Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
833/10.0PAMTJ-A.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: REGISTO DE VOZ E IMAGEM
INDÍCIOS
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
MEIOS DE PROVA
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº O registo de voz e imagem, por qualquer meio e sem consentimento do visado, efectuado nos termos dos artigos 269.º, n.º1, al. f), do Cód. Proc. Penal e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, na fase de investigação do processo comum, depende de autorização do juiz;
IIº Com essa diligência de recolha de prova, agride-se o direito à imagem, constitucionalmente garantido e protegido, cujo conteúdo integra o direito ao livre desenvolvimento da personalidade individual, mas não a “privacy”, aquela área nuclear e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares;
IIIº Componente essencial do princípio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio;
IVº À semelhança do que vem acontecendo em relação à utilização de sistemas de videovigilância, deve prevalecer o entendimento de que o registo de voz e imagem, como meio idóneo para captar a prática de factos passíveis de serem considerados como ilícitos penais e, nos termos da lei processual penal, servir de meio de prova, não atinge, de forma intolerável, o núcleo essencial do direito à privacidade de cada um;
Vº Ponto é que tal registo se revele idóneo para conseguir o objectivo proposto, necessário, por não existir outro meio igualmente capaz de atingir esse objectivo e menos oneroso para o direito fundamental, e não excessivo relativamente às finalidades para que é produzido;
VIº A admissibilidade do registo de voz e imagem não depende da existência de fortes, ou sequer suficientes, indícios da prática de um crime do catálogo, bastando que haja suspeitas da prática do crime e de quem é ou são os seus agentes, tal como para as escutas telefónicas, pois que, tratando-se de um meio de obtenção de prova, visa justamente a recolha de indícios probatórios;
VIIº Para que possa ser autorizada, a diligência não tem que ser imprescindível ou indispensável (diferentemente do que acontece para as escutas telefónicas, em que a lei exige que este meio de obtenção de prova seja “indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”), sendo a lei menos exigente ao impor como requisito a sua “necessidade para a investigação”;
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório

Nos autos de processo comum, em fase de inquérito, que, sob o n.º …, correm termos nos Serviços do Ministério Público na Comarca de …, o Magistrado titular do processo requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, al. a), e 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (alterada pela Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril), e 187.º, 188.º e 269.º, n.º 1, al. f), do Cód. Proc. Penal, autorização judicial para que fosse efectuado o registo de voz e imagem por qualquer meio e sem consentimento dos indivíduos visados, suspeitos de tráfico de estupefacientes.
Porém, o Sr. Juiz de instrução indeferiu tal requerimento, com os fundamentos explanados no despacho proferido a fls. 64 (reproduzido a fls. 93-94 destes autos).
Inconformada, a digna Magistrada do Ministério Público recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos que expõe na extensa, mas mui douta, motivação, de que extraiu as seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. A palavra e a imagem tratam-se de um verdadeiro direito à autodeterminação da imagem exterior.
2. O regime jurídico do registo de voz e imagem prevê que este meio de obtenção de prova exista no âmbito de uma investigação criminal em curso, pela eventual prática de um dos crimes do catálogo, apelando para um critério de necessidade.
3. Os pressupostos materiais de aplicação deste regime legal são a prévia autorização ou ordem do juiz a produção de registos de voz e de imagem, sem consentimento do visado, fazendo aplicar as formalidades previstas no artigo 188.º do Código Processo Penal, aos registos obtidos.
4. A Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, não prevê como pressuposto da sua aplicação a indiciação, sequer suficiente, da prática de um dos crimes do catálogo de aplicação.
5. No direito positivo português o processo penal formal inicia-se com a notícia do crime, que dá início à fase de inquérito, que visa o esclarecimento da dúvida social surgida com a notícia do crime.
6. A averiguação analítica da notícia do crime apresentada, em ordem à verificação do respectivo fundamento, exige a disposição de ampla capacidade investigatória para a adequada promoção da acção penal.
7. Ainda de acordo com as opções político-constitucionais vigentes, a estrutura acusatória do processo determina a necessária destrinça funcional entre o Ministério Público, que dirige o inquérito, e o juiz de instrução, que deve ser o terceiro garante de liberdades.
8. Em consequência, deve o juiz de instrução ser alheio à definição da estratégia investigatória.
9. Nesta caso foi, por modo legal admissível, adquirida a notícia do crime, cuja indagação e desenvolvimento factual importa concretizar, ultrapassando as dificuldades decorrentes da natureza e circunstâncias concretas de ocorrência do crime participado.
10. O órgão de polícia criminal participante verificou o alarme social decorrente da indignação colectiva e da perda de confiança na validade e eficácia das normas, por força do exercício das suas funções.
11. Acresce que esta não é a única fonte de conhecimento policial, porquanto as Brigadas de Investigação Criminal do … conhecem os suspeitos visados por força do exercício das suas funções, em processos anteriores.
12. Inexistem, neste caso, conversas informais porque o órgão de polícia criminal não recolheu declarações dos suspeitos, apenas recolheu informações junto da população residente no centro urbano da cidade do …, local referenciado para a prática dos factos participados.
13. A inquirição de testemunhas e eventuais apreensões só poderão ter lugar em passo posterior da investigação, em ordem ao seu sucesso.
14. Ou seja, os resultados de investigação que se pretendem com a aplicação da diligência de registo de voz e imagem não são passíveis de alcançar através do recurso a outros meios de produção de prova, representando aquela diligência como meio insubstituível, idóneo, proporcional, adequado e necessário na perseguição deste crime e sua prova.
15. Isto sem se impor que a realização do registo de voz e imagem dependa da existência prévia de outra prova indiciária do crime participado, em respeito à estrutura acusatória do processo penal.

Pretende assim o recorrente que o despacho impugnado seja revogado e substituído por outro que autorize “a produção de registo de voz e imagem, por qualquer meio, sem consentimento dos suspeitos visados A…, A… e I…”.
                                                             *
O Sr. Juiz de instrução sustentou a sua decisão.
                                                                       *
Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso, salientando que, ao contrário do entendimento manifestado pelo M.mo JIC, a lei não exige a imprescindibilidade do meio de prova, como acontece, por exemplo, com a quebra do sigilo profissional, como requisito da diligência (fls. 107-108). 
                                                                       *
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
                                                                       *
O Ministério Público pretende obter autorização judicial para registo de voz e imagem de três indivíduos em relação aos quais existem suspeitas de que se dedicam ao tráfico de estupefacientes.
Por isso, definido pelas conclusões da motivação (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj), o objecto do recurso centra-se nas questões relacionadas com os requisitos de admissibilidade desta diligência de recolha de prova.
Concretamente, tratando-se de uma diligência de investigação que restringe direitos fundamentais com tutela constitucional, há-de respeitar os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade (art.º 18.º, n.º 2, da Constituição).
Além disso, a lei ordinária estabelece requisitos formais e substantivos e o que aqui se questiona é se exige: 
§ que existam fortes indícios (como entende o Sr. Juiz de instrução) ou, pelo menos, indícios suficientes da prática de um crime do catálogo e
§ se o registo de voz e imagem está submetido a uma cláusula de imprescindibilidade ou indispensabilidade (como se defende no despacho recorrido) ou se é bem menos exigente (como defende o Ministério Público).

II - Fundamentação:
Conhecidos os motivos da irresignação do Ministério Público face à decisão judicial, importa conhecer as razões que levaram o Sr. Juiz de instrução a não acolher a sua pretensão.
Eis a reprodução do despacho impugnado:
Da captação de voz e imagem
Promove o Ministério Público a fls. 45 e ss., que seja autorizado o registo de imagens aos suspeitos A…, A… e I….
O registo de voz e imagem encontra-se previsto no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01, que estabelece um regime de autorização e de controlo judicial quanto a tal captação.
Assim, só em sede de processo penal é admissível a limitação do direito fundamental à imagem e à comunicação privada, e apenas quanto aos crimes tipificados na lei, no artigo 1.º do referido diploma legal (“sistema de catálogo”).
Importa, assim, proceder à ponderação dos valores e interesses em presença: por um lado, a limitação de direitos fundamentais que o registo de voz e imagem implica e, por outro, os interesses da investigação criminal e realização da justiça.
Analisando o presente inquérito, constata-se que o mesmo se limita ao auto de notícia de fls. ¾, que documenta informações obtidas através de conversas informais com pessoas não identificadas.
Da prova documental junta aos autos, resulta o CRC dos denunciados, seus elementos civis identificativos, registo de automóveis e fichas biográficas – donde, pela sua natureza, não se infere uma actividade (actual) de venda de estupefacientes.
Ora, nos autos não foi observada qualquer actividade de tráfico de estupefacientes, inexiste qualquer auto de apreensão de estupefaciente a indivíduo(s) observado(s) a adquirir estupefaciente aos suspeitos em questão, nem nenhuma testemunha foi inquirida nos presentes autos.
Na verdade, e em termos concretos, poucos são os elementos probatórios recolhidos até ao momento que permitam concluir fortemente pela existência da prática de um crime do catálogo previsto no artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, bem como pela imprescindibilidade da diligência ora requerida com a inerente limitação do direito constitucional à imagem e à comunicação privada.
Assim, em face dos escassos elementos obtidos pela investigação até ao momento afigura-se prematura, nesta fase, autorizar a diligência requerida pelo Ministério Público.
Pelo exposto, indefere-se o requerido a fls. 50”. 
Conforme decorre dos artigos 262.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 1.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto (a designada Lei de Organização da Investigação Criminal), na nossa lei processual penal, o inquérito abrange as diligências destinadas a investigar a existência de um crime, com vista a determinar o seu agente ou agentes, e a respectiva responsabilidade, descobrindo e recolhendo as provas que permitam decidir sobre a acusação.
Sempre que haja notícia de um crime (ou melhor, de factos susceptíveis de constituir crime), inicia-se um inquérito que se destina, justamente, à descoberta, recolha e, sempre que tal for possível, à verificação e comprovação dos factos que condicionam a aplicação posterior do direito, verificação que, para efeitos de prosseguimento do processo criminal, há-de consistir na sua demonstração feita por meio de provas. A procura e recolha das provas e, essencialmente, a conservação de todos os elementos probatórios que forem apurados constitui a finalidade precípua do inquérito, com vista à dedução da acusação e posteriormente à prova directa, em julgamento, dos factos que integram essa acusação, de forma a desembocar na decisão condenatória.
Nesta fase obrigatória (a fase de investigação) do processo comum, a aquisição da prova incumbe ao dominus do inquérito, o Ministério Público, mas a realização de determinadas diligências probatórias, ou são realizadas pelo juiz de instrução, ou têm que ser, previamente, ordenadas ou autorizadas por este.
Assim acontece com o registo de voz e imagem sem consentimento do visado que, nos termos dos artigos 269.º, n.º 1, al. f), do Cód. Proc. Penal e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, depende de autorização do juiz.
Está bom de ver que, com essa diligência, agride-se a esfera de realização da personalidade individual, pois implica uma intromissão na vida privada que pode contender com o direito à privacidade constitucionalmente garantido e protegido.
A luta contra a criminalidade organiza-se tipicamente através da limitação de direitos fundamentais.
Aliás, a protecção dos direitos e garantias só é pensável e exequível à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição.
A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico, mas o Estado, como titular que é do ius puniendi, também está interessado em que só os culpados de actos criminosos sejam punidos (satius esse nocetem absolvi innocentem damnari).
É quase um lugar-comum dizer-se que a verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos.
Componente essencial do princípio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio.
Em contraponto, como acentua a doutrina (Manuel da Costa Andrade, “Sobre as proibições de prova em processo penal”, Coimbra, 1992, p. 117) existem “limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal”, que decorrem do reconhecimento de que “quando em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa – em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima –, nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse – se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de direito – no eficaz funcionamento do sistema de justiça penal” (Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais”, in Para Uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, p. 207).
Iniludível é, pois, a existência de uma tensão incontornável entre “dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis da pessoa humana” (Castanheira Neves, “Sumários de Processo Criminal”, 1967-1968).
Como em adequada síntese refere João Conde Correia[1]: “A máxima protecção dos direitos fundamentais colocaria barreiras intransponíveis à descoberta da verdade e, em consequência, à realização da justiça, e a busca da verdade a todo o custo eliminaria os mais elementares direitos, conduzindo a uma mistificação da justiça. Este conflito revela-se, em toda a sua amplitude, de forma exponencial, no domínio dos meios de prova e de obtenção da prova. Com efeito, o interesse punitivo do Estado e a plêiade de métodos, tendentes a determinar a existência de um facto ilícito, a punibilidade do seu autor e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, dada a natureza das coisas, podem afrontar, de forma grave e irreversível, os direitos fundamentais inerentes a um ser livre e digno”.
Sob a epígrafe “Outros direitos pessoais” (e depois da consagração da tutela do direito à vida e do direito à integridade pessoal) a Constituição da Republica consagra (art. 26.º) um conjunto de direitos fundamentais que protegem “um círculo nuclear da pessoa, correspondendo, genericamente, a direitos de personalidade”[2].
Entre esses direitos, está o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, cuja tutela se projecta em sede processual penal, impondo limites à valoração de provas que representem uma abusiva intromissão em tal esfera – designadamente quando seja “efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34.º, n.ºs 2 e 4, da Constituição), quando desnecessária ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cfr. art.º 18.º, n.ºs 2 e 3)” – vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 381 e ss.).
Não estabelecendo o texto constitucional o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade, tem a doutrina procurado a sua concretização, assinalando que goza dessa reserva “(a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Cód. Civil, art. 80º)” -  Gomes Canotilho e Vital Moreira, Ob. Cit., 467, ou que está em causa “o interesse em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação ou, simplesmente, a circulação de informação sobre a pessoa, isto é, sobre factos, comunicações ou situações relativo[s] (ou próximos) ao indivíduo, e que previsivelmente ele considere como íntimos, confidenciais ou reservados” (Paulo Mota Pinto, “A Protecção….”, 504 3 segs.) ou, ainda, que “o direito fundamental à reserva absoluta de intimidade da vida privada (…) só abrange aqueles domínios que, sendo emanação da personalidade humana, expressam valores ou opções do foro íntimo que não têm de ser conhecidas relacionalmente por encarnarem valores de dignidade do Homem enquanto Homem, visto como dono exclusivo do seu corpo, do seu espírito e das suas manifestações segundo a concepção civilizacional vigente (opções filosóficas, religiosas, políticas, sexuais, etc.)” – Benjamim Rodrigues, “O sigilo bancário e o sigilo fiscal, in Sigilo Bancário, Lisboa, 1997, p. 104.
Neste âmbito, sobretudo a propósito da extensão e intensidade da intromissão na esfera pessoal íntima, está, também, muito divulgada a chamada doutrina dos três níveis ou três esferas, que distingue três áreas na vida privada: “Em primeiro lugar, está a esfera da intimidade, área nuclear, inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses. (…) Para além deste núcleo central da intimidade, estende-se a área normal da vida privada, também ela projecção, expressão e condição do livre desenvolvimento da personalidade ética da pessoa. E, nessa medida, erigida em autónomo bem jurídico pessoal e como tal protegido tanto pela Constituição como pelo direito ordinário. Trata-se, porém (...) de um bem jurídico que não pode perspectivar-se absolutamente isolado dos compromissos e vinculações comunitárias e, nessa medida, inteiramente a coberto da colisão e ponderação dos interesses. O seu sacrifício em sede de prova estará, por isso, legitimado sempre que necessário e adequado à salvaguarda de valores ou interesses superiores, respeitadas as exigências do princípio da proporcionalidade. (...) Em terceiro e último lugar, é possível referenciar a extensa e periférica vida de relação em que, apesar de subtraída ao domínio da publicidade, sobreleva de todo o modo a funcionalidade sistémico-comunitária da própria interacção (...)” (Manuel da Costa Andrade, “Sobre as proibições de prova em processo penal”, 94-96)[3].
A nível jurisprudencial, cumpre destacar o labor do Tribunal Constitucional que, em várias ocasiões, teve oportunidade de se pronunciar sobre a noção de reserva da intimidade da vida privada, como aconteceu no Acórdão n.º 128/92 (DR, II, de 24.07.1992), em que se considerou estar em causa “o direito de cada um ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico. (...) Neste âmbito privado ou de intimidade está englobada a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou o domicílio), e bem assim os meios de expressão e comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.). Este direito à intimidade ou à vida privada – este direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular – compreende: a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade; b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado [...]”.
Mas se o reconhecimento de um direito geral de personalidade que garante ao indivíduo a conformação da sua vida privada, se o reconhecimento da reserva da vida privada como condição de integridade e da dignidade da pessoa é algo de que não se duvida, também não é possível deixar de afirmar a relevância da imposição de limites que podem decorrer, em especial, de um interesse geral prevalecente da comunidade, porquanto, se o indivíduo, como cidadão, vive inserido numa comunidade e entra, através da sua conduta, em relação comunicativa com os outros, pode, com isso, tocar a esfera pessoal dos seus concidadãos e os interesses da comunidade. Ou seja, o direito que aqui se analisa não pode configurar-se como um direito ilimitável e irrestringível perante outros direitos ou interesses que se tenham por legítimos porque o indivíduo humano, vivendo em comunidade, tem também deveres fundamentais de solidariedade para com os outros e para com a sociedade, obrigando-se a respeitar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos dos outros e à realização dos valores comunitários.
O primado da esfera íntima, face às necessidades da justiça penal na procura da verdade, tem de recuar quando, à luz do princípio de proporcionalidade, a ponderação com o significado do direito fundamental de respeito pela dignidade humana e o livre desenvolvimento da personalidade faz emergir prevalecentes necessidades da justiça criminal, que exigem a admissibilidade de produção e valoração do meio de prova.
O direito à imagem é um direito constitucionalmente protegido no citado n.º 1 do artigo 26.º da Constituição e, de acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira (Ob. Cit., 467) “tem um conteúdo assaz rigoroso, abrangendo, primeiro, o direito de definir a sua própria auto-exposição, ou seja, o direito de cada um de não ser fotografado, nem de ver o seu retrato exposto em público sem seu consentimento (…); e, depois, o direito de não o ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel”.
Sendo este o conteúdo do direito à imagem, pode considerar-se que integra o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, mas seguramente não integra a “privacy”, aquela área nuclear e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares.
Á semelhança do que vem acontecendo em relação à utilização de sistemas de videovigilância, deve prevalecer o entendimento de que o registo de voz e imagem, como meio idóneo para captar a prática de factos passíveis de serem considerados como ilícitos penais e, nos termos da lei processual penal, servir de meio de prova, não atinge, de forma intolerável, o núcleo essencial do direito à privacidade de cada um.
Ponto é que tal registo se revele idóneo para conseguir o objectivo proposto, necessário, por não existir outro meio igualmente capaz de atingir esse objectivo e menos oneroso para o direito fundamental, e não excessivo relativamente às finalidades para que é produzido.
Como se referiu logo de início, existe a suspeita de que três indivíduos vêm praticando actos de tráfico de estupefacientes em várias zonas da cidade de …, nomeadamente nas traseiras da igreja, no Largo …, na R… e na R…. 
Sendo, consabidamente, o tráfico de estupefacientes um crime de grande danosidade social devido ao leque de consequências que resulta desta actividade criminosa, a compressão do referido direito que implica a utilização daquele meio de obtenção de prova não pode considerar-se desproporcionada. Também não pode ser considerada desnecessária, pois constitui um meio de prova documental de grande relevância para a prova do crime. No fundo, trata-se de documentar, em fotografia ou em filme, situações de flagrante delito. Ora, sendo conhecidas as cautelas usadas pelos traficantes de estupefacientes, as estratégias e os meios que utilizam para se furtarem ao controlo policial, a rapidez e a dissimulação na concretização dos actos de tráfico e a circunstância de, não raro, conhecerem os agentes policiais e as viaturas que utilizam, está bom de ver que o registo de voz e imagem é, tal como as escutas telefónicas, um instrumento de investigação particularmente adequado e eficaz.     
Por outro lado, é um meio de recolha de prova particularmente idóneo, pois está sujeito a controlo judicial e é o juiz de instrução que procede à avaliação dos elementos recolhidos e decide se são relevantes para a prova.
O Sr. Juiz de instrução, para indeferir o requerimento de autorização de registo de voz e imagem formulado pelo Ministério Público, considerou que:
§ face à escassez dos elementos probatórios recolhidos, não é possível “concluir fortemente pela existência da prática de um crime do catálogo previsto no artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002” e
§ não é possível concluir pela “imprescindibilidade da diligência ora requerida com a inerente limitação do direito constitucional à imagem e à comunicação privada”.

A Magistrada do Ministério Público, na motivação do recurso interposto, evidenciou a sem razão do Sr. Juiz, mas isso não foi suficiente para fazer com que reconsiderasse a sua posição e reparasse a decisão.
O artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, estabelece o seguinte:

1 - É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.
2 - A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos.
3 - São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.

Daqui decorre, com meridiana clareza, que a admissibilidade do registo de voz e imagem não depende da existência de fortes indícios da prática de um crime do catálogo.
Como bem faz notar o recorrente, “tratando-se de um regime de recolha de prova, nem tal poderia ser legalmente exigido, sob pena de contrariar, ou submeter a uma inversão intolerável, a lógica da reconstrução material da verdade factual levada a cabo pela investigação criminal”.
Á semelhança do que acontece para as escutas telefónicas, basta que haja suspeitas da prática do crime (de catálogo) e de quem é ou são os seus agentes.
No caso, essas suspeitas são bem patentes: os visados são três indivíduos que residem no mesmo prédio, não têm actividade lícita conhecida e um deles já foi condenado, por duas vezes, em pena de prisão, que cumpriu, por tráfico de estupefacientes (e sabe-se como é elevada a taxa de reincidência no tráfico de drogas). O órgão de polícia criminal adquiriu a notícia da actividade criminosa através de informações transmitidas por pessoas que quiseram manter-se anónimas, atitude que é corrente nestas situações e que se compreende. O órgão de polícia criminal que subscreve o auto de notícia informa que apurou terem fundamento as informações transmitidas.
Não se ignora que existe o perigo, para que adverte Manuel da Costa Andrade (“Bruscamente no verão passado”, a reforma do CPP – observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, Revista de Legislação e Jurisprudência 137.º, pág. 350) de se pretextarem crimes do catálogo só para, por esse meio, poder investigar-se crimes para os quais não poderia recorrer-se ao registo de voz e imagem (embora o autor se refira às escutas telefónicas).
Nada permite afirmar que assim acontece neste caso.
Quanto à “imprescindibilidade da diligência” a que alude o Sr. Juiz de instrução no despacho em crise, como bem salienta o Ex.mo PGA nesta Relação, não é isso que a lei exige como requisito de admissibilidade da diligência de recolha de prova, mas sim a sua necessidade para a investigação.
Para as escutas telefónicas é que a lei exige que a diligência seja “indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter” (art.º 187.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal). 
Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 527-528, «O catálogo legal do artigo 6.º da Lei n.º 5/2002 é mais apertado do que o do artigo 187.º, n.º 1, do CPP, mas o crivo da “necessidade para a investigação” é mais lasso do que o crivo da “indispensabilidade para a descoberta da verdade” do CPP».
Concluindo, não há razão alguma para se negar autorização para o pretendido registo de voz e imagem, pelo que o despacho recorrido não poderá manter-se.

III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que autorize “a produção de registo de voz e imagem, por qualquer meio, sem consentimento dos suspeitos visados A.., A… e I”.

Sem tributação.
 (Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).   
                                                                         
Lisboa, 18 de Janeiro de 2011

Neto de Moura
Alda Tomé Casimiro
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[1] Revista do Ministério Público, n.º 79, 45
[2] Paulo Mota Pinto, “A Protecção da vida privada e a Constituição”, Boletim da Faculdade de Direito Coimbra, 2000, p. 155.
[3] No acórdão n.º 442/2007, o Tribunal Constitucional reconheceu que “… é possível e justificado estabelecer graduações diferenciadoras entre zonas da vida privada, consoante a sua maior ou menor ligação aos atributos constitutivos da personalidade. Ainda que se deva evitar as sectorizações rigidamente tipificadoras, é forçoso admitir que as exigências de inviolabilidade da esfera privada não se fazem sentir de forma “plana” e uniforme, no interior da área de tutela. O que tem reflexos de regime, sobretudo no que diz respeito ao apuramento da gravidade da lesão e dos seus efeitos danosos, para fixação de montantes indemnizatórios e para a realização adequada da tarefa de ponderação com outros interesses constitucionalmente protegidos”.