Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10141/2006-1
Relator: EURICO REIS
Descritores: MENORES
VALOR DA CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Nos processos de promoção e protecção instaurados no âmbito da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro) a atribuição de valor ao requerimento de abertura do processo não tem qualquer utilidade no que respeita aos critérios identificados nos nºs 2 e 3 do art.º 305º do CPC, sendo, portanto, legítimo argumentar contra a decisão recorrida que a prática de actos inúteis é algo que a Lei proíbe e classifica de ilícito (idem, art.º 137º).
Decisão Texto Integral: 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou a favor da menor B e, embora sem o referir, contra os progenitores biológicos da mesma, A e S, os presentes autos de acção declarativa com processo especial de promoção e protecção de menores (crianças e jovens) em perigo que, sob o n.º 10978/06, foram averbados ao 1º Juízo de Família e Menores do Tribunal da comarca de Sintra e nos quais foi proferido despacho liminar “... (confirmando) ao abrigo do disposto no art. 475º do CPC … a recusa de recebimento da presente petição/requerimento inicial por omissão da indicação do valor da causa.” (sic - fls 7).

Inconformado, o MINISTÉRIO PÚBLICO deduziu recurso contra essa decisão, pedindo “(porque) se mostram violados os art. 1º, 3º, 4º a), c), 6º, 11º, 72º, 73º nº 1 b), 100º, 102 n.º 1 e nº 2, 106º, 107º e 126º da LPCJP, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine a imediata prolação do despacho a que alude o art. 106º nº 2 da LPCJP” (fls 68), formulando, para tanto, as 6 conclusões que constam de fls 68, nas quais, em síntese, invoca o seguinte:
1. O Processo Judicial de Promoção e Protecção não é uma acção cível.

5. A atribuição de valor ao requerimento de abertura do processo judicial de Promoção e Protecção não tem qualquer utilidade ...
… .” (sic).

Porque ninguém foi sequer citado, não foram apresentadas contra-alegações, tendo o Mmo Juiz a quo sustentado a decisão recorrida, nos termos que constam de fls 71 e 72.

2. Considerando as conclusões das alegações do ora recorrente (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso – n.º 3 do art.º 668º do CPC e artºs 671º a 673º, 677º, 678º e 684º, maxime nºs 3 e 4 deste último normativo, e 661º n.º 1, todos do mesmo Código), a única questão a decidir nesta instância de recurso é a seguinte:
- o disposto no art.º 305º do CPC aplica-se ou não aos processos de promoção e protecção de menores (crianças e jovens) em perigo?

E sendo esta a questão que compete dirimir, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por terem sido cumpridas as formalidades legalmente prescritas (749º e 700º a 720º do CPC), tendo o Juiz Desembargador 1º Adjunto assumido a posição de relator nos termos definidos no art.º 713º n.º 3 do CPC.

3. Para o que aqui se discute relevam apenas os seguintes factos, que são inquestionáveis:
a) no requerimento inicial dos presentes autos, o MºPº não indicou qual o valor da causa;
b) facto esse que determinou que essa peça processual não fosse recebida pela Secretaria do Tribunal recorrido, recusa essa que foi confirmada através da decisão agravada.

4. Discussão jurídica da causa.
4.1. O disposto no art.º 305º do CPC aplica-se ou não aos processos de promoção e protecção de menores (crianças e jovens) em perigo ?
4.1.1. A situação espelhada neste processo demonstra bem como é perigoso esquecer os princípios que norteiam a Legislação relativa aos menores, incluindo a “Lei de protecção de crianças e jovens em perigo”, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (adiante designada apenas por LPCJP) – aliás, bastaria tão só tomar em consideração o previsto no art.º 1410º do CPC.
A serem verdadeiros os factos alegados, com todo este processado apenas se conseguiu prolongar a situação de perigo em que a menor estará a viver – o que, seguramente, não será, não é, o mais conveniente para a B.
Isto porque, sem margem para qualquer dúvida, o que aqui está em causa é uma questão puramente formal, uma vez que, efectivamente, é inequívoco e incontornável, face aos normativos citados pelo MºPº nas suas alegações, que a atribuição de valor ao requerimento de abertura do processo judicial de Promoção e Protecção não tem qualquer utilidade no que respeita aos critérios identificados nos nºs 2 e 3 do art.º 305º do CPC, sendo, portanto, legítimo argumentar contra a decisão recorrida que a prática de actos inúteis é algo que a Lei proíbe e classifica de ilícito (idem, art.º 137º).
Ainda assim, mas também por isso, a necessidade de proteger os superiores interesses dos menores em risco deveria ter levado as pessoas/entidades em litígio a usar, ou a faculdade concedida aos requerentes das acções declarativas – que esta manifestamente é, como resulta até do disposto no art.º 75º da LPCJP, cuja epígrafe, sintomaticamente, é «Requerimento de providências tutelares cíveis» – pelo art.º 476º do CPC (a saber: apresentar nova petição/requerimento inicial nos 10 dias subsequentes à recusa do recebimento afastando a irregularidade apontada, concordando-se ou não com a decisão) ou, procedendo o Juiz, de moto próprio e utilizando os poderes que lhe são conferidos pelo já citado art.º 1410º desse mesmo Código de Processo, à correcção do que entende ser uma falta cometida pelo requerente.
Prolongar o litígio é que é inaceitável e indesculpável tendo em atenção a natureza dos direitos que estão em causa no processo.
Citando Miguel Veiga citando Abel Salazar, o que vale para todos os juristas, “um advogado que só sabe de direito, nem de direito sabe ”.
E, não podendo os Juízes dar ordens aos Procuradores da República – sendo o inverso, por maioria de razão, igualmente verdadeiro – torna-se claro que resta aqui optar pela segunda das soluções antes aventadas, já que, repete-se, a presente acção com processo especial é mesmo uma acção cível (para além do já referido art.º 75º da LPCJP, tenha-se em conta que não há processos crime de jurisdição voluntária – idem, art.º 100º - e que os Tribunais de Família e Menores, aos quais compete dirimir este tipo de litígios – idem, art.º 101º - também não têm natureza penal e a todos os processos que neles correm termos é atribuído um valor), à qual se aplica o disposto no art.º 305º do CPC.
Para além disso, convirá recordar que, mesmo nos processos em que as decisões judiciais estão limitadas por critérios de legalidade estrita, o Juiz já pode alterar, findos os articulados, o valor dado à causa pelas partes, mesmo se ambas estiverem de acordo nesse montante, “(se) entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade” (art.º 315º n.º 1 do CPC) – o mesmo valendo se violar algumas das regras estabelecidas nos artºs 306º a 313º do mesmo Código – e bem assim que numa das quatro linhas mestras da Reforma do Processo Civil de 95/96 (v. Preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) se definia o objectivo de “(Garantir a) prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz …”, sendo certo que esse maior poder do julgador não pode ter-se por circunscrito ao estabelecido no art.º 265ºA do CPC.
Finalmente, o bem-estar de um menor é mesmo um direito imaterial, primeiro porque é um direito até constitucionalmente garantido e segundo porque, realmente, não é possível – é até indesejável e eticamente vicioso – atribuir um qualquer concreto valor económico ao bem-estar de uma criança já que esse bem jurídico tem um valor intangível, sendo, por outro lado, totalmente irrelevante que a Legislação em vigor apenas permita um recurso para a Relação uma vez que o mesmo acontece com os procedimentos cautelares (art.º 387º-A do CPC), processados estes aos quais é, sem margem para dúvidas, atribuído obrigatoriamente um valor.
Este mesmo raciocínio aplica-se, por exemplo, à protecção do ambiente - e genericamente a todos os outros direitos imateriais – e, que se saiba, ainda ninguém questionou a sua validade, lógica ou ontológica, em tais situações.
4.1.2. Pelo exposto, embora não com os fundamentos apresentados pelo recorrente, porquanto o disposto no art.º 305º do CPC se aplica mesmo aos presentes autos, importa revogar a decisão recorrida e, em sua substituição, determinar que, oficiosamente e ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo art.º 1410º do CPC, o Mmo Juiz a quo, corrigindo o requerimento inicial, atribua ao caso o valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 (art.º 312º do CPC), ordenando, em seguida, que os autos prossigam a tramitação prevista na LPCJP.
O que aqui, sem necessidade de apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, se declara e decreta.

5. Pelo exposto e em conclusão, neste processado de recurso a correr termos pela 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, com os fundamentos expressos no ponto 4 do presente acórdão, delibera-se, apesar de o disposto no art.º 305º do CPC se aplicar mesmo aos presentes autos, revogar, na íntegra, o despacho recorrido e, em sua substituição, determina-se que, oficiosamente e ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo art.º 1410º do CPC, o Mmo Juiz a quo atribua ao caso o valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 (art.º 312º do CPC), ordenando, em seguida, que os autos prossigam a tramitação prevista na LPCJP.
Sem custas.
Lisboa, 2007/01/16
(Eurico José Marques dos Reis)
(Ana Maria Fernandes Grácio)
(Eduardo Folque de Sousa Magalhães)