Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4847/2006-7
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- A acção de interdição por anomalia psíquica pode findar, decretando-se a interdição, se o interrogatório e exame  do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada (artigo 952.º/1 do Código de Processo Civil).
II- Se assim não suceder, o processo deve prosseguir, não devendo a acção ser julgada improcedente (artigo 952.º/2 do C.P.C.).
III- E por maioria de razão  deve prosseguir a acção  quando decorre do relatório pericial sofrer a requerida de perturbação afectiva bipolar sendo previsível que em situações de descompensação clínica (maníaca e eventualmente depressiva) não possua capacidade para reger sua pessoa e bens

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1.    O Mº Público propôs, contra A. […], acção com processo especial, a correr termos na […] Vara Cível de Lisboa, pedindo se decrete, com fundamento em anomalia psíquica, a interdição da requerida.
   
  Contestou esta, impugnando os fundamentos da pretendida interdição - e concluindo, assim, pela improcedência da acção.
 
Efectuado exame pericial, no despacho saneador, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente.
   
Inconformado, dessa decisão, veio o requerente interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :

-   A.[…] apresenta uma perturbação afectiva bipolar (tipo - I), que é uma doença psiquiátrica caracterizada por variações acentuadas do humor, com crises repetidas de depressão e mania.

-   Nas fases de descompensação - crises - verifica-se um compromisso evidente a nível do juízo crítico e da adaptação à realidade, traduzido, nomeadamente, por ideação delirante e tendência para a prodigalidade (despesas excessivas, dívidas e ofertas exageradas), não possuindo capacidade para reger a sua pessoa e bens.

-    Não é de excluir que nos períodos inter-críticos mantenha essa capacidade.

-  Circunstâncias stressantes podem actuar como factores precipitantes de crises maníacas ou depressivas.

-    Não há nenhum tratamento que cure a doença por completo, pelo que se trata de uma afectação permanente.  

-   Com a participação activa e, porventura, instigadora, do seu actual marido, praticou, antes e, possivelmente, depois de ter contraído matrimónio, significativos actos de alienação do seu património, cujo alcance, amplitude, causas e efeitos não foram, ainda, apurados.

-   Em circunstâncias que, genericamente, coincidem com períodos de crise e internamento, apresentou queixas contra o marido, por extorsão e ameaças, encontrando-se os processos por elas originados ainda em fase de investigação.

-  Uma vez que não se chegou, sequer, à fase de produção de prova, tendo a acção sido decidida na sequência de audiência preparatória, não foi possível apurar se as motivações destas queixas ocorreram como factores desencadeadores das crises ou no contexto destas.

-  Também não se apurou se se verificaram (e poderão a verificar-se no futuro) circunstâncias particularmente perturbadoras que façam despoletar uma crise, nem se, para além dos internamentos cujo conhecimento foi trazido ao processo, ocorreram entretanto outras crises, quer de carácter maníaco quer de carácter depressivo.

-   A personalidade da requerida caracteriza-se por uma particular vulnerabilidade, com compromissos a nível da própria formação da vontade, embora, pelos mesmos motivos, não tenha sido, até ao momento, possível apurar qual a extensão e profundidade destas limitações, mesmo nos períodos entre crises.

-   Perante este quadro, verifica-se uma real desprotecção da requerida, sobretudo nos períodos críticos, a que o direito e o seu aplicador não podem ficar indiferentes.

-    No plano do direito a constituir, registe-se que a Lei de Saúde Mental, no seu art. 46º, prevê a publicação de um diploma sobre o problema da gestão do património dos doentes mentais não declarados incapazes, o que indicia a preocupação do legislador em encontrar soluções jurídicas mais dúcteis do que as que são proporcionadas pelos actuais institutos da interdição e da inabilitação.

-    Neste mesmo sentido se pronunciou o Conselho da Europa no seu Projecto de Recomendação sobre o tema, ao afirmar no art. 7º, nº1, que os Estados Membros devem assegurar-se da existência de mecanismos de protecção das pessoas vulneráveis atingidas por perturbação mental, em particular das que não têm capacidade para dar o seu consentimento ou que possam não ser capazes de se opor às violações dos direitos do homem de que são objecto.

-   O problema coloca-se com particular acuidade no caso dos doentes mentais intermitentes, em que devem ser planeados os intervalos não lúcidos.

-   No plano do direito constituído deverá, antes de mais, ter-se em conta que ninguém poderá ser impedido de exercer livremente os seus direitos, apenas se admitindo a restrição a essa liberdade na estrita e exacta medida necessária ao suprimento de uma incapacidade, ela própria limitadora desse exercício.

-   O facto de a acção ter sido decidida na sequência de audiência preparatória não permitiu a fase de produção de prova que, no caso concreto, e tendo em conta as lacunas apontadas, seria relevante para adoptar a solução mais ajustada, pelo que se julga de toda a conveniência o prosseguimento do processo, sem exclusão dessa fase processual.

-  A partir dos elementos constantes dos autos não pode excluir-se que o nível de limitações à formação da vontade da requerida e, mesmo, ao seu discernimento mínimo nos períodos críticos, seja de molde a colocá-la numa situação de desprotecção que exija a aplicação de medida concreta no sentido de suprir tais incapacidades.

-  Tendo em conta que as limitações em causa se verificam, sobretudo, no plano da gestão do património, a medida mais ajustada será a de inabilitação, devendo nomear-se curador, a quem incumbirá, em parte, a administração do património da inabilitada, devendo ainda, atento o potencial conflito com o marido  acerca dessa administração, haver lugar à constituição de conselho de família.

-   Tal solução implica que se avance na produção de prova, de modo a delimitar com precisão quais os actos de disposição de bens que seriam abrangidos pela medida, podendo, desde já, adiantar-se que o deveriam ser todos aqueles em que estivessem envolvidos valores relevantes, incluindo a concessão de poderes de representação para os mesmos.

-   A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 152º do C.Civil, 952º, nº 2, e 954º, ambos do C.P.Civil, pelo que deverá ser substituída por outra que faça prosseguir a acção no sentido de vir a determinar o conteúdo concreto da medida de inabilitação a aplicar à requerida ou, se tal não for entendido, a faça prosseguir para a fase de produção de prova.
     
Em contra-alegações, pronunciou-se a apelada pela confirmação do julgado.
     
Colhidos  os vistos legais, cumpre decidir.

2.    Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :

-    A requerida A. […] nasceu no dia 26/8/45.

-    Em 9/1/91 casou com M.[…], vindo o casamento a ser dissolvido por óbito do cônjuge marido em 23/3/99.

-    A requerida contraiu novo matrimónio, em 30/8/2002, com V.[…].

-   Por óbito do falecido marido herdou, entre outros bens, três fracções autónomas, tendo vendido a situada na Amadora e adquirido a casa onde vive com o actual marido.

-   A requerida apresenta perturbação afectiva bipolar (tipo - I), cujas primeiras manifestações aconteceram por volta dos 17 anos, altura em que foi sujeita ao primeiro internamento.

-    A requerida foi sujeita a internamentos vários.

-    Encontra-se sujeita a terapêutica psico-farmacológica, sendo seguida regularmente na consulta de psiquiatria do Hospital Júlio de Matos.

-   É previsível que em situações de descompensação clínica (maníaca e eventualmente depressiva) não possua a capacidade para reger a sua pessoa e bens, não se excluindo a manutenção dessa capacidade durante os períodos inter-críticos intervalos livres entre as crises).
 
3.    Nos termos dos arts. 684º, nº3, e 690º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente.
   
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da decisão que, logo no despacho saneador, indeferiu o pedido de interdição da requerida.
   
 Resulta do disposto no art. 952º, daquele diploma que, não fornecendo o respectivo interrogatório e exame elementos suficientes para se apurar da sua incapacidade, deve a acção de interdição prosseguir - podendo, na fase de instrução, ser ordenado novo exame médico do requerido.
   
No caso concreto, decorre do relatório pericial sofrer a requerida de perturbação afectiva bipolar - sendo previsível que, em situações de descompensação clínica (maníaca e eventualmente depressiva), não possua a capacidade para reger a sua pessoa e bens.
     
Suscitando-se, pois, a tal respeito, fundadas dúvidas, entende-se indispensável que, em sede de instrução, se proceda a diligências, incluindo a eventual efectivação de novo exame, tendo em vista apurar da natureza e implicações, de carácter permanente ou transitório, da verificada incapacidade - bem como, sendo caso disso, da forma mais adequada de a suprir.    
     
Ao invés do decidido, impor-se-ia, assim que, para o efeito, seguisse a acção os respectivos termos - procedendo, nessa medida, as alegações do apelante.

4.   Pelo exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que determine o prosseguimento da causa, em conformidade com o supra referido.
     
Custas a fixar a final.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007

(Ferreira de Almeida - relator)
(Salazar Casanova - 1º adjunto)
(Caetano Duarte - 2º adjunto)