 que não admitiu a modificação objectiva da instância requerida pelo Autor no requerimento sob a ref.ª 37209624, despacho proferido em audiência de julgamento documentada na acta com a ref.ª 146585054;
b) Manter a decisão de facto;
c) Alterar a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido de pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo e condenar a esse título a Ré, SEGURADORAS UNIDAS, SA, a pagar ao Autor,, o montante diário de € 31,20 (trinta e um euros e vinte cêntimos) desde 13 de Janeiro de 2019 até ao pagamento do montante de € 75.000,00 em que foi condenada, acrescido de juros à taxa legal indicada desde a citação até integral pagamento, improcedendo no mais a apelação.
Custas pelo Autor e pela Ré na percentagem do respectivo decaimento que se fixa, respectivamente, em 85% (oitenta e cinco por cento) e em 15% (quinze por cento).

Lisboa, 04-11-2021
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Manuel Rodrigues
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[1] Mariana França Gouveia in O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante  procura da flexibilidade processual, consultado em http://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.pdf.
[2] Processo 188/14.3T8PBL.C1.S1 (Maria da Graça Trigo).
[3] Veja-se quanto aos termos do debate Abrantes Geraldes in Temas da Responsabilidade Civil – Indemnização do dano da privação do uso, volume I, Almedina, 3.ª edição.
[4] Seguimos anterior acórdão em que intervieram a ora relatora e o Ex.mo Primeiro Adjunto, proferido no processo 178/19.0 T8ALM.L1.
[5] Assim, o acórdão relatado pelo Ex.mo Segundo Adjunto de 27 de Setembro de 2018, proferido no processo 80/14.1T8ALQ.L1-6.
[6] Para sabermos se um facto é constitutivo ou impeditivo não se pode olhar ao facto isoladamente considerado, mas à sua conexão com o direito invocado ou com a pretensão formulada (cf. Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, p. 306, nota 4).
[7] Proferido no processo 600/11.3TVLSB.L1.S1 (Lopes do Rego).