Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10688/2002-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
ERRO
CORRECÇÃO OFICIOSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: É legítimo ao tribunal proceder à correcção oficiosa da forma de incidente de intervenção de terceiros, desde que o respectivo requerimento comporte os elementos fundamentais da forma incidental adequada ao caso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :
1. Relatório :
Na acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, que M. Marques e M. Rodrigues intentaram no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa contra J. Fernandes e O. Fernandes, com vista à resolução do contrato de arrendamento para habitação celebrado entre autores e réus fundada na realização não autorizada de obras que alteraram substancialmente o locado, agravaram os réus do despacho que não admitiu o incidente de intervenção principal provocada de M. Marques, sustentando na sua alegação as seguintes conclusões :
1ª Na contestação pretendem os réus deduzir pedidos reconvencionais contra todos os intervenientes, incluindo a chamada M. Marques;
2ª Isto porque entendem os réus que, isolada ou conjuntamente, a chamada é também proprietária do imóvel locado e senhoria no contrato de arrendamento celebrado com os réus.
3ª Os réus deduziram ainda, subsidiariamente, um pedido contra a chamada, este para o caso de, no decorrer do processo, o tribunal vir apurar que a chamada era apenas representante dos autores;
4ª Esse pedido tinha como base as autorizações para obras que a chamada foi dando aos réus, as quais poderiam ter excedido os poderes que a chamada tinha enquanto representante, actuação essa geradora de responsabilidade civil.
5ª Este pedido consubstancia o exercício do direito de regresso, exigível através da intervenção provocada acessória.
6ª Tendo em conta que a M. Marques já se encontrava a ser chamada a título de intervenção principal, seria desnecessário chamá-la também a título de intervenção acessória.
7ª Caso o Mmo. Juiz entendesse, como veio a entender, que era inadmissível o chamamento a título principa1, deveria aquele, ao abrigo do princípio da adequação formal, pelo menos convidar os réus para se pronunciarem sobre a possibilidade de chamar a M. Marques a título de intervenção provocada acessória.
8ª Com a decisão de considerar aqueles factos na ponderação da decisão de condenar a ré no pedido, a sentença do Meritíssimo Juiz a quo, violou as disposições conjugadas do artigo 265º-A, 321º, 325º e 330º todos do Código de Processo Civil.
Termos em que deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que admita a intervenção da chamada.

Não houve contra alegação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Fundamentos :
2.1. De facto :
Para o conhecimento do recurso há que considerar a seguinte dinâmica processual :
- na acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, que os autores moveram contra os réus pediram os autores o despejo imediato do andar que lhes haviam arrendado com fundamento na realização pelos mesmos de obras não autorizadas que alteraram substancialmente o locado;
- na contestação os réus deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores no pagamento de uma indemnização por benfeitorias no valor de 1.350.000$00 e na restituição de 50% das rendas pagas até à data em que os autores procederem à eliminação dos defeitos existentes no locado em montante a liquidar em execução de sentença;
- também na contestação os réus requereram a intervenção principal provocada de Alice Marques, alegando que esta, filha dos autores, sempre se arrogou representante dos mesmos com poderes bastantes para praticar actos relacionados com o locado, designadamente autorizar a realização das obras em causa, pelo que, caso se venha a verificar que autorizou as obras sem poderes para tal, está obrigada ao reembolso do custo das obras realizadas pelos réus no locado, das despesas com a mudança e procura de nova residência e ao pagamento de indemnização por danos morais causados pela procedência da acção de despejo;
- os autores opuseram-se;
- por despacho proferido em 14 de Maio de 2002 concluiu-se pela inadmissibilidade do incidente.

2.2. De direito :
2.2.1. A questão que importa dilucidar em primeiro lugar no presente recurso prende-se com a admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada, incidente de intervenção de terceiros previsto nos artigos 325º a 329º do Código de Processo Civil.
O princípio da estabilidade dos elementos essenciais da instância (sujeitos, pedido e causa de pedir) alcançado por efeito da citação, nos termos do disposto nos artigos 481º b) e 268º do Código de Processual Civil, comporta modificações. Assim, a instância pode modificar-se, quanto às pessoas, em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio, ou em virtude dos incidentes de intervenção de terceiros, como é o caso do incidente de intervenção principal provocada ( artigo 270º).
Este incidente permite a modificação subjectiva da instância por iniciativa de qualquer das partes e é admissível quando qualquer das partes pretenda fazer intervir na causa um terceiro como seu associado ou como associado da parte contrária, ou seja, quando qualquer das partes deseje chamar um litisconsorte voluntário ou necessário (artigo 325º nº 1) e quando o autor queira provocar a intervenção de um réu subsidiário contra quem queira dirigir o pedido (artigo 325º nº 2 e 31º-B) Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 182..
De acordo com o preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, a ratio do preceito que consagra a segunda hipótese (artigo 31º-B) é a seguinte :
“ Dentro da ideia base de evitar que regras de índole estritamente procedimental possam obstar ou criar dificuldades insuperáveis à plena realização dos fins do processo – flexibilizando ou eliminando rígidos espartilhos, de natureza formal e adjectiva, susceptíveis de dificultarem, em termos excessivos e desproporcionados, a efectivação em juízo dos direitos – propõe-se a introdução no nosso ordenamento jurídico-processual da figura do litisconsórcio eventual ou subsidiário. Torna-se, por esta via, possível a formulação de pedidos subsidiários – na configuração que deles dá o art. 469º do Cód. Proc. Civil – contra réus diversos dos originariamente demandados, desde que com isso se não convole para uma relação jurídica diversa da inicialmente controvertida.
Supõe-se que, com esta solução inovadora, se poderão prevenir numerosas hipóteses de possível «ilegitimidade» passiva, permitindo-se ao autor a formulação de um pedido principal contra quem considera ser o provável devedor e de um pedido subsidiário contra o hipotético titular passivo do débito (v.g. em situações em que haja fundadas dúvidas sobre a identidade do verdadeiro devedor, designadamente por se ignorar em que qualidade interveio exactamente o demandado do negócio jurídico).”
Tendo presente o condicionalismo legal acabado de enunciar, não pode deixar de concordar-se com o entendimento seguido no despacho recorrido no tocante à inadmissibilidade do incidente de intervenção principal provocada.
Com efeito, a relação jurídica em que se funda o incidente de intervenção de terceiros em causa é perfeitamente autónoma do contrato de arrendamento celebrado entre os autores e os réus que, juntamente com a violação contratual, constitui a causa de pedir nesta acção, não permitindo, assim, configurar uma situação de litisconsórcio, necessário ou voluntário, entre os autores e M. Marques.
Logo, não é possível admitir-se a mesma a intervir nos autos como associada dos autores.
Por outro lado, na reconvenção que deduziram não evidenciaram os réus qualquer dúvida razoável sobre os sujeitos da relação jurídica do lado activo, deixando bem claro que o contrato de arrendamento foi celebrado com os autores na acção, contra os quais formularam os pedidos reconvencionais decorrentes da relação locatícia que estabeleceram.
Se dúvidas existem é quanto aos alegados poderes da M. Marques para representar os autores, senhorios, qualidade que se não confunde com a daqueles que está bem definida na acção - locadores -.
E é, unicamente, com base na eventual inexistência desses poderes de representação que os réus pretendem chamar à acção a referida M. Marques para a responsabilizarem pelos prejuízos que a procedência da acção possa causar-lhes, na medida em que, na versão que apresentaram, esta terá autorizado a realização das obras no locado em que se fundamenta o despejo visado pelos autores.
A responsabilidade civil que os réus pretendem assacar à dita M. Marques é, como se referiu, totalmente estranha à relação locatícia que estabeleceram com os autores e que constitui a causa de pedir na acção, o que, aliás, decorre claramente dos prejuízos de que pretendem ser por ela ressarcidos.
Não se verifica, por conseguinte, uma situação de pluralidade subjectiva subsidiária, seja do lado activo, seja do lado passivo.
O pedido deduzido pelos réus contra a chamada, que só implicitamente pode considerar-se formulado, apresenta, pois, total autonomia em relação aos pedidos reconvencionais que deduziram contra os autores, tratando-se de um caso de verdadeira cumulação de pedidos, que não radica “em dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida” desenhada na acção.

2.2.2. Neste contexto, importa analisar se se está perante uma situação enquadrável na figura do incidente intervenção acessória provocada regulado nos artigos 330º a 333º do Código de Processo Civil.
Este incidente visa permitir a participação de um terceiro perante o qual o réu possui, na hipótese de procedência da acção, um direito de regresso. Para justificar esta intervenção não basta um simples direito de indemnização contra um terceiro, tornando-se ainda necessário que exista uma relação de conexão entre o objecto da acção pendente e o da acção de regresso (cfr. art. 331º nº 2 in fine). E essa conexão está assegurada sempre que o objecto da acção pendente seja prejudicial relativamente à apreciação do direito de regresso contra o terceiro. Miguel Teixeira de Sousa, loc. cit., págs. 178 e 179.
Com este incidente o réu obtém, não só o auxílio do chamado, como também a vinculação deste à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 332º nº 4), direito que não coincide com o conceito de direito de regresso inserto nos artigos 497º nº 2, 521º nº 1 e 524º do Código Civil e que pode derivar de lei expressa, de contrato ou de acto ilícito gerador de responsabilidade civil, tal como acontecia com o suprimido incidente de chamamento à autoria (Ac.s STJ de 16.12.1987, BMJ 372/385, e de 31.3.1993, BMJ 425/473).
Neste quadro, alegando os réus que a M. Marques autorizou as obras que realizaram no locado e se arrogou poderes de representação dos senhorios para o efeito, pretendem responsabilizá-la, caso se venha a verificar que não tinha poderes para tal e a acção venha a proceder, pelos danos não patrimoniais e pelos prejuízos que lhes advirão da procura e mudança de residência, bem como pelo reembolso do custo das obras que realizaram no locado a coberto da referida autorização e que motivaram a acção de despejo.
Está, assim, configurado um direito de indemnização com viabilidade e conexo com o objecto da relação controvertida na presente acção, justificando-se a intervenção acessória provocada da chamada, a qual, não podendo ser condenada nesta acção, ficará vinculada ao caso julgado da sentença a proferir no tocante aos pressupostos de que depende o direito de regresso dos réus, autores do chamamento (arts. 331º nº 2 e 332º nº 4).
Embora os réus tenham deduzido incidente de intervenção principal provocada, nada obsta a que o tribunal proceda à correcção oficiosa da forma incidental desde que o requerimento comporte os elementos fundamentais da forma incidental adequada ao caso.
Este entendimento não é unânime na jurisprudência Cfr. o Ac. RC, de 24-10-89, CJ, tomo V, pág. 75, BMJ 244º/210 e 278º/133.. No entanto, como se escreveu no acórdão desta Relação proferido na apelação nº 9228/02, da 7ª secção, “A reforma do processo civil e a inequívoca opção do legislador por soluções que privilegiem aspectos de ordem substancial, desvalorizando questões de natureza formal, permite-nos sustentar aquele poder/dever.
Para além do recurso ao preceito que rege em situações análogas (o art. 508º nº 1 al. a)), uma tal solução poderia fundar-se no princípio geral contido no artigo 265º nº 2.”
Aliás, também o paralelismo com a solução legal consagrada para o erro na forma de processo (art. 199º nº 1) aponta para a solução propugnada.
Sendo, no caso vertente, aproveitável o requerimento em que se deduziu o incidente de intervenção principal provocada para o incidente de intervenção acessória, que é o próprio, atenta a ritologia estabelecida nos artigos 331º a 333º, impõe-se a admissão deste incidente.
Procedem, assim, as conclusões 7ª e 8ª, improcedendo as demais.

3. Decisão :
Termos em que acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao agravo, admitindo o incidente deduzido como de intervenção acessória provocada e determinando que os autos prossigam os termos subsequentes previstos no artigo 332º do Código de Processo Civil, nessa medida revogando o despacho recorrido.
Custas pelos agravados.
8 de Maio de 2003

(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo Geraldes)