Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8573/2006-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A competência dos julgados de paz a que alude o artigo 9º. nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 78/2001, de 13 de Julho é exclusiva e é exclusiva porque “ tipifica em exclusividade, a competência material destes julgados de paz” e é exclusiva “ uma vez que a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração do julgado de paz ou tribunal judicial”

(SC )
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

 I - RELATÓRIO

A. […] intentou acção sumaríssima contra Companhia de Seguros Fidelidade, Sa, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 699,87, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da citação.

Em síntese, alegou que ocorreu um embate entre o veículo do autor Rover 620, de matrícula 47-36-DL e o veículo Opel Corsa, com a matrícula 31-42-LI, seguro na ré. O acidente ocorreu por culpa do condutor do veículo Opel.

A ré contestou impugnando os factos alegados na petição inicial, pugnando pela absolvição do pedido.

Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a eventual incompetência material do tribunal, ambas requereram a remessa dos autos para o tribunal competente.

Foi proferida decisão que considerou incompetente em razão da matéria o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, considerando que a matéria em causa é da competência exclusiva dos julgados de paz face ao disposto no artigo 9º nº 1, alínea h) da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, que estabeleceu a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e, consequentemente, absolveu os réus da instância.

Face à posição das partes e ao abrigo do disposto no artigo 105º nº 2 do Código de Processo Civil, foi ordenada a remessa dos autos aos Julgados de Paz de Lisboa.

Não se conformando com o referido despacho, dele recorreu o Ministério Público, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 21 a 22 dos autos em epígrafe, na qual a Mmª. juiz "a quo" julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria, e, em consequência, declarou o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa incompetente em razão da matéria para a resolução do litígio dos autos, absolvendo a ré da instância, por ter considerado que são competentes, materialmente e de forma exclusiva, para apreciar e decidir a acção dos autos, os Julgados de Paz.

2ª - A Lei n° 78/2001, de 13 de Julho, que regula a competência e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, não consagra qualquer norma de competência exclusiva aos julgados de paz, ao contrário dos projectos de lei que foram discutidos nos trabalhos preparatórios.

3ª - A actuação dos julgados de paz está vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes (cfr. artigo 2º n° 1 da Lei n° 78/2001).

4ª - Os julgados de paz apenas podem julgar as acções referidas no artigo 9° da Lei n° 78/2001, de 13 de Julho, desde que o seu valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância e no decurso das mesmas não sejam suscitados incidentes processuais, nem requerida prova pericial.

5ª - Tal regime aliado às demais particularidades dos julgados de paz não autorizam, salvo melhor opinião, concluir com segurança que aqueles são detentores de competência exclusiva para tais acções em face do actual quadro jurídico.

6ª - Os julgados de paz foram criados com carácter experimental e circunscritos apenas a algumas comarcas.

7ª - Com a entrada em vigor da Lei n° 78/2001, de 13 de Julho não foram adoptadas quaisquer alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais relativas aos julgados de paz.

8ª - A não consagração na Lei n° 78/2001 de forma expressa, de competência exclusiva dos julgados de paz, a inércia legislativa, apesar das tomadas de posição do Conselho de Acompanhamento, no sentido de isso ser posto em letra de lei, o carácter experimental dos julgados de paz, a instalação dos mesmos limitada a algumas comarcas e a falta de previsão da representação do Estado, apontam, no sentido da competência alternativa.

9ª - Atribuindo-se, assim, aos julgados de paz uma competência material alternativa, com as virtualidades de meio de aliviar a consabida sobrecarga dos tribunais judiciais, onde avultam razões de eficácia do sistema e a atribuição ao demandante da liberdade da escolha entre os dois tribunais.

10ª - «O reconhecimento de que dois tribunais (um julgado de paz e um tribunal judicial) têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diferentes.» (Parecer n° 10/2005 da Procuradoria Geral da República).

11ª - Pelo exposto e à luz dos argumentos em que nos apoiamos, entendemos que a competência material dos julgados de paz é optativa relativamente aos tribunais judicias com competência territorial concorrente, cabendo, assim, ao demandante escolher entre um ou outro tribunal.

12ª - O Tribunal de Pequena Instância Cível e Lisboa é competente para apreciar e decidir a acção dos autos.

13ª - No caso em apreço, o A. António Ferreira Soares, escolheu o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, pelo que a acção deverá ser apreciada e decidida neste TPIC, e não nos julgados de paz.

14° - Assim, violou a douta sentença proferida a fls. 69 a 71 as regras de competência material do tribunal, nomeadamente, os artigos 211° da Constituição da República Portuguesa, 66° do Código de Processo Civil e 101° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, em conjugação com a Lei n° 78/2001, de 13 de Julho.

Termina pedindo que seja revogada a decisão recorrida e declarar o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa materialmente competente para apreciar e decidir a acção declarativa, com processo sumaríssimo, dos autos.

Não houve contra-alegações.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto  

A matéria de facto a considerar é a que releva do presente relatório.

B- Fundamentação de direito

Com a presente acção, que se destina a efectivar o cumprimento de uma obrigação, o autor vem exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária por via da responsabilidade civil emergente da circulação do veículo Opel  Corsa […], que se mostrava transferida para a ré seguradora.

O valor da acção é inferior à alçada do tribunal de primeira instância e, por isso, se integra na competência dos julgados de paz em razão do valor (1).

A competência em razão da matéria dos julgados de paz é fixada pelo artº 9º do Dec-Lei 78/2001, de 13 de Julho.

Na alª a) do nº 1 desse artº 9º vem preceituado que os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva.

Os julgados de paz foram criados para resolução célere e simplificada de questões de menor valor e sem grandes implicações jurídicas e vocacionados para “ permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes”-  nº 1 do artº 2º.

No entendimento de Cardona Ferreira (2), a competência material que o artº 9º estabelece é fundamental, dado que tipifica, em exclusividade, a competência material destes Julgados de Paz.

Também Joel Timóteo Ramos Pereira (3) advoga que a competência material fixada no artº 9º é exclusiva aquando da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos julgados de paz, uma vez que a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração de Julgado de Paz ou Tribunal Judicial. Nas acções que se destinem a efectivar o cumprimento de obrigações pecuniárias integráveis na alª a) do artº 9º e cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância, a jurisdição é exclusiva dos julgados de paz e, como tal, têm obrigatoriamente que ser intentadas perante estes tribunais. Se instauradas perante outros tribunais ocorrerá a violação dos artigos 211º da Constituição e 66º C.P.Civil.

A presente acção, sendo destinada a efectivar o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de um acidente de viação e porque se contém dentro do valor da alçada do tribunal de 1ª instância, é da competência material e exclusiva dos Julgados de Paz de Lisboa.

Nesta conformidade, a decisão agravada não merece reparo, sendo improcedentes as conclusões do agravo.

III - DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público

Lisboa, 26 de Outubro de 2006
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais

Carla Mendes ( vencida por entender que a competência dos julgados de paz não tem natureza exclusiva)



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1.-Artigo 24º nº 1 da Lei nº 3 /99, de 13 de Janeiro e artigo 8º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho.

2.-Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pág. 29

3.-Julgados de Paz – Organização, Trâmites e Formulários”, 2ª ed., pág. 57.