Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
741/21.9Y4LSB.L2-9
Relator: MADALENA CALDEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PESSOAS COLECTIVAS
IMPUTAÇÃO ORGÂNICA
IDENTIFICAÇÃO DO REPRESENTANTE
RESPONSABILIDADE DO DONO DA OBRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - No regime contraordenacional vários são os modelos de imputação de responsabilidade às pessoas coletivas, a saber: o modelo de imputação orgânica, em que o ato ilícito tem de ser decidido e/ou praticado pelos órgãos da pessoa coletiva; o modelo de imputação representativa, em que o ato ilícito tem de ser decidido e/ou praticado por órgão da pessoa coletiva ou por representantes/mandatários dessa mesma pessoa; e o modelo de imputação funcional, em que o ato ilícito tem de ser  decidido e/ou praticado por órgão da pessoa coletiva ou por representantes/mandatários ou ainda por funcionários, agindo sempre em nome ou por conta da pessoa coletiva, desde que não se demonstre que o agente atuou contra ordens ou instruções da pessoa coletiva ou que atuou no seu próprio interesse.
II - No Regime Geral das Contraordenações a letra da lei, concretamente do artigo 7.º, n.º 2, inculca que o legislador terá pretendido consagrar o modelo de imputação orgânica, a que não será alheio o facto de o referido RGCO ter sido criado em 1982.
III - As dificuldades práticas deste regime de imputação orgânica e o facto de geraram significativas lacunas de impunibilidade contraordenacional estão na origem de uma corrente doutrinal e jurisprudencial hoje maioritária que advoga uma interpretação extensiva (apelidada por outros de atualista) do segmento normativo “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”, de modo a incluir, para além dos órgãos, também os representantes e os trabalhadores da pessoa coletiva, desde que atuem em nome da pessoa coletiva, interpretação extensiva que consagra o modelo mais amplo de imputação funcional.
IV - Mesmo no modelo mais restritivo de imputação orgânica não é de exigir a prova da identificação (do nome, biográfica, portanto) da pessoa física que atuou como titular do órgão, relevando apenas a sua identificação funcional, dado que esta já permite imputar a decisão e/ou a prática da conduta típica ao órgão que vincula a vontade coletiva.
V - O dono da obra que contratou os serviços de um terceiro para lhe disponibilizar contentores destinados à recolha provisória dos entulhos de obra e proceder ao seu posterior transporte para o seu destino final comete a contraordenação prevista e punida pela conjugação dos artigos 12º, do n.º 4, e 31º, n.º 1, alínea d),  i), ambos do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação nº 263/AML/2014, se esses contentores tiverem ocupado a via pública sem prévia licença camarária.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Em processo de contraordenação a sociedade “A” foi condenada, por decisão datada de 17 de junho de 2021, proferida pela Câmara Municipal de Lisboa, pela prática:
- Da contraordenação prevista e punida pelos artigos 23º e 31º, n.º 1, al. c), xii), ambos do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação nº 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014 (ROVPCEO), numa coima no montante de €4.640; e
- Da contraordenação prevista e punida pela conjugação dos artigos 12º, do n.º 4, e 31º, n.º 1, alínea d), i), ambos do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação nº 263/AML/2014, numa coima no montante de €6.960.
Em cúmulo jurídico numa coima única de €9.750,00.
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Por sentença datada de 20.09.2022, proferida no âmbito de processo de impugnação judicial da referida decisão da Câmara Municipal de Lisboa, decidiu-se:
- Julgar não verificadas as nulidades invocadas.
- Manter a decisão administrativa que condenou a Recorrente A, pela prática da contraordenação prevista e punida pelos artigos 23.º e 31.º, n.º 1, alínea c), ponto xii), ambos do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014, numa coima no montante de €4.640 (quatro mil seiscentos e quarenta euros).
- Manter a decisão administrativa que condenou a A pela prática da contraordenação prevista e punida pelos artigos 12.º, n.º 4, e 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i), do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de outubro de 2014, numa coima no montante de €6.960 (seis mil novecentos e sessenta euros).
- Em cúmulo jurídico das coimas, manter a decisão administrativa que condenou a Recorrente A na coima única de €9.750 (nove mil setecentos e cinquenta cêntimos).
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Recurso da decisão
Inconformada, a arguida A interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (que transcrevemos):
CONCLUSÕES
1ª ─ Na impugnação judicial a Recorrente, invocando que a responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas não tem carácter objectivo, alegou que os autos de notícia e a decisão administrativa carecem de factos essenciais à prolação de uma decisão de condenação e, por isso, defendeu a sua absolvição.
2ª ─ Com efeito, dispõe o artigo 7.º, números 1 e 2, do R.G.C.O., que a responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas não tem carácter objectivo, já que pressupõe a prática do facto típico pelos seus "órgãos" no exercício das suas funções.
3ª ─ O termo “órgãos” deva ser identificado com as pessoas físicas que, enquanto tais, actuam em nome do ente colectivo.
4ª ─ A douta sentença recorrida, repetindo nessa parte a decisão administrativa, apesar de várias vezes escrever a “Arguida, representada pelo seu gerente”, em lado algum afirma que o seu Gerente (quem?) praticou qualquer dos factos de que acusa a Recorrente ou, o que também lhe é exigível, em lado algum identifica essa pessoa (até para verificar se era gerente).
5ª ─ Carecem, por isso, os autos de notícia e a decisão administrativa de factos essenciais à prolação de uma decisão de condenação da Recorrente.
6ª ─ Apreciando a questão, a douta sentença recorrida (a de que aqui se recorre, proferida para suprimento da nulidade declarada pela Relação), debruçando-se sobre o artigo 7º, número 2, do RGCO, diz que esse normativo abrange quer os representantes de direito da pessoa colectiva quer os seus representantes de facto, os próprios trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva ou equiparada estão abrangidos pelo normativo, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas e, apoiando-se na jurisprudência que cita e transcreve, conclui que a não identificação da concreta pessoa física que actuou em nome da pessoa colectiva não determina a nulidade da decisão administrativa.
7ª ─ Discorda-se desse entendimento, porque
 7ª-A ─ Quanto à jurisprudência acolhida, em nenhum dos casos ela é susceptível de aplicação, ao menos da forma directa com que a sentença o faz – com os fundamentos invocados na parte expositiva;
7ª-B ─ Na douta sentença recorrida (tal como já na decisão administrativa) refere-se amiúde e de forma abstracta e mecânica a “A…, representada pelo seu gerente”, sem identificar esse gerente e sem dizer que factos ele praticou, e depois na fundamentação da matéria provada alude-se a dois trabalhadores, que afinal parece que teriam praticado os actos, sem que se estabeleça qualquer conexão ou ligação quanto à sua inserção na empresa e a cumprimento de ordens.
8ª ─ Daí resulta contradição insanável sobre a quem se imputam os factos, se ao gerente (que não se identifica minimamente), se aos trabalhadores.
9ª ─ Tudo isto estabelece, ao nível da factualidade apurada, uma situação de confusão tal que não possibilita o conhecimento do que se considerou relevante e decisivo.
10ª ─ Do que decorre errada interpretação e aplicação da lei, em violação do disposto no número 2 do artigo 7º do RGCO, assim se acolhendo uma ilegal imputação objectiva da responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas.
11ª ─ Na parte da “fundamentação da matéria de facto” a douta sentença recorrida consigna que eram os trabalhadores H, F e G que estavam a trabalhar na obra.
12ª ─ Assim, apesar das várias referências à Recorrente “representada pelo seu gerente”, o certo é que, consigna-o a douta sentença recorrida, eram meros trabalhadores que se encontravam na execução dos trabalhos.
13ª ─ Não corresponde, portanto, tal repetida afirmação a qualquer verificação de facto por parte dos agentes da CML.
14ª ─ A situação dos autos não é subsumível ao disposto no nº 1 do artigo 7º do ROVPEO (que se aplica nas situações definidas no artigo 2º) – pelo que não está sujeita a atribuição de licença/alvará.
15ª ─ O artigo 2º aplica-se à ocupação do domínio público com estaleiros de obras de edificação pela utilização de tapumes, vedações, andaimes, condutas para descargas de entulhos, depósitos de materiais e entulhos, amassadouros, contentores, cargas e descargas, bombagens de betão, gruas, guindastes.
16ª ─ Nos termos da alínea c) do artigo 3º do ROVPEO, estaleiros são “os locais onde se efectuam trabalhos de edificação, enquanto actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou reabilitação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência, assim como os locais onde se desenvolvem actividades de apoio directo aos mesmos”.
17ª ─ Como se reconhece no processo administrativo, a Recorrente executava obras de conservação no 3º Andar Direito do nº 6 da Rua Cidade de Malange, em Lisboa. A actividade de estaleiro dessas obras de conservação decorreu sempre no interior do edifício.
18ª ─ A situação não é, portanto, subsumível à previsão do nº 1 do artigo 7º, conjugado com o artigo 2º e com a alínea c) do artigo 3º do ROVPEO.
19ª ─ Para além do estaleiro no interior do imóvel, apenas existia um contentor no exterior.
20ª ─ A essas situações aplica-se o regime que a própria Câmara Municipal enuncia no Guia de Apoio Técnico ao ROVPEO, ao elencar a questão 1.9 e nos exactos termos transcritos no Corpo destas Alegações.
21ª ─ A situação dos autos corresponde precisamente à questão elencada sob esse número 1.9, realização de obras num apartamento e não é possível colocar o entulho no interior do lote.
22ª ─ E a resposta dada no Guia de Apoio Técnico – contratação de um operador licenciado (no caso a empresa B) que, no âmbito da sua actividade, faz o tratamento e a remoção do entulho, foi precisamente o que fez a Recorrente.
23ª ─ Diz a douta sentença recorrida que “o Guia de Apoio Técnico ao Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras não se sobrepõe ao previsto no próprio Regulamento…”.
24ª ─ Com o devido respeito por tal entendimento, dele se discorda – o Guia de Apoio Técnico insere-se no regime definido pelo Regulamento, funciona como “lei interpretativa” do Regulamento, não há qualquer contradição entre eles.
25ª ─ A situação respondida na Questão 1.9, precisamente igual à dos autos, é diferente daquelas a que se refere o nº 1 do artigo 7º, conjugado com o artigo 2º e com a alínea c) do artigo 3º do Regulamento.
26ª ─ E, sendo situação diferente, tem também regime diferente.
27ª ─ Não são, assim, aplicáveis in casu as normas legais com base nas quais a CML condenou a Recorrente – pelo que não cometeu as contraordenações de que vem acusada.
28ª ─ Ao decidir como fez violou a douta sentença recorrida, por errada interpretação e aplicação, entre outros, o artigo 7º do RJCO, bem como os artigos 2º, 3º, 7º, 19º, 23º, 31º, do ROVPEO.
Termos em que, e nos mais de douto suprimento, deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a Recorrente absolvida.
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Resposta do Ministério Público
O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, tendo apresentado as seguintes conclusões (que transcrevemos):
CONCLUSÕES:
- Não obstante existir jurisprudência que entenda que a responsabilidade das pessoas coletivas não existe quando a contraordenação tenha sido praticada por pessoas físicas apenas qualificadas como agentes ou auxiliares, entende-se que, no caso concreto, deverá apurar-se se essas pessoas físicas atuaram em nome e/ou por conta do interesse do ente coletivo.
- No caso concreto, apurou-se que os trabalhadores que se encontravam no local, agiam em nome da A e sob as ordens desta.
- Um regulamento interno não derroga uma lei.
- A situação em apreço está abrangida pelo Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras.
Desta forma, bem entendeu o tribunal quando manteve a decisão administrativa da Câmara Municipal de Lisboa.
Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça.
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O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Parecer do Ministério Público junto da Relação
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416º, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nada acrescentou de relevante.
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Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).
Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal, pela ordem em que foram invocadas:
1. A violação do disposto no artigo 7º do Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), por falta de identificação da pessoa física que, em nome da Recorrente, terá praticado as contraordenações.
2. A inaplicabilidade à situação em apreço nos autos do artigo 7º, n.º 1, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014, norma incriminadora aplicada pela autoridade administrativa.
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A Decisão Recorrida:
A decisão recorrida tem o seguinte teor (que se transcreve parcialmente, nas partes mais relevantes):
Da necessidade de identificação da pessoa concreta física para imputação da contra-ordenação a pessoa colectiva
Alega a recorrente a nulidade da decisão administrativa por ausência de identificação, na matéria de facto provada, da concreta pessoa física que terá actuado e a caracterização da sua ligação ao ente colectivo.
Cumpre apreciar e decidir.
Determina o artigo 58.º, do Regime Geral das Contra-ordenações, que
“1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
 c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.
 3 - A decisão conterá ainda:
a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;
b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.”
Estatui o artigo 7.º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-ordenações, que
“2 - As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.”.
Este normativo abrange quer os representantes de direito da pessoa colectiva quer os seus representantes de facto e bem assim as “pessoas colectivas” em sentido jurídico estrito e as entidades “equiparadas” (que incluem as “sociedades irregularmente constituídas” e as meras “associações de facto”) - cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/2003 (in www.tribunalconstitucional.pt).
Segundo o citado aresto, o “resultado interpretativo assim obtido não se mostra, portanto, violador do princípio da tipicidade criminal e, tratando-se de crime cometido por representante, mesmo que apenas “de facto”, do ente colectivo, em cujo nome e interesse actua, não se mostra desrespeitado o princípio do carácter individual da responsabilidade penal. O ente colectivo não será responsabilizado por factos de terceiro, mas sim por factos praticados por um elemento da sua organização, actuando em seu nome e no seu interesse e sem desrespeitar ordens ou instruções de “quem de direito”.
Os próprios trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva ou equiparada estão abrangidos pelo normativo, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas.
De acordo com a jurisprudência, “a não identificação da pessoa física que perpetrou o facto ilícito ou o conjunto de pessoas que para ele contribuiu, na estrita medida em que tal não é elemento necessário à existência de responsabilidade de uma pessoa colectiva (por acção ou omissão) é irrelevante, bastando para tal que se estabeleça um nexo causal entre si e o acto ilícito e se não prove a exclusão da sua responsabilidade. Isto é, tudo se reconduz a uma questão de facto, no constatar que é possível imputar a ilicitude e a culpa a uma conduta da recorrente, qualquer que tenha sido o actor ou actores individuais.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 82/12.2YQSTR.E1, in www.dgsi.pt, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 3638/18.6T8CSC.L1-5, disponível in www.dgsi.pt).
Do cotejo das citadas normas legais e acompanhando o entendimento jurisprudencial a que aludimos, resulta que a não identificação da concreta pessoa física que actuou em nome da pessoa colectiva não determina a nulidade da decisão administrativa.
Resulta, pois, improcedente a invocada nulidade.
Pelo exposto, deve ser julgada improcedente a alegada nulidade da decisão administrativa por ausência de identificação, na matéria de facto provada, da concreta pessoa física que terá actuado e a caracterização da sua ligação ao ente colectivo.
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1. FACTOS PROVADOS
Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e com relevância para a decisão da causa julgam-se provados os seguintes factos:
A) No dia 26 de Maio de 2018, pelas 10H30, na Rua ..., mais precisamente em frente ao imóvel identificado com o n.º 6, dois contentores de recolha de entulhos (um colocado no passeio público e o outro num lugar de estacionamento), identificados ambos como pertencentes à firma "B, ocupavam a via pública.
B) O entulho foi retirado do imóvel sito na Rua ..., n.º ..., em Lisboa, onde se procedia a obras, sendo depositado nos referidos contentores utilizando baldes e uma corda para o efeito, sem conduta e protecção para peões.
C) A A-  ., além de dona das obras era igualmente executante das mesmas.
D) No dia 26 de Maio de 2018, a A-  ., representada pelo seu gerente, não possuía qualquer alvará de licença emitida pela Câmara Municipal de Lisboa, para a ocupação da via pública.
E) A A-  ., representada pelo seu gerente, tinha conhecimento da ocupação da via pública e da inexistência de alvará de licença que o permitisse.
F) A A-  ., representada pelo seu gerente, enquanto profissional da atividade imobiliária e de construção civil, e ainda, enquanto promotora e executante das obras de conservação levadas a cabo, não podia deixar de saber que para ocupar a via pública tinha de previamente providenciar, junto dos Serviços camarários, pela obtenção da respetiva licença e bem assim não podia deixar de saber que resultando entulho das obras levadas a cabo que tivesse de ser lançado do alto tinha de utilizar conduta fechada que encaminhasse o entulho para um contentor fechado, conhecimento que lhe possibilitaria controlar a legalidade da ocupação efetuada, deveria tê-la levado a certificar-se se a ocupação da via pública estava a obedecer a todas as exigências legais.
G) Ao não providenciar pela obtenção da referida licença de ocupação da via pública, a A-  ., representada pelo seu gerente, representou, assim, como resultado possível ou provável da sua conduta a realização de facto que preenche o tipo de contraordenação, tendo-se conformado com esse resultado, agindo.
H) Ao levar a cabo a descarga de entulhos sem se certificar que estavam a ser cumpridas todas as obrigações legais, a A-  . representou como consequência possível ou provável de tal conduta, a realização de um facto ilícito e punível como contraordenação, tendo-se conformado com a sua realização, agindo.
I) No dia 9 de Agosto de 2018, pelas 14H30, na Rua ..., mais precisamente em frente ao imóvel identificado com o n.º6, na faixa de estacionamento automóvel, a via pública estava ocupada com um contentor de recolha de entulhos de cor vermelha (contendo tábuas, persianas), identificado com o n.º “38”, pertencente à firma "B", com o contacto telefónico n.º “916125773”, ocupando uma área em cerca de 4,00m x 2,00m.
J) Tais entulhos foram retirados do imóvel sito na Rua ..., em Lisboa, onde se procedia a obras de conservação.
K) A A-  ., além de dona das obras era igualmente executante das mesmas.
L) No dia 9 de Agosto de 2018, a A-  ., representada  pelo seu gerente, não possuía qualquer alvará de licença, emitida pela Câmara Municipal de Lisboa, para a ocupação da via pública.
M) A A-  ., representada pelo seu gerente, tinha conhecimento da ocupação da via pública e da inexistência de alvará de licença que o permitisse.
N) A A-  ., representada pelo seu gerente, enquanto profissional da actividade imobiliária e de construção civil, e ainda enquanto promotora e executante das obras de conservação levadas a cabo, não podia deixar de saber que para ocupar a via pública tinha de previamente providenciar junto dos Serviços camarários pela obtenção da respetiva licença.
O) Ao não providenciar pela obtenção da referida licença de ocupação da via pública, a A-  ., representada pelo seu gerente, representou, assim, como resultado possível ou provável da sua conduta a realização de facto que preenche o tipo de contraordenação cuja prática lhe é imputada, tendo-se conformado com esse resultado, agindo.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
1) Que a maior parte do entulho, o de maior dimensão e o que era mais susceptível de cair, era/foi tirado directamente pelas escadas, sendo descarregado por baldes apenas o que era acomodável e seguro de não cair. Não resultou provada outra factualidade, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem relevância para a boa decisão da causa.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O tribunal estribou a sua convicção, no que respeita à factualidade julgada provada, na prova documental junta aos autos e bem assim nas declarações produzidas pelas testemunhas C (agente da Polícia de Segurança Pública destacado na Polícia Municipal), D (agente da Polícia de Segurança Pública destacado na Polícia Municipal), E (agente da Polícia de Segurança Pública destacado na Polícia Municipal), F(trabalhador da recorrente entre 2017 e Setembro ou Outubro de 2021), G (trabalhou na recorrente durante 4 anos e até 2020) e H (trabalhou na recorrente entre 2017 e 2019) em audiência de discussão e julgamento.
Com efeito, os agentes da Polícia de Segurança Pública destacados na Polícia Municipal, prestando depoimentos espontâneos e firmes, confirmaram ao tribunal a factualidade descrita na decisão administrativa em conformidade com o que fizeram constar nos autos de notícia que levantaram, o que se mostrou consonante com o teor de fls. 1 a 3, com as informações de fls. 4, 45 e 49, com a documentação de fls. 7, 8, 10, 12 e 21, e com as fotografias de fls. 14 a 18, 29 a 34 e 53.
Os trabalhadores da A-  . confirmaram estarem a trabalhar na obra de remodelação da fracção correspondente ao 3.º piso (conforme explicitado por H), tendo F confirmado que retiravam o entulho por baldes que circulavam em sistema de roldana, depositando o entulho em contentores.
Os trabalhadores não referiram o facto descrito em 1) pelo que o mesmo não resultou demonstrado.
Do cotejo da prova produzida, resultou pois demonstrada a factualidade elencada.
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III. ENQUADRAMENTO JURÍDICO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A recorrente foi condenada pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 23.º e 31.º, n.º 1, alínea c), ponto xii), ambos do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014, numa coima no montante de €4.640 e bem assim pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 12.º, n.º 4 e 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i), do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de outubro de 2014, numa coima no montante de €6.960. Em cúmulo jurídico, foi a recorrente condenada numa coima única no montante de €9.750.
Determina o artigo 31.º, n.º 1, alínea c), ponto xii) e alínea d), ponto i), do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, que
“1 - Constituem contraordenações as infrações ao disposto no presente regulamento, nos termos dos números seguintes, sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal e disciplinar em que incorram os respetivos agentes:
c) Encontram-se sujeitas a coima graduada entre 4 a 7 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa singular, e de 16 a 32 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa coletiva, as seguintes infrações: Utilização de condutas para descarga de entulhos em desconformidade com o disposto no artigo 23.º;
d) Encontram-se sujeitas a coima graduada entre 7 a 9 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa singular, e de 24 a 48 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa coletiva, as seguintes infrações: i) A ocupação da via pública ou de outros espaços sem ser titulada pelo respetivo alvará de licença, nos termos do n.º 4 artigo 12.º;”.
Determina o artigo 23.º, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, que
“1 - Se das obras a executar em qualquer imóvel resultar entulho que tenha de ser lançado do alto, devem ser utilizadas condutas fechadas que encaminhem os entulhos para um contentor fechado no interior do estaleiro.
2 - Pode permitir-se a descarga direta das condutas para veículos de carga protegidos, estacionados sob a conduta, ou para contentores localizados fora da área do estaleiro, mediante as seguintes condições:
a) A conduta deve ter no seu terminal uma tampa sólida que só pode ser retirada durante a operação de carga do veículo;
b) Deve ser colocada sob a conduta uma proteção eficaz, rebatida ou amovível, que permita a passagem de peões;
 c) A altura entre o pavimento da via pública e o terminal da conduta não pode ser superior a 2,50 metros;
 d) Deve ser colocada uma proteção entre o terminal da conduta e a caixa do veículo de modo a impedir a dispersão de poeiras e a queda de materiais.
3 - As condutas devem ter as seguintes características:
a) Serem vedadas para impedir a fuga dos detritos;
 b) Não terem troços retos maiores do que a altura correspondente a dois andares do edifício, para evitar que os detritos atinjam, na descida, velocidades perigosas;
c) Terem na base um dispositivo de retenção eficiente, para deter a corrente de detritos;
d) Terem barreiras amovíveis junto da extremidade de descarga e um dístico com sinal de perigo.”.
Determina o artigo 7.º, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, que
 “1 - A ocupação da via pública ou de outros espaços públicos, nas situações definidas no artigo 2.º do presente regulamento, depende da atribuição de licença pela Câmara Municipal de Lisboa, sem prejuízo do número seguinte.
2 - As ocupações que sejam motivadas por obras promovidas pelo Município de Lisboa ou pelas freguesias da Cidade de Lisboa não estão sujeitas a licenciamento, devendo os respetivos projetos, assim como o plano de segurança e saúde e o plano de resíduos, observar as normas do presente regulamento.”
De acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 4, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras,
 “4 - A ocupação de via pública objeto de licenciamento é titulada por alvará, o qual é emitido desde que se mostrem pagas as taxas devidas, nos termos do artigo 29.º do presente regulamento, e é condição de eficácia da respetiva licença.”.
De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras,
“1 - O presente regulamento estabelece as regras a observar na ocupação do domínio público municipal com estaleiros de obras de edificação, promovidas pelo Município ou por qualquer outra entidade pública ou privada, utilizando tapumes, vedações, andaimes, condutas para descarga de entulhos, depósitos de materiais e entulhos, amassadouros, contentores, cargas e descargas, bombagens de betão, gruas, guindastes ou outros equipamentos ou instalações.”
O artigo 3.º, alínea b), do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, que prevê o conceito de estaleiro.
A contra-ordenação consiste num “facto material (nullum crime sine actione) que preencha um tipo descrito na lei (nullum crimen sine lege), que tenha sido praticado culposamente (nullum crimen sine culpa) e que naquele tipo esteja prevista a aplicação de uma coima”

Nos presentes autos resultou demonstrada a factualidade elencada que aqui se dá por integralmente reproduzida, tendo a actuação, ao nível do elemento subjectivo sido com dolo.
Do disposto nos normativos constantes do regulamento em causa, e considerando os contentores para recolha de resíduos colocados nos locais mencionados na factualidade assente e o mecanismo de descarga de entulho a partir do terceiro piso do edifício utilizado pela recorrente nas obras que levava a cabo nas datas mencionadas na factualidade assente, verificamos que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos quanto às contra-ordenações supra citadas, aplicando-se, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º1, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, as normas deste regulamento à recorrente.
Sendo exigido licenciamento, e considerando que o Guia de Apoio Técnico ao Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras não se sobrepõe ao previsto no próprio Regulamento, cujas normas foram infringidas nos citados termos, praticou a recorrente o delito contra-ordenacional em causa.
De acordo com as noções previstas no artigo 3.º, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, as estruturas de que se servia a recorrente durante a execução da obra, preenchem o citado normativo já que as estruturas constantes da factualidade assente correspondem a locais onde se efectuam trabalhos nos termos previstos na norma. Inexistem causas de justificação e de exclusão da culpa.
Pelo exposto, a recorrente praticou as contra-ordenações pelas quais foi condenada pela autoridade administrativa.
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2. DA DOSIMETRIA DA COIMA
(…)
Do concurso de contra-ordenações
(…)
3. CUSTAS PROCESSUAIS
(…)
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IV. DISPOSITIVO
Pelo exposto, julgo improcedente o recurso de contra-ordenação e em consequência:
A) Julgo não verificadas as nulidades invocadas.
B) Mantenho a decisão administrativa que condenou a recorrente A-
 ., pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 23.º e 31.º, n.º 1, alínea c), ponto xii), ambos do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014, numa coima no montante de €4.640 (quatro mil seiscentos e quarenta euros).
C) Mantenho a decisão administrativa que condenou a A-  . pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 12.º, n.º 4 e 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i), do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros e Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de outubro de 2014, numa coima no montante de €6.960 (seis mil novecentos e sessenta euros).
D) Em cúmulo jurídico das coimas mencionadas em B) e C), mantenho a decisão administrativa que condenou a recorrente A na coima única de €9.750 (nove mil setecentos e cinquenta cêntimos).
E) Condeno a A, no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta.
(…)

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Da análise dos fundamentos do recurso (pela ordem de lógica jurídica):
1. Da violação do disposto no artigo 7º do Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), por falta de identificação da pessoa física que, em nome da Recorrente, terá praticado as contraordenações.
Impõe-se realçar que a matéria de facto dada como provada está definitivamente assente, desde logo porque a mesma não pode ser impugnada, por força do disposto no art.º 75º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações (aprovado pelo Decreto-Lei 433/82, de 27.10), segundo o qual se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito…, funcionando o Tribunal da Relação como tribunal de revista.
Ora com especial relevo para a questão em apreciação, deu-se como provado:
-Terem sido encontrados na via pública, em duas datas distintas, contentores de recolha de entulhos provenientes do interior de uma obra (em imóvel sito num 3º andar).
- A sociedade/Recorrente, representada pelo seu gerente, não possuía alvará de licença camarária para a ocupação da via pública com os contentores de acondicionamento (transitório) dos entulhos da obra, apesar de ter conhecimento da ocupação da via pública pelos contentores, que estavam ao serviço da obra, e da necessidade de tal licença.
- Numa daquelas datas a transferência dos entulhos do interior da obra para os referidos contentores procedia-se com recurso a baldes e uma corda, portanto, sem uso de conduta e de proteção para peões.
- A sociedade/Recorrente, representada pelo seu gerente, sabia que o entulho das obras que tivesse de ser lançado do alto tinha de utilizar uma conduta fechada que encaminhasse o entulho para o contentor e, não obstante, não cumpriu com tais procedimentos.
- A dona e também executante da obra era a Recorrente A- Imobiliários.

Posto isto, refere a Recorrente que a decisão recorrida, tal qual a decisão administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, não identificam a pessoa física do gerente pelo respetivo nome, o que, no seu entendimento, é imposto pelo artigo 7º, do Regime Geral das Contraordenações, pelo que a decisão recorrida violou o referido preceito legal.

Vejamos se assiste razão à Recorrente.
Como é sabido, dispõe o artigo 7.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), que as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

A vexata quaestio trazida aos autos pela Recorrente não é propriamente nova e prende-se com a interpretação do segmento da norma “praticadas pelos seus órgãos no exercício de funções”, que levado ao pé da letra parece inculcar a necessidade de o ato ilícito ter sido cometido por ato de órgão, em representação da pessoa coletiva, e, numa interpretação ainda mais restritiva, tal obrigaria a identificar não só o órgão societário em causa, como  a(s) pessoa(s) física(s) que o encarnam, dito de outra forma, remete para a necessidade de subjetivar fisicamente a responsabilidade da pessoa coletiva pela prática do ilícito. Por detrás deste entendimento está o facto de a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva não ser objetiva.
É sabido que no regime contraordenacional vários são os modelos de imputação de responsabilidade às pessoas coletivas, a saber: o modelo de imputação orgânica, em que o ato ilícito tem de ser decidido e/ou praticado pelos órgãos da pessoa coletiva; o modelo de imputação representativa, em que o ato ilícito tem de ser decidido e/ou praticado por órgão da pessoa coletiva ou por representantes/mandatários dessa mesma pessoa; e o modelo de imputação funcional, em que o ato ilícito tem de ser  decidido e/ou praticado por órgão da pessoa coletiva ou por representantes/mandatários ou ainda por funcionários, agindo sempre em nome ou por conta da pessoa coletiva, desde que não se demonstre que o agente atuou contra ordens ou instruções da pessoa coletiva ou que atuou no seu próprio interesse.
A letra da lei, concretamente do artigo 7.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações, inculca que o legislador terá pretendido consagrar o modelo de imputação orgânica, a que não será alheio o facto de o referido RGCO ter sido criado em 1982. Citando António Beça Pereira (Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, 13ª edição, pág. 49): A redacção um pouco tímida deste nº 2 (do artigo 7º do RGCCO), ao definir a amplitude da responsabilidade das pessoas colectivas, pode explicar-se pelo momento em que o preceito foi escrito (1982), pois nessa altura ainda não era pacífico o entendimento de que estas eram susceptíveis de ser responsabilizadas pela prática de ilícitos consagrados em direito sancionatório público, como é o caso do direito penal ou do direito contra-ordenacional. Aliás, esta norma, à época, foi até inovadora e abriu um caminho por onde hoje o legislador já se movimenta pacificamente.”
As dificuldades práticas deste regime de imputação orgânica e o facto de geraram significativas lacunas de impunibilidade contraordenacional estão na origem de uma corrente jurisprudencial (aliás hoje maioritária) e doutrinal, na esteira do parecer do ConcC da PGR n.º 11/2013, que advoga uma interpretação extensiva (apelidada por outros de atualista) do segmento normativo “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”, de modo a incluir, para além dos órgãos, também os representantes - administradores, gerentes, mandatários, outros representantes- e ainda os trabalhadores, desde que atuem em nome da pessoa coletiva, interpretação extensiva que consagra o modelo mais amplo de imputação funcional.
A título meramente exemplificativo, veja-se, o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27.01.2020, processo 510/19.6T8FAF.G1, no qual se refere:
É efetivamente esse o entendimento maioritário da jurisprudência[4], ao considerar que a expressão "órgãos no exercício das suas funções", utilizada no art.º 7º, n.º 2, do RGCO, tem aqui uma abrangência maior que os centros institucionalizado de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou pelo colégio de indivíduos, abrangendo, por interpretação extensiva, os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, que são quem pratica ou omite os atos suscetíveis de censura contraordenacional, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, exceto quando atuem contra ordens expressas ou em seu interesse exclusivo, não se quedando assim pelos seus órgãos sociais.
Há também quem defenda a necessidade de uma interpretação atualista do n.º 2 do art.º 7º do RGCO, de forma a harmonizar o seu alcance com a norma posteriormente introduzida no art. 11º, n.º 2, do Código Penal, central na legislação penal, de modo a que as pessoas coletivas ou entidades equiparadas sejam responsabilizadas pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções e também quando cometidas em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança, ou quando cometidas por quem aja sob a autoridade das pessoas antes referidas em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbam.
Também no Parecer n.º 11/2013[5], o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República concluiu que «[o] preceito do n.º 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas», adotando assim «(…) a tese da responsabilidade autónoma da pessoa coletiva, o que se traduz, na prática, na possibilidade de imputação da responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva desde que seja cometida uma infração tipificada como ilícita e que seja imputável a alguém que atue por conta ou em nome da pessoa jurídica (titulares dos seus órgãos, mandatários, representantes ou trabalhadores).».
Na doutrina são críticos desta posição Nuno Brandão[6] e Augusto Silva Dias[7].
Este último autor defende que, de jure constituto, a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta num modelo orgânico e não numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num "defeito estrutural da organização empresarial" (defective corporate organization) ou "culpa autónoma por défice de organização", quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva. Assim, nos casos em que o executante é mandatário, representante ou funcionário da pessoa coletiva e atua no exercício de funções, o facto típico só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva por ele vinculada, se o dirigente, mandatário, representante ou funcionário tiverem agido no cumprimento de ordens desse órgão ainda que genéricas, não deixando, no entanto, o autor de considerar criticável, esta limitação, por ser inadequada à natureza da responsabilidade contraordenacional e de certo modo contraditória com o princípio da equiparação implícito no art. 7º, n.º 1, do RGCO.
Recentemente, no acórdão n.º 566/2018[8], o Tribunal Constitucional concluiu que inexistem razões para questionar e desconsiderar a referida interpretação extensiva do art.º 7º, n.º 2, do RGCO. Como se pode ler no seguinte excerto desse aresto:
«Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais – a uma realidade institucional ou estatutária (sobre as diferentes conceções a respeito da natureza de órgãos, v., por exemplo, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, pp. 624 e ss.). Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (v., a título meramente exemplificativo: o artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo – «centros institucionalizados de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva» –; e o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal - «entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código»).
Na perspetiva material da atividade dos entes coletivos (por contraposição à perspetiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa coletiva –, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja atuação é imputada ao ente coletivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples atuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa atuação em nome do ente coletivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respetiva atividade.
Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «[e]m tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo; itálico aditado).»

Mesmo adotando-se o modelo mais restritivo de imputação orgânica (o que nem é o caso, diga-se), tal não significa que a lei imponha a prova da identificação (do nome, biográfica, portanto) da pessoa física que atuou como titular do órgão, bastando a prova de que a decisão e/ou a prática da conduta típica é imputável ao órgão, pois que tal prova já permite a imputação da infração à pessoa coletiva, porque determinada ou praticada por órgão que vincula a vontade coletiva.
Na verdade a imputação da infração à pessoa coletiva é direta e autónoma, não estando dependente de uma qualquer conexão com uma pessoa física, mas apenas da vontade da pessoa coletiva, que se manifesta através da vontade dos seus órgãos e representantes, e não das pessoas físicas que os compõem, não supondo, por isso, a individualização da pessoa ou das pessoas físicas que representam os órgãos. O que releva é a identificação funcional e não a identificação pessoal ou biográfica da pessoa.
Consideramos, pois, que “a responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas, sustentando-se numa imputação directa e autónoma, não exige a identificação nem a individualização da pessoa singular executante da acção típica e ilícita (cf. acórdão TRC, de 13.10.2021, processo 3682/20.3T9LRA.C1).
Também neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 58), onde o autor percorre jurisprudência farta e colhe diversos contributos doutrinais sobre esta matéria, mais referindo que no modelo de imputação orgânica do RGCO (por si defendido) a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva é autónoma, não dependendo de uma conexão com o facto de uma pessoa física, nem da responsabilização cumulativa de uma pessoa física. Para responsabilizar a pessoa coletiva é suficiente que a conduta seja praticada ou determinada em seu nome por órgão juridicamente vinculante da vontade coletiva, sendo irrelevante a circunstância de não se ter identificado o nome do titular do órgão ou representante a quem seja atribuída pessoalmente a conduta da pessoa coletiva.
Efetivamente, “considerando a complexidade que pode ter uma organização empresarial, em certos casos pode tornar-se ineficaz a procura de identificação do agente concreto, uma vez que um ato poderá passar por mais de um órgão, não sendo por vezes fácil determinar a pessoa concreta que agiu, exigindo-se, apenas, a certeza que a infração foi cometida no seio da instituição (pessoa coletiva)” – (cf. acórdão TRL, de 12.01.2021).

No caso em apreço, imputa-se a prática das duas contraordenações em que a Recorrente foi condenada (ocupação da via pública - no caso com contentores de recolha dos entulhos de obra -  sem licença camarária e lançamento do alto de entulhos de obra para o contentor sem utilização de conduta fechada) a decisão do seu gerente, atuando em representação da Recorrente.
Ora, sendo a Recorrente uma sociedade por quotas, é sabido que o órgão de administração e representação destas sociedades é a gerência, composta pelo gerente ou pelos gerentes.
Portanto, na matéria de facto assente é identificado funcionalmente o representante da pessoa coletiva que, atuando em nome desta, determinou a vontade da Recorrente, daí derivando a imputação da responsabilidade da prática das duas contraordenações à Recorrente.
A somar: no que se refere à contraordenação da ocupação da via pública sem a competente licença camarária, dispõe o art.º 32º, n.ºs 1 e 3, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros e Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de outubro de 2014, que a responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i), da alínea d), do número 1, do art.º anterior é do dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida, sem prejuízo de eventual direito de regresso sobre o executante da obra.
Ora a dona da obra era, de acordo com a materialidade julgada provada, a Recorrente.
Resumindo, cotejadas as normas legais citadas, acompanhamos o entendimento jurisprudencial e doutrinal de que a não identificação da concreta pessoa física que atuou em nome da pessoa coletiva não determina uma ilegal imputação da responsabilidade contraordenacional da Recorrente.
Termos em que improcede o recurso, neste segmento.

2. Da inaplicabilidade à situação em apreço nos autos do artigo 7º, n.º 1, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014, norma incriminadora aplicada pela autoridade administrativa.
No que respeita à ocupação da via pública com os contentores, considera a Recorrente não se mostrar verificada a situação prevista no n.º 1, do art.º 7º, do ROVPEO (que se aplica nas situações definidas no art.º 2º), dado que o seu estaleiro de obra sempre esteve no interior da obra. Quanto a existência do contentor no exterior, aplica-se à situação em apreço o regime que a própria Câmara Municipal enuncia no Guia de Apoio Técnico ao ROVPEO (no ponto 1.9 e respetiva resposta), sendo que a Recorrente contratou um operador licenciado (no caso a empresa B), o qual, no âmbito da sua atividade, fez o tratamento e a remoção do entulho. Não são, assim, aplicáveis in casu as normas legais com base nas quais a CML condenou a Recorrente.
Vejamos.
Com interesse, consta do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014:
Artigo 2.º, n.º 1: o presente regulamento estabelece as regras a observar na ocupação do domínio público municipal com estaleiros de obras de edificação, promovidas pelo Município ou por qualquer outra entidade pública ou privada, utilizando tapumes, vedações, andaimes, condutas para descarga de entulhos, depósitos de materiais e entulhos, amassadouros, contentores, cargas e descargas, bombagens de betão, gruas, guindastes ou outros equipamentos ou instalações.”
Art.º 3º, al. b), que define estaleiros como “os locais onde se efetuam trabalhos de edificação, enquanto atividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação, ou reabilitação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência, assim como os locais onde se desenvolvem atividades de apoio direto aos mesmos”.
A al. d) define a Licença de ocupação da via pública como o ato que licencia a ocupação da via pública ou de outros espaços públicos, por motivo da execução de qualquer obra, com tapumes, andaimes, depósitos de materiais e entulhos, equipamentos e contentores ou outras instalações com elas relacionadas;
Art.º 7.º, n.º 1: A ocupação da via pública ou de outros espaços públicos, nas situações definidas no artigo 2.º do presente regulamento, depende da atribuição de licença pela Câmara Municipal de Lisboa (…)
Art.º 12.º, n.º 4: A ocupação de via pública objeto de licenciamento é titulada por alvará (…).”.
Art.º 19º, n.ºs 1 e 2: Os depósitos de materiais devem localizar-se no interior do lote objeto de intervenção ou no interior do estaleiro. Os contentores devem localizar-se no interior do lote objeto de intervenção ou no interior do estaleiro, sem prejuízo do n.º 2 do artigo 23.º do presente regulamento ou de outros casos devidamente justificados.
Art.º 21º, recolha e evacuação de resíduos, Os resíduos de construção e demolição deverão ser acondicionados e transportados de acordo com as regras legais e regulamentares aplicáveis.
Art.º 23º, n.º 2, Pode permitir-se a descarga direta das condutas para veículos de carga protegidos, estacionados sob a conduta, ou para contentores localizados fora da área do estaleiro (…)
Art.º 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i):  Constituem contraordenações as infrações ao disposto no presente regulamento, nos termos dos números seguintes, sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal e disciplinar em que incorram os respetivos agentes: d) Encontram-se sujeitas a coima graduada entre 7 a 9 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa singular, e de 24 a 48 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa coletiva, as seguintes infrações: i) A ocupação da via pública ou de outros espaços sem ser titulada pelo respetivo alvará de licença, nos termos do n.º 4 artigo 12.º”.
Art.º 32º, n.ºs 1 e 3:  a responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i), da alínea d), do número 1, do art.º anterior é do dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida, sem prejuízo de eventual direito de regresso sobre o executante da obra.
E consta do já aludido Guia de Apoio Técnico do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de obras (disponível em https://informacoeseservicos.lisboa.pt/fileadmin/informacoes_servicos/pedidos/urbanismo/GuiaApoioTecnico_OVPEstaleiros.pdf) : Perguntas frequentes
1.9 Qual o procedimento a adotar quando se realizam obras num apartamento e não é possível colocar o entulho no interior do lote?
Nestas situações pode-se recorrer à recolha de resíduos especiais provenientes de construção e demolição, prevista no portal da CML em http://www.cm-lisboa.pt/viver/higiene-urbana/recolha-deresiduos/residuos-especiais, que indica: Os empreiteiros ou promotores de obras que produzam Resíduos de Construção e Demolição (RCD) são responsáveis pela sua gestão, a qual só pode ser efetuada por operadores devidamente autorizados. São da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa, independentemente da quantidade produzida, os RCD provenientes de obras isentas de licença ou não submetidas a comunicação prévia. Na cidade de Lisboa, os munícipes podem solicitar à autarquia a recolha de RCD, a qual ocorrerá em data, hora e local acordado com os serviços. Para quantidades até 1m³, e após avaliação pelos serviços, o município remove e encaminha gratuitamente os RCD para tratamento. Para quantidades superiores a 1m³, estes resíduos poderão ser removidos mediante pagamento, de acordo com a Tabela de Preços e Outras Receitas Municipais. O Ecocentro da Valorsul também recebe RCD até 1m³
1.10 Como são acondicionados e transportados os resíduos da construção? (…) Os RCD e os resíduos urbanos deverão ser evacuados num estaleiro de obras através dum operador licenciado para o efeito. Todavia, os resíduos urbanos (produzidos pela presença de trabalhadores na área do estaleiro), poderão ser removidos, a pedido, pela CML, a qual poderá aplicar uma tarifa, caso esta seja aplicável no âmbito do tarifário em vigor.

Adiantamos já que o recurso é nesta parte manifestamente improcedente.
Primeiro porque a contraordenação em que a Recorrente foi condenada respeita à ocupação da via pública (sem a competente licença camarária, como é óbvio) com contentores de acondicionamento provisório dos entulhos de obra (enquanto os mesmos não são transportados para o seu destino final), o que constitui uma atividade de apoio direto ao local onde se efetuaram as obras da Recorrente.
Ora, a licença de ocupação da via pública não se aplica apenas quando haja necessidade de ocupação da via por estaleiro de obra propriamente dito, mas também, entre outras situações, quando haja necessidade de ocupar a via com contentores de recolha e acondicionamento provisório dos entulhos da obra, entulhos que são retirados do interior da obra e acondicionados provisoriamente nos ditos contentores, após o que tais resíduos de obras serão transportados para o seu destino final.
O transcrito artigo 7º do ROVPCEO refere-se à ocupação da via pública nas situações definidas no artigo 2º, e no n.º 1 deste artigo estabelece-se sobre tal ocupação com estaleiros, entendendo-se por estes não só os locais onde se efetuam trabalhos de edificação, como também os locais onde se desenvolvem atividades de apoio direto aos trabalhos, ou seja, por exemplo, quando sejam utilizados contentores no exterior para depósito de materiais e entulhos da obra. É o que necessariamente se retira até do teor literal dos artigos 2º, n.º 1, e 3º, al. c) e d), para onde remete o art.º 7º, n.º 1, do ROVPCEO, resultando deste artigo que a ocupação da via pública nas situações definidas no art.º 2º (no qual se faz menção expressa dos contentores) carece de licença camarária.
Portanto a ocupação da via pública objeto de licenciamento prevista no citado art.º 12º, n.º 4, do ROVPCEO, inclui a ocupação da via com contentores destinados ao depósito provisório de materiais e entulhos retirados do interior da obra e que hajam de ser provisoriamente depositados no exterior.

E quanto à outra questão suscitada pela Recorrente, a qual alega ter-se orientado pelo Guia de Apoio Técnico do Regulamento, mais concretamente pelo que consta no seu ponto 1.9, salvo o devido e muito respeito, a Recorrente labora em erro.
Na verdade, se é certo que esse ponto 1.9, assim como o 1.10, não constituem norma legal, também o é que, a nosso ver, o que deles consta não contraria o que resulta do ROVPCEO.
Efetivamente, no ROVPCEO estão previstas duas situações distintas relacionadas com a retirada dos entulhos de obra, a saber:
- A retirada dos entulhos de obra do interior da obra para o respetivo exterior (quando não possam ser acondicionados no interior), onde são frequentemente depositados em contentores disponibilizados por empresas de prestação de tais serviços (que a Recorrente diz ter contratado, admitindo-se que assim o tenha sido, já que os contentores exibiam no exterior a indicação “B”). A este depósito de entulhos de obra, a que por facilidade chamaremos de provisório, reportam-se as normas previstas no 19º, do ROVPCEO, e quando haja necessidade de ocupação de via pública com os referidos contentores ainda os art.ºs. 2º e 12º, do ROVPCEO.
- A retirada ou a evacuação dos entulhos da obra já do exterior da obra (após aí terem sido previamente acondicionados, quando necessário) para o local de destino final, serviço que tanto pode ser realizado pela Câmara Municipal de Lisboa, em certas condições, como por operadores devidamente autorizados para o efeito, reportando-se a esta recolha de entulhos o art.º 21º, do ROVPCEO.
Ora, os pontos 1.9 e 1.10 respondem à pergunta referente à evacuação e destino final a dar aos entulhos da obra já previamente acondicionados no seu exterior (quando não o possam ser no interior da obra) para o local de destino final, serviço este que tanto pode ser realizado pela Câmara Municipal de Lisboa, em certas condições, como por operadores devidamente autorizados para o efeito.

De todo o modo, o facto de os donos da obra recorrerem à prestação de serviços de terceiros para disponibilizarem os contentores de recolha provisória dos entulhos da obra e à evacuação posterior de tais entulhos não os exime de pedir e obter prévia licença camarária para ocupação da via pública por tais contentores (só, mas também sempre, que tal se mostre necessário), cabendo essa responsabilidade ao dono da obra (e não ao executante, quando forem pessoas diferenciadas, e muito menos à empresa que prestou o serviço de disponibilização dos contentores e evacuação dos mesmos, já cheios com os entulhos das obras), posto que a responsabilidade pela contraordenação cabe ao dono da obra, conforme se dispõe no já mencionado art.º 32º, n.ºs 1 e 3, ROVPCEO, sem prejuízo de eventual direito de regresso sobre o executante da obra, o que no caso nem se coloca, dado que a Recorrente era, em simultâneo, a dona e executante da obra.
 Em conclusão, a responsabilidade de solicitar a licença camarária de ocupação da via pública com contentores destinados à recolha e acondicionamento provisório dos entulhos da obra no exterior, obra sobre a qual a Recorrente tinha total domínio do facto, dado que era a sua dona e executante, cabia exclusivamente à Recorrente, sendo que a prestação de serviço que esta possa ter contratado à empresa B, no sentido de disponibilizar tais contentores e de evacuar posteriormente os entulhos para o seu destino final, não eximia a Recorrente da necessidade de licenciar a ocupação da via pública com tais contentores.
Improcede, pois, o recurso interposto também neste segmento.

III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto por “A- ”.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s (art.ºs 513º, n.º 1, do CPP, e 8º, n.º 9, do RCP, com referência à tabela III anexa).
Notifique e D.N.

Lisboa, 12-01-2023
Madalena Augusta Parreiral Caldeira
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros