Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3877/2007-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
FORO CONVENCIONAL
CONSUMIDOR
RETROACTIVIDADE
INTERESSE PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O Decreto-Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril constitui resposta do Estado para obviar a que as acções de cobrança de dívida, de natureza massificada sejam instauradas quase sempre em Lisboa e Porto, cidades onde as empresas têm maioritariamente as suas sedes.
II- O interesse público nas alterações introduzidas no plano da competência territorial sobrepõe-se naturalmente aos interesses particulares das entidades que integraram, nos respectivos contratos de financiamento, cláusula geral estipulando o foro competente territorialmente para a resolução dos litígios emergentes desses contratos
III- A regra geral fixada no artigo 74.º e 110.º do Código de Processo Civil proporciona um uso mais racional dos meios, possibilitando uma distribuição das acções por todo o território nacional para além de potenciar o exercício de defesa há muito tempo reclamado no âmbito da defesa dos consumidores

(SC)
Decisão Texto Integral:
I – O Banco […]SA,
agravou do despacho que julgou territorialmente incompetente os Juízos Cíveis de Lisboa para processar uma acção declarativa de condenação no pagamento de quantia certa intentada contra
(M) […]
e
(H) […]
residentes em Aveiro.

Considera a agravante que, ao aplicar ao contrato anteriormente celebrado o regime que decorre do Dec. Lei nº 14/06, de 26-4, o despacho recorrido violou o disposto nos arts. 5º e 12º do CC. Além disso, ao não considerar válida a escolha convencional do foro pelas partes, ao abrigo do disposto no art. 110º do CPC, incorreu em inconstitucionalidade por violação dos princípios da adequação, exigibilidade e proporcionalidade e por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança.

Não houve contra-alegações.

II – As questões expostas pela agravante são as mesmas que já integraram o objecto de numerosos recursos de agravo apreciados nesta Relação de Lisboa. No mesmo sentido foi o acórdão que subscrevemos no âmbito do processo nº 1936-06, em 13-3-07.

A resposta que em tais acórdãos foi dada foi no sentido de negar provimento aos agravos.

Não vemos razões para modificar o sentido do voto. Os argumentos que o agravante aduz são os mesmos que vem repetindo e que encontram maioritária rejeição na jurisprudência da Relação de Lisboa.

Por tais motivos, limitar-nos-emos a uma breve fundamentação da decisão final que, como decorre do exposto, irá no sentido da negação de provimento ao agravo.

III – A acção em cujo âmbito foi proferido o despacho agravado tem como objecto o incumprimento pelo réu de um contrato de crédito ao consumo celebrado em que a A. interveio como mutuante. Trata-se, aliás, de mais um processo, entre centenas de outros, interpostos pela agravante ou por outras entidades que se dedicam ao financiamento para aquisição a crédito, que visa obter a condenação no cumprimento de obrigações pecuniárias.

Como reflexo da estratégia de tais entidades, os tribunais cíveis dos grandes centros urbanos, com especial destaque para os das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, onde geralmente têm a suas sedes, foram “colonizados” por acções de cobrança de dívidas, de natureza massificada e a que, com muita frequência, nem sequer subjaz qualquer litígio. Trata-se, na generalidade dos casos, de situações em que simplesmente se verifica o incumprimento espontâneo das obrigações assumidas pelos mutuários.

Ainda assim, pese embora o reduzido grau de litigiosidade, o número absoluto e relativo de tais acções acaba por absorver uma grande parte dos recursos humanos e materiais na área da administração da Justiça postos pelo Estado à disposição dos cidadãos e das empresas, impedindo ou dificultando uma resposta célere e eficaz noutros processos que envolvem litígios de diversa natureza e cujo relevo social é bem superior.

Na prática, empresas que, como a agravante, se dedicam à concessão de crédito e que, para o efeito, adoptam estratégias agressivas ou sem suficiente ponderação do grau de solvabilidade dos devedores, acabam por fazer uso abusivo dos instrumentos do processo civil, prejudicando seriamente o modo como o Estado, através dos Tribunais, pode exercer a actividade de administração da justiça em proveito da generalidade dos cidadãos ou das empresas.

IV - Foi para pôr cobro a esta situação que o legislador entendeu modificar o regime jurídico-processual em matéria de definição da competência territorial, alterando o disposto nos arts. 74º e 110º do CPC.

Fê-lo de modo que, sendo o devedor pessoa singular, a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações deve ser intentada no tribunal do domicílio do réu; só nas situações excepcionadas no art. 74º poderá o réu ser demandado no tribunal do lugar em que a obrigação deveria ter sido cumprida.

Além disso, por via da alteração do art. 110º, nº 1, al. a), em estreita conexão com o art. 110º, nº 1, vedou-se a possibilidade de afastar a aplicação da referida regra, dando ao juiz o poder-dever de conhecer oficiosamente da incompetência territorial.

E numa clara manifestação do poder que o Estado detém para regular aspectos ligados à organização judiciária, ficou definido no art. 6º do Dec. Lei nº 14/06, de 26-4, que as alterações legais apenas se aplicariam às acções apresentadas depois da sua entrada em vigor.

Trata-se, afinal, de uma solução há muito tempo reclamada e que só peca por tardia, depois dos diagnósticos que já haviam sido feitos logo que foi notada a massificação de acções para cobrança de dívidas.

V – Neste contexto, é por demais evidente que não pode ser dada razão ao agravante em qualquer das questões que suscita.

Atenta a natureza pública das regras de processo civil e, especificamente, de tudo quanto está relacionado com a organização judiciária e com o uso dos meios que podem ser usados pelos interessados para fazerem valer as suas pretensões, não pode questionar-se a legitimidade do Estado no que concerne à adopção de medidas legislativas que imponham aos interessados um uso mais racional dos meios disponibilizados para o sector da administração da justiça.

Nesta medida, o facto de no contrato, aliás, integrado por cláusulas gerais, ter sido convencionada a competência territorial do Tribunal de Lisboa, onde se situa a sede da agravante, não constitui obstáculo a tais medidas de racionalização.

O interesse público inerente a tal solução sobrepõe-se naturalmente aos interesses particulares de entidades que, como a agravante, fizeram do sistema anteriormente em vigor um uso abusivo de que resultou, como é pacífico, um prejuízo para o interesse geral.

Aqui como noutros campos, devem ser os interessados em recorrer aos meios jurisdicionais a adaptar-se às regras gerais e imperativas formuladas pelo poder legislativo, e não, como a agravante pretende, considerar o Estado manietado por estratégias que visam unicamente os benefícios de um reduzido número de entidades.

No caso concreto, como se disse, as razões que levaram o Estado a modificar o regime estão muito directamente ligadas ao uso abusivo que se vinha fazendo do pacto de aforamento, levando a uma excessiva concentração de acções em poucas circunscrições judiciais.

Ora, sem coarctar o exercício do direito de acção (ainda que também já tenham sido anunciadas para breve medidas que visam penalizar os interessados que ultrapassem em cada ano um certo número de acções), a regra geral agora fixada proporciona um uso mais racional dos meios, potenciando uma distribuição das acções por todo o território nacional.

Com isso se possibilita um maior equilíbrio entre as pendências de processos, evitando a sobrecarga que se verifica em alguns tribunais, ao mesmo tempo em que noutros tribunais os meios humanos e materiais se encontram subaproveitados.

E não pode ser ainda descurado um outro objectivo, há muito tempo reclamado no âmbito da defesa dos consumidores, de potenciar uma maior proximidade relativamente ao seu domicílio, a fim de potenciar o exercício do direito de defesa que frequentemente é condicionado pelos custos inerentes às deslocações ou pela maior dificuldade em encontrar apoio técnico-jurídico.

Deste modo, por prevalência das regras de direito público ligadas à definição dos critérios de competência territorial sobre as convenções de direito privado, não existe motivo para deixar de aplicar ao caso concreto a solução que dimanou na alteração legislativa.

Nem faz sentido apelar ao disposto no art. 12º do CC, pois que o diploma expressamente restringiu a sua aplicação aos novos processos, tendo, assim, sido salvaguardadas as situações anteriores, ainda que não estivesse fora do alcance do legislador a extensão da nova regra às acções pendentes, como, aliás, decorre do art. 23º da LOFTJ.

VI – Tão pouco se verifica o vício de inconstitucionalidade que o agravante invoca.

Para o efeito basta remeter para a motivação do Ac. do Trib. Constitucional de 19-12-06, no D.R., II Série, de 31-1-07, na qual se escalpelizaram os argumentos apresentados pelo agravante.

A modificação das regras de competência, com possibilidade de aplicação aos contratos anteriormente celebrados, não viola qualquer dos princípios referidos pela agravante, constituindo uma manifestação dos poderes de soberania que ao Estado competem e que deve usar quando se trata de racionalizar os meios postos à disposição dos cidadãos para efeitos de jurisdicionalização de pretensões materiais.

VII – Em suma, não se verifica qualquer violação do princípio geral da irrectroactividade das leis, até porque, no caso concreto, as regras que redefiniram a competência territorial apenas são de aplicar às novas acções.

O facto de o novo regime se aplicar também a contratos anteriormente celebrados e nos quais se convencionara uma diversa competência não fere qualquer dos mencionados princípios constitucionais.

VIII – Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da agravante.
Notifique.

Lisboa, 15 de Maio de 2007


(António Santos Abrantes Geraldes)
(Maria do Rosário Morgado)
(Arnaldo Silva)