Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6894/16.0T8LSB.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1-Ainda que não tenha sido dado oportunidade à parte para se pronunciar sobre eventual condenação como litigante de má-fé, a violação do contraditório assim encenada não impõe a revogação da decisão, antes podendo conduzir à respetiva anulação.
2-Não é de anular a decisão se, no recurso, a parte já se pronunciou sobre a matéria.
3-Litiga de má-fé quem apresenta uma versão comprovadamente falsa dos factos que fundamentam o seu despedimento.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


RELATÓRIO:


AAA, nos autos à margem referenciados em que é trabalhadora/A e empregadora/R BBB, LDA, notificada da douta sentença que antecede e com ela não se conformando, na parte em que a condenou como litigante de má-fé, vem dela interpor o presente recurso.

Pede a revogação da sentença.

Formula as seguintes conclusões:

1-Foi a recorrente condenada como litigante de má-fé, porquanto entendeu a douta decisão recorrida que teria alterado conscientemente a verdade dos factos para obter uma decisão favorável nos autos;
2-Ora o que sucedeu foi não ter a recorrente conseguido provar a versão dos factos que alegou, sendo que, como é sabido, é sempre muito difícil aos trabalhadores que permanecem na empresa, neste caso, a R., ora recorrida, entrarem em conflito com a versão patronal, ainda que no ambiente solene e isento do Tribunal, por receio, justo ou não, de vir a ter problemas no futuro;
3-E sendo certo que só ela, recorrente, sabe o que sentiu quando interpelada pelo responsável pela cozinha e porque reagiu como o fez, ainda que não exatamente como foi provado.
4- No limite, sempre que haja duas versões em confronto, não provar a sua pode causar ao trabalhador, a prevalecer o entendimento adotado, a condenação como litigante de má-fé.
5- Entende, assim, a recorrente não se verificar a previsão, no seu caso, do artigo 542º-1 do C.P.C., mostrando-se ainda, face a debilidade económica da recorrente, o valor da sanção excessivo.
6-Acresce ainda, que não teve a recorrente oportunidade de, dado a questão não ter sido suscitada pela R. previamente se pronunciar sobre a questão, pelo que se traduz a decisão recorrida numa decisão surpresa vedada pelo artigo 3º-3 do C.P.C
7-Pelo que revogou a douta decisão recorrida os artigos 3º-3 e 542º-1 do C.P.C.

Não foram proferidas contra-alegações.

O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer no qual se pronuncia pela revogação da decisão por violação do disposto n o Artº 3º/3 e 542º do CPC.
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Foi proferida sentença que condenou a ora Recrte. no pagamento de 5UC, tendo por base a litigância de má-fé. Ali se consignou: “A litigância de má-fé constitui uma questão de conhecimento oficioso, que pode e deve ser apreciada, ainda que nenhuma das partes a invoque8.
Apreciando a conduta processual da Autora afigura-se evidente que a mesma deduziu oposição (ao despedimento) cuja falta de fundamento não podia ignorar. Conforme resulta dos autos e da factualidade provada, a Autora alterou a verdade dos factos conscientemente e com o intuito de obter a declaração de ilicitude do despedimento (apresentando uma versão - ter acenado com a faca de cozinha, em posição defensiva, com vista a evitar eminente agressão; receando pela sua vida e integridade física - que se revelou contrária à verdade dos factos).
Tal atuação não pode deixar de ser considerada dolosa porquanto atuou processualmente com plena consciência da falta de fundamento da sua pretensão.
Não se afigura existirem dúvidas de que a mesma litigou de má-fé.
***

As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.

Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – Não se verifica litigância de má-fé?
2ª – O valor da sanção é excessivo?
3º - A decisão, por ter sido proferida de surpresa, está vedada?
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O DIREITO:

Razões de lógica processual impõem-nos que iniciemos a discussão pela última das questões acima elencadas – a decisão, por ter sido proferida de surpresa, está vedada?
A esta questão dedica a Recrte. um único parágrafo no qual exprime que este nem sequer é o ponto fundamental da questão.
Do parecer exarado pelo Ministério Público emerge, porém, que “tudo estaria correto… se a Mmª Juíza tivesse informado a parte de que se afigurava como possível que ela viesse a ser condenada como litigante de má-fé e lhe tivesse dado a possibilidade e prazo para se pronunciar sobre tal matéria o que não se verificou” o que impõe a revogação de decisão.

Compulsados os autos, é uma evidência que a litigância de má-fé foi constatada pela julgadora em fase de sentença e aí obteve pronúncia.

É certo que o Artº 3º/3 do CPC dispõe que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

O princípio assim consagrado – o do contraditório - é um corolário do princípio do dispositivo e traduz-se num dos princípios basilares que enformam o processo civil, não assumindo, contudo, como daquele dispositivo legal emerge, um carater absoluto.

A violação do contraditório, patente no caso concreto, não é, porém, de molde a conduzir a uma revogação da decisão. Pode, quanto muito, levar a que a mesma se anule tendo em vista o respetivo exercício. É a consequência que retiramos de quanto se dispõe no Artº 195º/1 do CPC.

No caso sub judice, não só a parte afetada considera a irregularidade cometida como não fundamental para a apreciação da questão, como ainda a anulação se traduziria numa repetição de atos entretanto perpetrados – ou seja, dar a possibilidade à parte afetada pela decisão de se pronunciar.
Esta atividade já foi levada a cabo no presente recurso, pelo que importa agora que nos detenhamos sobre os argumentos já esgrimidos.
Deste modo, revelando-se inútil a anulação do processado, passamos a conhecer da questão de fundo.

E com isto nos deteremos sobre a primeira das suscitadas questões – não se verifica litigância de má-fé?
Antes de avançarmos no conhecimento desta questão cumpre situar as razões da condenação.

Conforme emana do extrato de decisão acima transcrito, o fundamento para a condenação situa-se na conclusão que que “a Autora alterou a verdade dos factos conscientemente e com o intuito de obter a declaração de ilicitude do despedimento (apresentando uma versão - ter acenado com a faca de cozinha, em posição defensiva, com vista a evitar eminente agressão; receando pela sua vida e integridade física - que se revelou contrária à verdade dos factos).

Compulsados os autos, nomeadamente o articulado de resposta apresentado pela A. ali se consignou que o Sr. (…), completamente descontrolado, cresceu para a A., proferindo expressões insultuosas, evidenciando agredi-la pelo que esta, entalada contra o balcão e receosa de ser agredida física e moralmente, lhe acenou com uma faca de cozinha, em posição defensiva, com vista a evitar a eminente agressão, sendo totalmente falso o referido no requerimento fundamentador (Artº 4º, 5º e 6º).

Veio a provar-se, entre outros, que:

6.-No Sábado, dia 17 de Outubro de 2015, a Autora dirigiu-se à cozinha do Restaurante (…), com o objetivo de ir buscar tabuleiros daquela cozinha do restaurante (…) para a cozinha do buffet.
7.-O trabalhador (…)  (superior hierárquico da Autora e responsável pela cozinha do restaurante (…) disse à Autora que não autorizava a mesma a levar os tabuleiros.
8.-O Trabalhador (…) disse ainda à Autora que existiam tabuleiros na cozinha do Buffet, que aqueles eram necessários naquela cozinha e que a mesma deveria lavar os tabuleiros existentes na cozinha do Buffet e utilizá-los.
9.-A Autora não acatou a ordem do trabalhador (…) e, de forma brusca, retirou-os, agarrando os mesmos para os levar.
10.-Na sequência do referido em 9, e enquanto discutiam por causa dos tabuleiros (a Autora insistindo que os levava e o trabalhador (…), dizendo-lhe que não os podia levar), a Autora agarrou numa faca de cozinha que se encontrava em cima do balcão, com aproximadamente 30 cm de lâmina, e apontou-a em direção ao trabalhador (…).
11.-Ao mesmo tempo que apontava a faca de cozinha, proferiu as seguintes expressões: “anda cá”, “eu mato-te”.
12.-No momento referido 10 e 11, chegou trabalhadora (…) (empregada de limpeza) que segurou a mão da Autora que empunhava a faca e retirou-lha ao mesmo tempo que lhe pedia para ter calma.
13.-Logo após a chegada da trabalhadora (…), chegou a trabalhadora (…) que presenciou ainda a Autora com a faca na mão.
14.-A trabalhadora (…) apelou igualmente à calma da Autora, dizendo-lhe, nomeadamente “pensa nos teus filhos”.
15.-Encontrava-se igualmente na cozinha o trabalhador (…) que presenciou a discussão entre o trabalhador (…) e a Autora, bem como a faca na mão desta. 
17.-No momento referido em 11, o Trabalhador (…) teve medo e sentiu-se ameaçado pela Autora.

É da compaginação entre esta factualidade e a versão apresentada pela A. que se hão-de retirar conclusões para a questão que n os ocupa.

A litigância de má-fé, tendo como limite inultrapassável a garantia constitucional de acesso aos tribunais, tem como pressuposto a impossibilidade de, ao abrigo de tal garantia, as partes quererem fazer valer teses infundadas, injustas, ilegais, com o manifesto propósito de descredibilizar a Justiça e obstaculizar à célere resolução dos conflitos.

Assim, se é verdade, que não se pode vedar ao cidadão o acesso á Justiça e aos tribunais, também é verdade que estes têm o dever de acatar as decisões judiciais, e, previamente, de formular pretensões justas e fundadas no direito.

É por isso que, conforme decorre do que dispõe o Artº 542º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e indemnização á parte contrária.

Litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou tiver alterado a verdade dos factos (Artº 542º/2-a) e b) do CPC).

Como é sabido, após a reforma processual de 1995, e com a finalidade de atingir uma maior responsabilização das partes, passou a sancionar-se, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária. E, assim incorre em litigância de má-fé quem atuar com grave negligência.

Ora, “a lide diz-se temerária quando”... as “regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente” (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 219).

Ponderou-se na sentença que a A., com a intenção de obter uma declaração de ilicitude do seu despedimento, apresentou uma versão falsa dos factos ocorridos e que o fundamentaram.

Compulsada a matéria fática cuja prova se obteve, constatamos que a conclusão a retirar não pode ser senão aquela a que chegou a sentença recorrida, dada a factualidade cuja prova se obteve, factualidade esta presenciada por diversas pessoas e que a A. não só não podia ignorar, como, resulta evidente, que pretendeu alterar.

E, contrariamente ao que alega, não se trata aqui de mera incapacidade de provar a sua versão. Trata-se de prova de versão absolutamente oposta, o que é bem distinto.

Em presença desta factualidade, não podemos senão concluir pelo bem fundado da condenação por litigância de má-fé.

Resta a segunda questão – o valor da sanção é excessivo?
Na sentença impôs-se a multa de 5UC, tendo por base o disposto no Artº 27º/1 e 2 do RCP.
O Artº 542º/1 do CPC dispõe que o litigante de má-fé é condenado em multa.

Dispõe o Artº 27º do RCP:

1-Sempre que na lei processual for prevista a condenação em multa ou penalidade de algumas das partes ou outros intervenientes sem que se indique o respetivo montante, este pode ser fixado numa quantia entre 0,5 UC e 5 UC.
2-Nos casos excecionalmente graves, salvo se for outra a disposição legal, a multa ou penalidade pode ascender a uma
quantia máxima de 10 UC.
3-Nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.

4-O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.
5-A parte não pode ser simultaneamente condenada, pelo mesmo ato processual, em multa e em taxa sancionatória excecional.
6-Da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso, o qual, quando deduzido autonomamente, é apresentado nos 15 dias após a notificação do despacho que condenou a parte em multa, penalidade ou taxa.

Alega a Apelante que, em face da sua debilidade económica, o valor da sanção é excessivo.

Resulta dos autos que foi deferido pedido de proteção jurídica tendo em vista apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e encargos e atribuição de agente de execução.

Considerando o valor abstratamente aplicável – entre 2UC e 100UC – e a conduta sancionada, não obstante a Apelante ter revelado condições que lhe permitiram beneficiar de apoio judiciário, afigura-se-nos que nada tem de excessivo o valor cominado. É um valor que se situa muito perto do limite mínimo aplicável e que, tendo em conta o carater desmotivador da aplicação da sanção, também não deve ser irrisório.

Razão pela qual improcede também esta questão.

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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Custas pela Recrte..
Notifique.



Lisboa, 8.03.2017



MANUELA BENTO FIALHO
SÉRGIO ALMEIDA
CELINA NÓBREGA