Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2009/17.6T8OER-C.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: PROVA PERICIAL
NECESSIDADE
ÂMBITO
OBJETO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Sumário: 1.– A perícia constitui um meio de prova que recai, em regra, sobre factos para cuja análise, interpretação e valoração são necessários conhecimentos especiais de que os juízes não dispõem.

2.– Neste meio de prova o perito surge como intermediário entre a fonte da prova (pessoal ou real) e o tribunal sempre que, para plena apreensão da prova, haja necessidade de conhecimentos especializados.

3.– A prova pericial pode destinar-se:
- à perceção indiciária de factos por inspeção de pessoas (ex.: exame médico-legal) ou de coisas, móveis ou imóveis, (ex.: exame de uma máquina ou vistoria de um prédio);
- à avaliação de coisas ou direitos (determinação do valor de um prédio ou de um quadro, duma quota social);
- à verificação da origem dum documento (assinatura, letra, data, genuinidade, alteração), à revelação do seu conteúdo (máxime os livros e documentos de escrita comercial e os documentos eletrónicos);
- à a apreciação, de acordo com regras de especialidade, dos indícios a extrair de fontes de prova (para, nomeadamente, estabelecer um nexo de causalidade.

4.– A necessidade de prova pericial afere-se, naturalmente, em função dos factos articulados pelas partes em cada concreto processo, sempre que à percepção ou apreciação desses factos sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, isto é, conhecimentos para além da ciência jurídica, sendo, por isso, necessária a cultura especial e a experiência qualificada do perito na matéria em causa.

5.– O âmbito e objecto da perícia configuram realidades conceptuais distintas:
- o âmbito deste meio de prova define-se pela matéria de facto articulada pelas partes e enunciada nos temas da prova;
- o objeto da perícia, por sua vez, é determinado pelas concretas questões de facto que a parte requerente da perícia pretende ver esclarecidas.

6.– Requerida a perícia, o juiz verificará se a mesma:
- é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou,
- é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


I, LDA., deduziu, por apenso à ação executiva que lhe move o NB, embargos de executado, nos quais alega a invalidade da livrança dada à execução, a violação material do pacto de preenchimento, a inexigibilidade do título e a inexistência da divida exequenda, a exceção de abuso de direito na vertente de venire contra factum proprium.

Na petição inicial com que introduziu em juízo os presentes embargos de executado, indicou os respetivos meios de prova, tendo requerido, além do mais, o seguinte:

«DA PROVA PERICIAL
Requer-se a V.ª Exa. se digne nomear perito com vista à análise dos movimentos efectuados na conta corrente – _____, aqui em causa, desde a sua abertura em 11 de Janeiro de 2006 até 05 de Maio de 2013, devendo o senhor perito nomeado responder às seguintes questões de facto:
a)- Entre a data da abertura da conta corrente em 11 de Janeiro de 2006 e a data de 05 de Maio de 2013 o Banco Embargado cobrou à Embargante taxas de juros superiores aos juros contratados?
b)- Em caso afirmativo qual o montante pago indevidamente pela Embargante a título de juros?
c)- Entre a data da abertura da conta corrente em 11 de Janeiro de 2006 e a data de 05 de Maio de 2013 o Banco Embargado cobrou à Embargante montantes a título de comissões não contratadas e comissões originadas por movimentos indevidos do Banco Embargado na referida conta?
d)- Em caso afirmativo qual o montante pago indevidamente pela Embargante a título de comissões?
e)- Entre a data da abertura da conta corrente em 11 de Janeiro de 2006 e a data de 05 de Maio de 2013 o Banco Embargado cobrou à Embargante imposto de selo indevidos?
f)- Em caso afirmativo qual o montante pago indevidamente pela Embargante a título de imposto de selo?
g)- Entre a data da abertura da conta corrente em 11 de Janeiro de 2006 e a data de 05 de Maio de 2013 a Embargante, alguma vez, utilizou montantes para além do plafond de € 40.000,00 que lhe foi concedido pelo Embargado?
h)- O Banco Embargado gerava movimentos a descoberto na conta à ordem, e reembolsos indevidos na conta de crédito, movimentos esses cobrados à taxa de juro de a 27%?
i)- Tais movimentos geravam por sua vez comissões indevidas na conta à ordem e na conta a crédito?
j)- Atendendo ao montante concedido a título de crédito pelo Embargado à Embargante, aos montantes pagos indevidamente pela Embargante a título de Juros, Comissões e Imposto de selo, e aos depósitos efectuados pela Embargante para a amortização da dívida, juros e comissões, desde 11 de Janeiro de 2006 a 05 de Maio de 2013, qual o valor em divida da Embargante ao Embargado?»
*

No despacho saneador proferido em 9 de fevereiro de 2019, com a Ref.ª 117506827, foi proferida a seguinte decisão:
«Indefiro a prova pericial requerida pela embargante I, Lda., uma vez que a matéria indicada não se materializa em conhecimentos especiais que não possam ser provados por outros meios de prova (designadamente, testemunhal ou por documentos), não se vislumbrando por conseguinte reunidos os pressupostos previstos no art. 388º do Código Civil.».
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A embargante não se conformou com essa decisão, pelo que dela interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:

«1.- Em 04 de Fevereiro de 2019 foi proferido despacho saneador nos presentes autos, nos termos do qual, para além do mais, decidiu o Tribunal a quo indeferir " ... a prova pericial requerida pela Embargante I, Lda. uma vez que a matéria indicada não se materializa em conhecimentos especiais que não possam ser provados por outros meios de prova (designadamente, testemunhal ou por documentos) não se vislumbrando por conseguinte reunidos os pressupostos previstos no art. 388.º do Código Civil".
2.- Para prova dos factos alegados na sua p.i. dos Embargos, os recorrentes requereram, para além do mais, prova pericial nos seguintes termos:
(...)[1]
3.- Foi proferido despacho saneador, do qual ora se recorre, nos termos do qual, foi fixado o objecto do litígio (montante da divida subjacente ao título dado à execução) e os temas da prova (- Saber se o Embargado procedeu ao preenchimento da livrança em desconformidade com o respectivo pacto; - Saber se o preenchimento que o embargado fez da livrança configura actuação em abuso de direito).
4.- Não obstante um dos temas da prova fixado (Saber se o Embargado procedeu ao preenchimento da livrança em desconformidade com o respectivo pacto), envolver a análise, repita-se, numa perspectiva bancária e financeira dos documentos juntos aos autos, e consequente cálculo dos valores ali insertos, de modo a aferir do montante efectivo da dívida, o despacho recorrido decidiu indeferir a perícia requerida pelos Embargantes.
5.- Entendemos que a questão subjacente ao primeiro tema da prova fixado no despacho recorrido é, manifestamente, uma questão técnica nos termos previstos no arts. 388º do Código Civil e, como tal, subtraída aos conhecimentos do julgador.
6.- E daí, implicar o domínio de conhecimentos técnicos e específicos sobre operações bancárias, acompanhada de cálculo de valores.
7.- E a inviabilização da resposta ao primeiro tema da prova, inviabiliza como é evidente a resposta ao segundo tema da prova.
8.- A necessidade de prova pericial neste caso resulta do facto da apreciação da operações bancárias aqui em causa exigirem conhecimentos especiais que o julgador não possui, isto é, conhecimentos para além da ciência jurídica, sendo, por isso, necessária a cultura especial e a experiência qualificada do perito na matéria em causa, que possa dar resposta aos factos indicados pelos recorrentes e que constituem o objecto pericial.
9.- O objecto da perícia requerida pelos embargantes, ora recorrentes, não se mostrando dilatório, mantém o seu interesse, por pertinente, dado que se destina a ver apreciado, por técnico da especialidade, o montante da dívida subjacente ao título dado à execução, (facto controvertido), e objecto do litígio.
10.- E mais, a independência de alguém especializado, permitirá ao Tribunal melhor ajuizar o facto controvertido, o que, muitas das vezes, não é possível em face de depoimentos das testemunhas, comprometidas com uma das partes.
11.- ln casu, o tribunal recorrido não sabe sequer se a única testemunha arrolada pelos recorrentes dispõe de conhecimentos suficientes que lhe permitam analisar, numa perspectiva bancária, os documentos juntos aos autos, de modo a que seja suficiente para a prova do montante da divida subjacente ao título dado à execução.
12.- E, no nosso entender, será preferível que o exame dos documentos juntos aos autos seja efectuado por técnico especialista nessa matéria, por exemplo, por um auditor bancário, para que o tribunal adquira por esse meio uma mais correcta percepção dos factos que se pretende provar.
13.- Dir-se-á ainda que, se os documentos juntos à p.i. de Embargos, pelos recorrentes fossem per se suficientes para dirimir a questão decidenda nos presentes autos, o facto aqui controvertido (Saber se o Embargado procedeu ao preenchimento da livrança em desconformidade com o respectivo pacto)[2], o Tribunal a quo já teria sido dado tal facto como provado, o que na realidade não fez.
14.- Pois, não obstante todos os documentos juntos à p.i. dos embargos, o(a) Mt.º(ª) juiz a quo entendeu que a questão é controvertida e levou-a à temática da prova.
15.- Logo, não se pode invocar, a existência de testemunhas e documentos já juntos aos autos, para se justificar a desnecessidade de prova pericial com relação a um facto que é dado como controvertido pelo juiz.
16.- (...)
17.- O artigo 576.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[3] estabelece que o juiz indeferirá a realização da diligência se a entender “impertinente” ou “dilatória”.
18.- Mas não cremos que aqui o seja.
19.- Aliás, note-se que a fundamentação do despacho recorrido não diz que a diligência requerida seja impertinente ou dilatória - não tendo sido, pois, por isso, que a mesma não foi admitida -, o que nos leva, desde logo, a indagar as razões legais subjacentes à rejeição do pedido dos recorrentes, uma vez que, a perícia foi indeferida por razões diversas daquelas que a lei previu.
20.- Por força do direito à prova, o tribunal só deve indeferir a prova pericial que seja requerida quando a diligência seja impertinente ou dilatória, ou porque não respeita aos factos que são objecto de instrução, ou ainda porque, embora digam respeito a factos necessitados de prova, não pressupõem os mesmos especiais conhecimentos técnicos - cf. artigos 388.º do CC, 410.º, 411.º, 413.º, 475.º e 476.º do CPC.
21.- Trata-se de um corolário das garantias à via judiciária e ao processo justo e equitativo, e constitucionalmente consagrados (cf. artigo 120.º da CRP).
22.- Por via dele, há que facultar às partes a possibilidade de utilizarem, em seu benefício, todos os meios de prova que considerarem os mais adequados a fazerem valer a sua pretensão.
23.- Seja para a demonstração dos factos cujo ónus de alegação e prova lhe pertencem, sejam para a contraprova dos factos que lhe são desfavoráveis e que querem contrariar.
24.- Em suma, atendendo ao sobredito enquadramento fáctico e legal, julgamos, salvo melhor opinião, que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento, devendo ser revogada e substituída por outra que admita a requerida perícia.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II–ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação da apelante, a única questão que se coloca neste recurso consiste em saber se deve ser admitida a perícia por aquela requerida na petição inicial.
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III–FUNDAMENTOS:
3.1–Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que consta do relatório supra.

3.2–Enquadramento jurídico:
Dispõe o art. 388.º do C.C. que «a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.»

Rita Gouveia refere que tal como resulta do citado normativo, «trata-se de um meio de prova que recai, em regra, sobre factos para cuja análise, interpretação e valoração são necessários conhecimentos especiais de que os juízes não dispõem.»[4].

No dizer de Lebre de Freitas, «o perito surge como intermediário entre a fonte da prova (pessoal ou real) e o tribunal quando, para plena apreensão da prova, haja necessidade de conhecimentos especializados. A prova pericial pode visar a perceção indiciária de factos por inspeção de pessoas (ex.: exame médico-legal) ou de coisas, móveis ou imóveis, (ex.: exame de uma máquina ou vistoria de um prédio), a avaliação de coisas ou direitos (determinação do valor de um prédio ou de um quadro, duma quota social), ou ainda a verificação da origem dum documento (assinatura, letra, data, genuinidade, alteração), a revelação do seu conteúdo (máxime os livros e documentos de escrita comercial e os documentos eletrónicos) ou a apreciação, de acordo com regras de especialidade, dos indícios a extrair de fontes de prova (para, nomeadamente, estabelecer um nexo de causalidade.»[5].

Fernando Pereira Rodrigues salienta que «a função da prova pericial não é apenas a de recolha de factos, mas também a da apreciação técnica dos factos observados. A função típica do perito é a da colheita de factos para depois produzir quanto aos mesmos uma apreciação técnica, mediante juízos de valor que se lhe ofereçam emitir com fundamento em critérios normativos, princípios científicos ou máximas da experiência.»[6].

A necessidade de prova pericial afere-se, naturalmente, em função dos factos articulados pelas partes em cada concreto processo, sempre que à percepção ou apreciação desses factos sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, isto é, conhecimentos para além da ciência jurídica, sendo, por isso, necessária a cultura especial e a experiência qualificada do perito na matéria em causa.

O âmbito e objecto da perícia configuram realidades conceptuais distintas:
- o âmbito deste meio de prova define-se pela matéria de facto articulada pelas partes e enunciada nos temas da prova;
- o objecto da perícia, por sua vez, é determinado pelas concretas questões de facto que a parte requerente da perícia pretende ver esclarecidas.

Nos termos do art. 476.º, n.º 1, do C.P.C., «se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição.».

Requerida a perícia, o juiz verificará se a mesma:
- é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou,
- é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe[7].

No caso concreto, o tribunal a quo indeferiu, nos exatos termos acima transcritos, ou seja, de uma forma que, eventualmente, careceria de uma mais cuidada fundamentação, a prova pericial requerida pela embargante aqui apelada, pela segunda das elencadas razões, o mesmo é dizer, por a considerar dilatória.

E assiste-lhe razão, pois o objeto da perícia proposto pela embargante reporta-se a questões de facto[8] para cujo esclarecimento não são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.

A análise conjugada e critica da prova testemunhal requerida pelas partes, e a produzir no momento processual próprio, assim como a pertinente documentação bancária (nomeadamente as missivas trocadas entre apelante e apelada e os extratos bancários e avisos de lançamentos), sobretudo as dezenas de documentos indicados na petição inicial e já juntos aos autos, permitirão ao julgador apreender, crê-se que sem dificuldades de natureza técnica, a matéria de facto articulada pelas partes com relevo para a decisão da causa e enunciada nos temas da prova.
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IV–DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela apelante – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.


Lisboa, 24 de setembro de 2019


(Acórdão assinado eletronicamente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara


[1]Trata-se da enunciação das questões de facto que, no entender da apelante devem constituir o objeto da perícia e que já acima se deixaram transcritas.
[2]Não se trata de um facto controvertido, mas de um tema de prova.
[3]A recorrente pretenderia certamente escrever art. 476.º, n.º 1, do C.P.C.
[4]Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, pp. 882-883.
[5]Código Civil Anotado, Volume I, Coord. Ana Prata, Almedina, 2017, p. 476.
[6]A Prova em Direito Civil, Coimbra Editora, 2011, p. 115.
[7]Cfr. Lebre de Freitas I Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, 2017, pp. 325-326.
[8]Algumas das questões propostas pela embargante para integrarem o objeto da perícia têm cariz manifestamente conclusivo.