Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17070/16.2T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: VIAGEM
FORMAÇÃO
COMPUTADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I. A partir do momento em que autorizou o menor a deslocar-se à Guiné-Bissau, o pai comprometeu-se – do mesmo passo – em assegurar os cuidados básicos de saúde que essa deslocação importa, designadamente o custeamento da consulta do viajante e os medicamentos preventivos recomendados.
II. Atualmente, na era da literacia digital, as despesas de aquisição de um computador e teclado constituem despesas necessárias e inerentes à formação escolar de um menor de 12 anos, subsumindo-se ao conceito de material escolar e didático.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
Em 20.4.2018, foi proferida pelo tribunal a quo a seguinte decisão:
«A. deduziu o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra J..
Alega para o efeito que, apesar do requerido estar obrigado ao pagamento de uma prestação de alimentos no valor de € 100,00 mensais a favor do menor D., filho de ambos, desde março que 2016 que o requerido não efetua o pagamento da prestação de alimentos, referindo encontrar-se em dívida à data de 06.07.16 a quantia de € 400,00, acrescida de juros legais.
Notificado para, no prazo de cinco dias, alegar o que tivesse por conveniente, nos termos do art. 41º, nº 3 do RGPTC, o requerido apresentou as suas alegações a fls. 94 a 96.
(…)
Realizou-se uma conferência de pais no dia 03.05.17, na qual a requerente declarou que poderia retirar o valor peticionado até julho de 2016 porque, até essa data, requerente e requerido ainda se encontravam ambos a residir na mesma casa, mantendo o restante valor peticionado (cfr. fls. 320 a 322).
O requerido, por seu turno, declarou estar disposto a assumir o valor de €123,50 (cento e vinte e três euros e cinquenta cêntimos) por ter feito uma compensação indevida entre a pensão de alimentos e o valor do IMI (cfr. fls. 320 a 322).
Foi suspensa a conferência de pais, a fim de as partes poderem diligenciar com vista ao acordo, tendo sido designado o dia 31.05.17 para a continuação da conferência de pais.
Em virtude das partes não terem chegado a acordo, foram as mesmas convidadas, ao abrigo do artigo 39º, n.º 4 do RGTPC, para vir aos autos atualizar as suas posições e requerer a produção de prova que tivessem por conveniente (cfr. fls. 323 a 325).
Requerente e requerido apresentaram as respetivas alegações, sendo que a requerente admite ter incluído despesas ocorridas antes do divórcio que perfazem o valor de €112,90, o que fez inconscientemente e que devem ser retiradas do pedido, o mesmo acontecendo às despesas no valor de €22,50 relativas a refeições no KFC e McDonald´s, mantendo todas as outras despesas (cfr. fls. 378 a 380) e o requerido refere que, se for o entendimento do Tribunal, acatará o pagamento da verba de € 123,50 relativo ao montante compensado na pensão de alimentos com a dívida de IMI da requerente (cfr. fls. 334 a 361).
Notificada para esclarecer qual a quantia exata que está em divida, na atualidade e, e ainda, a que título, a requerente veio dizer:
- no período de abril, maio e junho de 2016 o pai não pagou a pensão de alimentos no valor mensal de 100,00€, estando em dívida o montante de € 300,00;
- em dezembro de 2016, o requerido em vez de pagar a pensão de alimentos do filho menor, bem como as despesas com atividade extracurricular no valor de 54,00€, descontou ao total em dívida outras despesas relacionadas com a casa de morada de família pagas por si, tendo apenas pago em dezembro o montante de 30,50€, encontra-se em dívida o montante de € 123,50;
- de acordo com o artigo 25º do regime das responsabilidades parentais o requerido ficou obrigado a pagar na proporção de 85% todas as despesas ordinárias de saúde e medicamentos do menor;
- não obstante ter sido interpelado para o efeito, o requerido não tem pago as despesas médicas e medicamentosas referentes a 2016/2017, encontrando-se em dívida até ao momento o montante total de € 260,37;
- estão incluídas nestas despesas uma consulta de viajante pediátrica e uma vacina que foi administrada ao menor aquando da visita deste a um país africano, que contrariamente ao alegado pelo requerido, foi autorizada pelo próprio;
- acresce ainda que, no âmbito da obrigação de alimentos assumida pelo requerido, este ficou obrigado a pagar na totalidade os manuais escolares, material escolar, didático, desportivo, visitas de estudo, bem como suportar as atividades extracurriculares;
- não obstante, ter sido interpelado para o efeito, o requerido não tem cumprido a sua obrigação estando em dívida o montante de € 1.084,00;
- na quantia acima referida está incluída a aquisição de um computador no valor de € 631,55€;
- o requerido não procedeu em 2017 à atualização da pensão de alimentos de acordo com o índice de inflação publicado no INE, estando por isso em dívida o montante de € 7,20€ [0,6% (taxa de inflação) x 12 meses];
- encontra-se em dívida o montante total de € 1775,07 (cfr. fls. 411 a 445).
Notificado do requerimento apresentado pela requerente, veio o requerido dizer o seguinte:
- a requerente foi notificada para “esclarecer qual a quantia exata que está em dívida”;
- utilizando esse pedido como justificação, a requerente pretende introduzir nos autos matéria nova, o que, como bem sabe, não lhe é permitido pelas mais elementares regras processuais;
- a requerente deu início aos presentes autos no dia 07-07-2016, onde requeria o pagamento da pensão de alimentos, alegadamente em dívida, desde o dia 10-03-2016, no valor de 400,00€;
- apesar disto, no dia 12-12-2016, apresentou nos presentes autos novo pedido, composto agora pela alegada falta de pagamento de despesas relacionadas com o menor, pedido que foi reiterado pela I. Mandatária da requerente à data, por requerimento apresentado no dia 24-01-2017, e que o requerido teve oportunidade de esclarecer devidamente;
- não pode a requerente, a pretexto da notificação supra mencionada, pretender incluir despesas que não constavam do seu requerimento inicial (e já considerando, com muita latitude, como aquele apresentado no dia 24-01-2017);
- pelo que, as despesas invocadas nos Docs. nºs 6, 7, 8, 9, 10, 25, 26, 27, 28 e 29, deverão ser excluídas por não integrarem o objeto dos presentes autos (cfr. fls. 453 a 456).
Na sequência do requerimento de resposta apresentado pelo requerido, veio a requerente dizer que é falso que tenha introduzido matéria nova aos presentes autos, tendo-se limitado a esclarecer o Tribunal dos valores exatos em dívida, reunindo essa informação num único requerimento e apresentando novamente os comprovativos das faturas correspondentes, para melhor se aferir do que está por pagar face aos vários requerimentos já apresentados e que em face de alguma dispersão deram azo ao despacho de 16.11.17, pelo as despesas constantes dos docs. 6, 7, 8, 9, 10, 25, 26, 27, 28 e 29 deverão ser incluídas por integrarem o objeto dos presentes autos (cfr. fls. 458 a 461).
Cumpre decidir.
***
Em conformidade com o regime de RRP que se encontra em vigor, e que resultou de acordo celebrado pelos progenitores e homologado por sentença transitada em julgado em 10.03.16, o menor D. encontra-se confiado à guarda e cuidados da requerente, sendo as responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância para a vida do menor exercidas em conjunto por ambos os progenitores (arts. 1º e 2º do acordo de RRP).
Ainda segundo tal acordo:
- os progenitores suportam na proporção de 85% para o pai e 15% para a mãe, todas as despesas ordinárias de saúde e medicamentosas do menor, contra a apresentação dos respetivos recibos e comprovativos de pagamento (cláusula 25ª);
- as despesas de saúde extraordinárias do menor, clinicamente comprovadas, designadamente correção oral, intervenções cirúrgicas e apoio psicológico ou outras, serão suportadas na proporção de 90% para o pai e 10% para a mãe, contra a apresentação dos respetivos comprovativos de pagamento (cláusula 26ª, 1ª parte);
- ambos os progenitores devem estar envolvidos em quaisquer situações de diagnóstico terapêutico, terapia e recuperação dos tratamentos supra mencionados, constituindo a omissão de informação que permita o aludido envolvimento, a assunção integral da responsabilidade pelos pagamentos pelo progenitor omitente (cláusula 26ª, 2ª parte);
- o pai pagará todos os manuais, materiais escolares, bem como outras atividades curriculares e/ou extracurriculares que o menor necessite dentro e fora do Colégio de Santa Doroteia ou de qualquer outro estabelecimento de ensino que venha a frequentar, apoio pedagógico/psicológico e explicações de disciplinas que sejam necessárias para a educação do menor (cláusula 28ª);
- o pai suportará todas as despesas necessárias e inerentes à preparação, início e decurso do ano escolar do menor com a aquisição de fardamentos, livros, material escolar, didático, desportivo e visitas de estudo contra a apresentação do respetivo comprovativo de pagamento (cláusula 29ª);
- os pagamentos a efetuar pelo pai ou pela mãe, previstos nas cláusulas antecedentes, terão lugar até ao prazo máximo de oito dias contados da data da sua apresentação, com exceção das despesas superiores a € 100,00 (cem euros), e das previstas na cláusula 26ª, que e após apresentação do competente comprovativo, serão objeto de reembolso imediato (cláusula 31ª);
- as despesas decorrentes com a frequência pelo menor de atividades extralectivas, designadamente desportivas e culturais, da escolha do pai ou da mãe, e desde que não seja obtido o acordo de ambos os progenitores, serão integralmente suportadas pelo progenitor que decidiu da respetiva frequência (cláusula 32ª);
- o pai contribuirá ainda, mensalmente, a título de alimentos para o menor, com a quantia de € 100,00 (cem euros), verba que será objeto de transferência bancária para a conta da mãe, montante que será atualizado anualmente de harmonia com o índice de inflação publicado pelo INE (cláusula 34ª).
Nos presentes autos a requerente vem informar que se encontram por pagar as prestações de alimentos referentes aos meses de março a junho de 2016, no valor de € 400,00 e a quantia de € 214,54 referente a atividades extracurriculares do menor até final do ano letivo de 2015/2016.
Ora, pese embora o divórcio entre a requerente e o requerido tenha sido decretado e tenha transitado em julgado em 10.03.16, conforme a própria requerente reconheceu na conferência de pais no dia 03.05.17, requerente e requerido estiveram a residir na mesma casa até julho de 2016, em economia comum, motivo pelo qual a requerente declarou que poderia retirar o valor peticionado até essa data.
Assim sendo, entende-se que não é devido o pagamento das prestações de alimentos relativas aos meses de março a junho de 2016, nem o pagamento das atividades extracurriculares até final do ano letivo de 2015/16, tanto mais que o próprio requerido alegou que não deu o seu acordo a essas atividades.
A requerente peticiona ainda o pagamento de € 47,85 de despesas de farmácia, € 91,19 de livros até ao final do ano letivo de 2015/2016 e € 836,45, de acordo com o ponto 29 do acordo de RRP.
No que concerne às despesas da farmácia, todas as faturas dizem respeito a datas anteriores a julho de 2016, sendo que as faturas juntas ascendem ao valor global de € 37,75 e não ao valor indicado pela requerente e que alegadamente corresponderia à comparticipação do requerido (85%).
Quanto às despesas com livros, uma delas diz respeito a um livro “Virar a Página” que não se destinou ao menor, sendo que todas as faturas dizem igualmente respeito a datas anteriores a julho de 2016 e ascendem ao valor global de € 83,42 e não ao valor indicado pela requerente.
Assim, estas despesas não podem ser atendidas.
É a própria requerente que admite ter incluído despesas ocorridas antes do divórcio e que devem ser retiradas do pedido, dizendo que o mesmo deve suceder às despesas relativas a refeições no KFC e McDonald´s.
Relativamente às despesas no valor de € 836,45 cujo pagamento é peticionado pela requerente e que a mesma alega que são devidas de acordo com o ponto 29 do acordo de RRP, desconhece-se a que é que estas despesas respeitam.
A requerente acaba por vir dizer que neste valor está incluída a aquisição de um computador no valor de € 631,55€, mas não concretiza que outras despesas estão incluídas neste valor, deduzindo-se pelas faturas que a mesma apresentou em 12.12.16 que também estarão incluídas neste valor as despesas com a aquisição de um telemóvel para o filho, com a aquisição de uma capa para o telemóvel, com a aquisição de um cartão de memória para o telemóvel, com o carregamento do telemóvel e com a aquisição de um teclado.
Ora, a aquisição destes bens (computador, teclado, telemóvel, capa para o telemóvel, cartão de memória e carregamento do telemóvel) não constitui uma despesa com fardamentos, livros, material escolar, didático, desportivo e visitas de estudo, pelo que não corresponde a despesas necessárias e inerentes à preparação, início e decurso do ano escolar do menor.
Logo, tais despesas não se encontram abrangidas pela cláusula 29ª do acordo de RRP, pelo que não são devidas.
A requerente reclama ainda o pagamento da quantia de € 172,45 referente a despesas de saúde extraordinárias do menor, bem como o montante de € 123,50 referente à pensão de dezembro de 2016, em virtude de o requerido alegadamente ter descontado esse montante à referida pensão de alimentos.
É certo que nos termos da cláusula 26ª, 1ª parte, o requerido está obrigado ao pagamento de 90% das despesas de saúde extraordinárias do menor, clinicamente comprovadas, contra a apresentação dos respetivos comprovativos de pagamento.
Todavia, a soma das faturas que constituem os doc. 2 e 3 juntos com o requerimento da requerente de 24.01.17 perfazem o valor global de € 170,39 e não € 191,62.
Tais despesas estão relacionadas com a viagem que a requerente fez com o filho em dezembro de 2016 à Guiné-Bissau.
A consulta refere-se ao menor D., mas o recibo da farmácia inclui medicamentos que terão sido prescritos para adultos e não para o menor, como é o caso da Ciproxina 500 mg.
É certo que o requerido autorizou que o menor fizesse esta viagem, porém, a requerente não alegou nem provou que o requerido tivesse estado envolvido na situação de diagnóstico terapêutico nem que informou o mesmo do que era necessário em termos de saúde para a realização da viagem, pelo que, nos termos da cláusula 26ª, 2ª parte do acordo de RRP, a mesma é exclusivamente responsável pelo pagamento destas despesas.
O requerido reconhece que fez uma compensação indevida entre a pensão de alimentos de dezembro de 2016 e o valor do IMI, pelo que está obrigado ao pagamento da quantia de € 123,50 (cento e vinte e três euros e cinquenta cêntimos).
A requerida através do despacho proferido em 16.11.17 foi notificada para esclarecer apenas e tão só relativamente ao valor reclamado pela mesma qual a quantia exata que estava em dívida na atualidade e a que título e não para vir peticionar o pagamento de novas despesas, pelo que não podem ser tidas em consideração as despesas adicionais solicitadas pela requerente em 10.01.18.
Com efeito, não pode a requerente, a pretexto da notificação supra mencionada, pretender incluir despesas que não constavam do seu requerimento inicial, sob pena de estar permanentemente a ampliar o pedido, o que não é legalmente admissível.
***
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, julgo o presente incidente de incumprimento parcialmente procedente por provado e, por conseguinte, fixo a dívida em € 123,50 à data de dezembro de 2016.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«
a) O objeto do presente recurso prende-se com a decisão do Tribunal a quo que julgou improcedente o pedido da Recorrente no que concerne ao incumprimento do Recorrido pela não comparticipação nas despesas do Menor relativas à aquisição de medicamentos e consulta médica, bem como despesa com a aquisição de computador e respetivo teclado.
b) Ora, as indicadas despesas inserem-se nas seguintes cláusulas do acordo de responsabilidades parentais celebrado entre Recorrente e Recorrido:
Cláusula 26ª
As despesas de saúde extraordinárias do Menor, clinicamente comprovadas, designadamente correção oral, intervenções cirúrgicas e apoio psicológico e outras, serão suportadas na proporção de 90% para o pai e 10% para a mãe, contra apresentação dos respetivos comprovativos de pagamento.
Ambos os progenitores devem estar envolvidos em quaisquer situações de diagnóstico terapêutico, terapia e recuperação dos tratamentos supra mencionados, constituindo a omissão de informação que permita o aludido envolvimento, a assunção integral da responsabilidade pelos pagamentos pelo progenitor omitente.
Cláusula 29º
O pai suportará todas as despesas necessárias e inerentes à preparação, início e decurso do ano escolar do Menor com a aquisição de fardamentos, livros, material escolar, didático, desportivo e visitas de estudo contra a apresentação do respetivo comprovativo de pagamento.
c) A despesa extraordinária de saúde tida com o Menor foi realizada no âmbito de procedimentos preparatórios para a realização de uma viagem da Recorrente e do Menor à Guine-Bissau, englobando, consulta, administração de vacina e prescrição de outros medicamentos.
d) Viagem previamente autorizada pelo Recorrido, que não poderia ignorar, que em caso de deslocação a determinados países é necessário proceder à administração de vacinas e outros medicamentos, e conhecendo esta realidade, nunca se opôs à mesma.
e) No âmbito ainda dessa referida consulta foi prescrito um medicamento - Ciproxina 500mg - que segundo o Recorrido se destina exclusivamente a adultos, tese igualmente acompanhada pelo Tribunal a quo, sem que para o efeito haja conhecimentos técnicos nesse sentido, ou produção de prova, pelo que foi excluída uma despesa num total quadro de incerteza probatória e fáctica.
f) No que se refere à despesa realizada com a aquisição de computador e teclado para utilização do Menor em causa, esta insere-se no âmbito da referida cláusula 29º, pois enquadra-se no conceito de material escolar e didático.
g) Facto não reconhecido pela douta sentença, não obstante ser público e notório que os computadores são cada vez mais essenciais na realização de trabalhos escolares e fazem parte do dia a dia da vida, quer dos adultos, quer das crianças e jovens.
h) Pelo que, não incluir esta despesa no rol das despesas essenciais do Menor, quando necessária para efeitos escolares, é violar manifestamente o direito a alimentos, constitucionalmente consagrado.
i) Assim, a douta sentença ao não admitir as indicadas despesas com os fundamentos apresentados está em manifesta oposição ao acordo de responsabilidades parentais celebrado entre Recorrente e Recorrida e não tem qualquer base legal, pois é contrária ao disposto no artigo 360, n0 5 da CRP, nos artigos 18740, n0 2, 18780, n0 1 e 18850 do Código Civil e ainda no n0 2 do artigo 270 da Convenção sobre os Direitos da Criança.
j) Em consequência deve a sentença ora sob recurso ser revogada e substituída por decisão que condene o Recorrido no pagamento dos alimentos em dívida referentes às despesas indicadas, no montante total de 804,89€.
k)Termos em que, nos melhores de Direito, que V. Exas Venerandos Desembargadores doutamente suprirão, deverá, o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA!»
*
Contra-alegou o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso ( fls. 514-515).
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, as questões a decidir consistem em determinar se o requerido deve pagar as quantias reclamadas a título de medicamentos, consulta médica, aquisição de computador e aquisição de teclado.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Preliminarmente, há que referir que a decisão impugnada adotou uma estrutura irregular mas que não consubstancia nulidade. Com efeito, em vez de destacar quais os factos provados em capítulo próprio, seguindo-se a fundamentação da decisão de facto e a apreciação de direito (cf. Artigo 607º, nº4, do Código de Processo Civil), na decisão impugnada os factos e a respetiva fundamentação foram enunciados indistintamente mas de forma a perceber-se qual a factualidade que o tribunal a quo considera provada.
Complementarmente, há que referir que - embora a apelante não tenha impugnado a matéria de facto assim diluída, pedindo a sua alteração nos termos do Artigo 640º do Código de Processo Civil – este Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto, desde que tenha acesso aos mesmos elementos probatórios que fundaram a convicção do tribunal a quo (Artigo 662º, nº1 e nº2, alínea c), do Código de Processo Civil). Note-se que o tribunal a quo sedimentou a sua convicção apenas na prova documental, não tendo sido produzida prova testemunhal.
Posto isto, e entrando na apreciação de mérito:
Em primeiro lugar, pretende a apelante que sejam atendidas as reclamadas despesas de aquisição de medicamentos de € 117,39 e com uma consulta médica de € 53.
O tribunal a quo indeferiu a pretensão com esta fundamentação:
«A requerente reclama ainda o pagamento da quantia de € 172,45 referente a despesas de saúde extraordinárias do menor, bem como o montante de € 123,50 referente à pensão de dezembro de 2016, em virtude de o requerido alegadamente ter descontado esse montante à referida pensão de alimentos.
É certo que nos termos da cláusula 26ª, 1ª parte, o requerido está obrigado ao pagamento de 90% das despesas de saúde extraordinárias do menor, clinicamente comprovadas, contra a apresentação dos respetivos comprovativos de pagamento.
Todavia, a soma das faturas que constituem os doc. 2 e 3 juntos com o requerimento da requerente de 24.01.17 perfazem o valor global de € 170,39 e não € 191,62.
Tais despesas estão relacionadas com a viagem que a requerente fez com o filho em dezembro de 2016 à Guiné-Bissau.
A consulta refere-se ao menor D., mas o recibo da farmácia inclui medicamentos que terão sido prescritos para adultos e não para o menor, como é o caso da Ciproxina 500 mg.
É certo que o requerido autorizou que o menor fizesse esta viagem, porém, a requerente não alegou nem provou que o requerido tivesse estado envolvido na situação de diagnóstico terapêutico nem que informou o mesmo do que era necessário em termos de saúde para a realização da viagem, pelo que, nos termos da cláusula 26ª, 2ª parte do acordo de RRP, a mesma é exclusivamente responsável pelo pagamento destas despesas.»
Ora, conforme referido pelo tribunal a quo, o requerido autorizou a viagem do menor à Guiné-Bissau, estando tal autorização manuscrita junta a fls. 425, datada de 2.12.2016. Constitui facto notório (Artigo 412º, nº1, do Código de Processo Civil ) que a deslocação a países africanos acarreta riscos sérios para a saúde do viajante, sendo recomendada – mesmo oficialmente – a realização da denominada consulta do viajante.
A recomendação oficial do Governo Português para a realização da consulta do viajante, previamente a uma viagem à Guiné-Bissau, encontra-se em https://www.portaldascomunidades.mne.pt/pt/conselhos-aos-viajantes/g/196-gw#cuidados-de-saude, onde se afirma: «O viajante deverá aconselhar-se previamente junto do seu médico numa “consulta ao viajante” sobre a vacinação necessária e os cuidados básicos a manter.»
A nível mais geral, este tipo de consultas é realizado designadamente no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (https://www.ihmt.unl.pt/consulta-do-viajante/ ), constando doutros sites credíveis que a a vacina da febre-amarela é obrigatória para entrar em África, v.g.,  https://advancecare.pt/artigos/saude-e-bem-estar/vai-de-ferias-para-um-destino-tropical.
A partir do momento em que autorizou o menor a deslocar-se à Guiné-Bissau, o requerido comprometeu-se – do mesmo passo – em assegurar os cuidados básicos de saúde que essa deslocação importa, de acordo com a prática geral e conhecida, assumida pelo próprio Estado Português. Teria sido um ato irresponsável por parte da mãe do menor deslocar-se à Guiné-Bissau sem a realização da consulta do viajante para o menor.
Assim, há que atender e relevar o custo da consulta do viajante de € 53 (fls. 416) e o custo da vacina contra a febre-amarela de € 21,23 a fls. 415, cabendo ao requerido pagar 90% de tal despesa (€ 66,80), nos termos da Cláusula 26ª do regime de regulação das responsabilidades parentais. Não tem aplicação a segunda parte de tal cláusula porquanto o requerido, ao autorizar a viagem, autorizou todas as despesas médicas inerentes à mesma.
Já quanto ao recibo de fls. 418 no valor de € 89,89 (medicamentos), haverá que aferir, caso a caso, se os mesmos evidenciam conexão estreita e necessária com a viagem do menor à Guiné-Bissau e, por outro lado, se os mesmos serão também utilizáveis pela progenitora.
Assim, de acordo com a informação oficial do infarmed temos que :
§ O Xifaxan é ativo contra a maioria dos microrganismos patogénios que são responsáveis pela diarreia infeciosa aguda (http://app7.infarmed.pt/infomed/download_ficheiro.php?med_id=40537&tipo_doc=fi)
§ O Malarone tem duas indicações: para prevenir a malária e para tratar a malária (http://app7.infarmed.pt/infomed/download_ficheiro.php?med_id=40590&tipo_doc=fi)
§ A Ciproxina é utilizada em crianças e adolescentes, sob supervisão de um médico especialista, para o tratamento das seguintes infeções bacterianas: infeções pulmonares e brônquicas em crianças e adolescentes com fibrose quística; infeções complicadas do trato urinário, incluindo infeções que tenham atingido os rins (pielonefrite); exposição a antraz por inalação Ciproxina também poderá ser utilizada no tratamento de outras infeções graves específicas em crianças e adolescentes, quando o seu médico o considerar necessário (http://app7.infarmed.pt/infomed/download_ficheiro.php?med_id=1833&tipo_doc=fi).
§ O Ben-u-ron contém paracetamol como substância ativa, que atua aliviando a dor (analgésico) e diminuindo a febre (antipirético) (http://app7.infarmed.pt/infomed/download_ficheiro.php?med_id=53175&tipo_doc=fi).
Finalmente, o Advancis Pic zero Adesiv Prot Mosq constitui um Adesivo Protetor anti-mosquitos e anti-melgas, com óleo essencial de Citronela (https://www.pharmascalabis.com.pt/store/advancis-pic-zero-adesivo-protector-mosquitos/) e o Previpiq Tropics Roll-On 50ml protege contra as espécies de mosquitos mais comuns, estando indicado para adultos (maiores de 18 anos) que viajam para destinos tropicais e zonas de maior risco de transmissão de doenças pela picada do mosquito (https://www.pharmascalabis.com.pt/store/previpiq-tropics-roll-on-50ml/).
Deste modo, e viajando o menor na companhia da progenitora, pode inferir-se com o devido grau de certeza que, pelo menos, metade do Xifanan, do Malarone e do Advancis Pic Zero Adesiv Prot Mosq (€ 3,98 + € 5,80 + € 33,42 = € 43,20) se destinaram ao menor, tendo uma conexão estreita e necessária com a viagem à Guiné-Bissau, cabendo ao requerido pagar 90% de tal valor, ou seja, € 38,88.
No que tange à aquisição do computador e do teclado, raciocinou o tribunal a quo nestes termos:
«Relativamente às despesas no valor de € 836,45 cujo pagamento é peticionado pela requerente e que a mesma alega que são devidas de acordo com o ponto 29 do acordo de RRP, desconhece-se a que é que estas despesas respeitam.
A requerente acaba por vir dizer que neste valor está incluída a aquisição de um computador no valor de € 631,55€, mas não concretiza que outras despesas estão incluídas neste valor, deduzindo-se pelas faturas que a mesma apresentou em 12.12.16 que também estarão incluídas neste valor as despesas com a aquisição de um telemóvel para o filho, com a aquisição de uma capa para o telemóvel, com a aquisição de um cartão de memória para o telemóvel, com o carregamento do telemóvel e com a aquisição de um teclado.
Ora, a aquisição destes bens (computador, teclado, telemóvel, capa para o telemóvel, cartão de memória e carregamento do telemóvel) não constitui uma despesa com fardamentos, livros, material escolar, didático, desportivo e visitas de estudo, pelo que não corresponde a despesas necessárias e inerentes à preparação, início e decurso do ano escolar do menor.
Logo, tais despesas não se encontram abrangidas pela cláusula 29ª do acordo de RRP, pelo que não são devidas.»
Não se acompanha o raciocínio do tribunal a quo quanto às despesas com o computador e com o teclado.
A aquisição do computador e do teclado estão documentadas a fls. 438 e 439, sendo que, à data da aquisição do computador e teclado, o menor já tinha 12 anos (cf. fls. 65).
É sabido que, na própria escola pública, se recorre à utilização de computadores como instrumento de aprendizagem, quer no acesso a conteúdos técnicos e científicos, quer na elaboração de trabalhos, quer como meio complementar de formação, acedendo a explicações específicas sobre conteúdos curriculares. Ainda na década passada, ficou bem conhecida e divulgada a iniciativa governamental de facultar acesso ao Programa Magalhães[3], logo no ensino básico. O computador é, hoje, um instrumento imprescindível na pesquisa e acesso a informação científica, permitindo aceder a conteúdos pedagógicos específicos e gratuitos de elevado interesse, como é exemplo acabado as aulas de matemática e afins facultadas pela Fundação Khan Academy em www.pt-pt.khanacademy.org .
 Na literatura, e a título meramente exemplificativo, refere-se que: «Existem evidências substanciais de que a utilização da tecnologia como ferramenta, no processo de ensino e aprendizagem, tem efeito nas aprendizagens dos estudantes e nos resultados educacionais (Gulek & Demirtas, 2005). Neste sentido, o acesso ao uso das tecnologias de informação tem vindo a aumentar, bem como o esforço gradual na diminuição do ratio computador por aluno (Grant, Ross, Wang, Potter, & Wilson, 2004; Russell, Bebell, & Higgins, 2004; Grant, Ross, Wang, Potter, & Wilson, 2005)» - Fernando Dinis Batista, O computador portátil no ambiente de uma sala de aula numa escola do Alentejo Litoral. Ana Rita Costa Gonçalves, O Papel das TIC na Escola, na Aprendizagem e na Educação, 2012, p. 12, afirma que: «A Internet é uma base de dados e saberes para a educação, toda a informação está disponível com um simples clique. A vantagem de se utilizar a Web como ferramenta pedagógica é motivar os alunos para a excelência, dinamizar o conteúdo das suas aprendizagens e fomentar a autonomia e a criatividade essenciais à sua formação
A interpretação da Cláusula 29ª do acordo de regulação das responsabilidades parentais não pode alhear-se desta importante realidade, que é a literacia digital com o seu papel cada vez mais central na formação escolar, devendo ser objeto de uma interpretação declarativa e atualista de modo a que a aquisição de um computador e respetivo teclado se subsumem, ainda, às despesas necessárias e inerentes ao decurso do ano escolar, constituindo material didático relevante e necessário nos dias de hoje, sendo certo que este tipo de equipamento tem uma vida útil de, pelo menos, cinco anos.
Assim, cabe ao requerido suportar tais despesas (€ 631,55 + € 19,99) ao abrigo da cláusula 29ª do acordo em causa.
Termos em que proceder, parcialmente, a apelação.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando-se o requerido a pagar à requerente, a título de alimentos vencidos, a quantia global de € 757,22 (€ 66,80 + 38,88 + 631,55 + 19,99).
Custas pela apelante e pelo apelado, na vertente de custas de parte, na proporção de 7% e 93%, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Condena-se o recorrido no pagamento das custas do recurso na vertente de custas de parte, envolventes da taxa de justiça e dos honorários a mandatário suportados pela recorrente

Lisboa, 28.05.2019
Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
Higina Castelo

[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, da Relação de Lisboa de 22.1.2019, José Capacete, 15420/18.
[3] Sobre o Plano Tecnológico para a Educação e o Programa Magalhães, cf. Ana Rita Costa Gonçalves, O Papel das TIC na Escola, na Aprendizagem e na Educação, 2012, pp. 19, 33-34.