Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6604/2007-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: REVOGAÇÃO
APREENSÃO DE VEÍCULO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/16/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro deve considerar-se tacitamente revogado pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa



1. S.[…] intentou contra Hernâni […] e Maria […] providência cautelar para apreensão de veículo, invocando incumprimento de obrigações pecuniárias emergentes do contrato de crédito que celebrou com os requeridos.

2. No despacho liminar, foi declarada a incompetência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer da acção e foi ordenada a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, por ser o competente.

3. Inconformada com este despacho, agravou a autora, a qual, em síntese conclusiva, diz:

O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do n.º 1 art. 110º do CPC, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26-04, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no art. 100°, nºs 1, 2, 3 e 4 do Cód. Proc. Civil, violou o disposto nos arts 5° e 12°, nºs 1 e 2, do Cód. Civil;

O art. 21º, do DL 54/75 não foi revogado pela Lei 14/2006, de 26 de Abril.

4. Não há contra alegações.

5. O recurso é o próprio assim como o regime de subida e o efeito atribuído. Dada a sua simplicidade, cumpre apreciar e decidir da questão suscitada no agravo, nos termos do art. 705º, do C.P.C., sendo certo que nada obsta ao conhecimento do seu objecto e inexistem quaisquer outras questões prévias de que cumpra conhecer.

6. Os elementos a ter em conta na decisão do recurso, são os que constam do relatório.

7. Nos termos do art. 74º, nº1, do CPC (na redacção vigente à data da outorga do contrato de mútuo) as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações deviam ser propostas, à escolha do credor, no tribunal do lugar onde a obrigação devia ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu.

No entanto, a lei previa (arts. 100º, nº1 e 110º, nº1, CPC) a possibilidade de as partes afastarem, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência territorial.

Acontece, porém, que estes preceitos foram alterados pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, passando o art. 74°, nº 1, do CPC a ter a seguinte redacção:

“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no Tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo Tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.

Também o art. 110°, nº1, al. a), do CPC foi alterado pela Lei 14/2006, passando a referida alínea a ter a seguinte redacção:

Nas causas a que se referem o artigo 73º, a primeira parte do nº 1 e o nº 2 do artigo 74º, os artigos 83º, 88º e 89º, o n.º 1 do artigo 90.º, a primeira parte do nº 1 e o n.º 2 do artigo 94º”, a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.

Assim, da conjugação dos preceitos em causa (arts. 74º, nºs 1 e 2, 100º, nº1 e 110º, nº1, al. a), todos do CPC, na sua redacção actual) resulta que, nas acções como a dos autos, o conhecimento da excepção de incompetência relativa passou a ser oficioso, sendo, por outro lado, expressamente vedado afastar as regras de atribuição de competência em razão do território.


Justificando estas alterações, lê‑se na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 47/X (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, n.º 69, de 15 de Dezembro de 2005, pp. 11‑15), que esteve na origem da Lei n.º 14/2006:

“1 – O Programa do XVII Governo Constitucional assumiu como prio­ridade a melhoria da resposta judicial, a consubstanciar, designadamente, por medidas de descongestionamento processual eficazes e pela gestão racional dos recursos humanos e materiais do sistema judicial.
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial, e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função constitui um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 30 de Maio de 2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestiona­mento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto».
A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geografi­camente concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções reforça‑se o valor constitucional da defesa do consumidor – porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permi­tindo‑lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo – e obtém‑se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando, situando‑se o domicílio do credor na Área Metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção justifica‑se por estar ausente o referido valor constitucional de pro­tecção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropoli­tana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribui­ção do volume processual hoje verificado em cada uma das respectivas comar­cas.”
7.1. Argumenta a recorrente que, sendo a alteração legislativa posterior à data da celebração do contrato, não tem aplicação ao caso sub judice.

Quid juris?

Como ensina Antunes Varela, Manual de Processo Civil, na falta de disposição especial, o princípio geral a ter em conta nesta matéria, aponta para a aplicação imediata da lei processual, por se entender que o direito processual é um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes limitando-se a disciplinar o modo como as partes exercitam os «seus» direitos.

No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Anselmo de Castro, in “ Direito Processual Civil Declaratório “, I, 53, dizendo:

“… não há que atender à lei reguladora à data da relação material que com o processo se visa tutelar ou efectivar. Sejam quais forem os meios de tutela da relação jurídica no momento em que ela se constitui, o que interessa são apenas os admitidos na altura da sua apresentação em juízo. Se posteriormente à constituição da relação material foram alterados os meios de tutela jurisdicional, seja no sentido de a ampliar, seja no sentido de a restringir, ou modificadas as formalidades do processo, ou até os próprios pressupostos processuais, não há que atender à lei vigente no momento do nascimento da relação material litigiosa. Isto resulta da independência do direito processual em relação ao direito material, ou seja da autonomização da fase da realização jurisdicional ou autoritativa do direito frente à fase da sua realização pacífica.”

In casu, a Lei nº 14/2006 contém uma disposição transitória (o art. 6º) que, sob a epígrafe aplicação no tempo, estabelece que a presente lei se aplica apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor.

A nosso ver, este preceito apenas pode significar que o legislador pretendeu que a lei nova se aplique às acções instauradas após a sua entrada em vigor, independentemente da data da celebração do contrato, cujo cumprimento se pede na acção.

Tem assim plena aplicação ao caso sub judice a nova redacção dos arts. 74º e 110º, nº 1, al. a), do CPC, pelo que, nos termos das disposições conjugadas daqueles preceitos e do art. 100º, nº1, também do CPC, está vedado às partes afastar as regras de fixação da competência em razão do território.[1]

Além disso, como se salientou no Acórdão desta Relação, proferido no Agravo 9884/06, da 6ª Secção, de que foi relatora a Exma. Juiz Desembargadora, Ana Luísa Passos Geraldes, “o «pacto de competência» constitui um «negócio de eficácia deferida», tendo como pressuposto uma eventual verificação de um facto futuro, qual seja a necessidade de as partes recorrerem a Tribunal para a resolução de qualquer litígio que as oponha no âmbito do contrato celebrado entre as partes. Acontece, porém, que tal facto – a apresentação em juízo da acção – ocorre já à luz da Lei Nova que, por ser mais restritiva que a Lei Antiga, não reconhecendo qualquer eficácia a tal convenção – porque contrária a norma imperativa – impõe o recurso às normas de fixação de competência em razão do território que passaram a assumir natureza imperativa. A natureza imperativa de tais normas é, aliás, consentânea com o art. 22º da Lei nº 3/99, de 13/1 – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – que estabelece que «a competência se fixa no momento em que a acção se propõe».” Ora, como se sabe, a acção considera-se proposta logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial (art. 267º, CPC).

Improcede, pois, o agravo.[2]

8. Quanto à questão de saber se o art. 21º, do DL 54/75 foi revogado pela Lei 14/2006

Ora bem:

Estabelece o referido artº21 que. “ o processo de apreensão e as acções relativas a veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário.”

Acontece que a Lei 4/2006 o legislador não revogou expressamente aquele normativo.


Todavia, como se sabe, a revogação pode ser expressa ou tácita, isto é resultante da incompatibilidade entre as disposições novas e as anteriores, ou ainda, da circunstância de a lei nova regular a matéria objecto da lei anterior.


No nosso sistema jurídico vigora a presunção da subsistência do regime especial perante alteração de norma geral (artº7, nº3 do CCivil), princípio que apenas cede perante uma inequívoca intenção revogatória do legislador, não oferece.

In casu
, face ao que acima se disse, não oferece dúvidas de que o artº21 do DL 54/75 foi revogado tacitamente pela Lei 14/2006, de 26 de Abril.[3]

9. Em face do exposto, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela agravante.

Lisboa, 16 de Julho de 2007

(Maria do Rosário Morgado)


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[1] “A celebração de convenções sobre a competência está genericamente sujeita às mesmas regras de formação (atinentes à declaração de vontade e aspectos conexos) e aos mesmos requisitos de validade de qualquer contrato substantivo. Por regra, os elementos constitutivos da convenção são regulados pelo direito material e a sua admissibilidade e efeitos são definidos pelo direito processual” – Teixeira de Sousa, in “Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, Lex, pág.100.
[2] Neste sentido, vejam-se o Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Proc. de Agravo nº 6.740/2006 – 6ª Secção, ainda inédito, de que foi Relatora a Ex.ma Juiz Desembargadora Fernanda Isabel Pereira; o Acórdão desta Relação proferido no Agravo nº 9.885/06-8ª Secção, ainda inédito, relatado pelo Ex.mo Juiz Desembargador Ilídio Sacarrão Martins e os Acórdãos proferidos no Agravo 392/07, da 7ª secção, desta Relação, relatado pelo Ex.mo Juiz Desembargador Arnaldo Silva e no Agravo 417/07, também da 7ª Secção, relatado pelo Ex.mo Juiz Desembargador Luís Espírito Santo.
[3] Neste sentido, entre outros v. Acórdãos da Relação de Lisboa de 22/3/2007, de que foi relator o Exmo. Senhor Desembargador Salazar Casanova e de 29/5/2007, de que foi relatora a Exma. Senhora Desembargadora Isabel Salgado (agravo 4117/07, da 7ª secção)