Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7132/08.5TDLSB-A.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
DECISÃO FINAL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ORDENADA A BAIXA DO PROCESSO
Sumário: I – O nível de exigência de fundamentação da decisão final de uma providência cautelar de arresto preventivo, requerido ao abrigo do disposto no artigo 228.º do CPP, corresponde ao nível exigido pela lei processual civil, devendo o tribunal dar a conhecer, de modo sumário, mas suficiente, as razões da sua decisão de facto e de direito.
II – A decisão de facto mostra-se infundamentada se o seu texto não permite alcançar quais os factos que o tribunal considerou provados e se, quanto aos que descritivamente referiu não se terem provado (ainda que se entenda que desse modo os elencou), não explana minimamente as razões determinantes do juízo de não prova desses factos.
III – Padece de irregularidade nos termos do preceituado no art. 123.º, n.º 1 do CPP, a decisão final do arresto que não observa o dever legal de fundamentação enunciado no artigo 97.º, n.º 5 do mesmo diploma, sendo lícito ao requerente do arresto invocar tal irregularidade em recurso e beneficiando do prazo para a interposição deste.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1. Relatório
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1.1. Nos autos de inquérito com o n.º 7132/08.5TDLSB-A.L1 que correm termos no DIAP de Lisboa, a queixosa A…, requereu o arresto preventivo dos seguintes bens e direitos do requerido B…:
- Prédio urbano descrito na 1° Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n° 0000/000000 sito na Freguesia de S. Lourenço; Aldeia de Irmãos, Quinta de … Rua …; Lote …;
- Saldos de contas bancárias tituladas pelo requerido na Caixa Geral de Depósitos.
Invocou para tanto, e em síntese, que o requerido se apropriou ilegítima e fraudulentamente da quantia de, pelo menos, € 461.155,13 pertencente à requerente enquanto foi Presidente do seu Conselho de Administração e até 7 de Outubro de 2008, data em que renunciou ao cargo, encontrando-se suficientemente indiciada nos autos a prática dos crimes de dano qualificado, burla qualificada, infidelidade e falsificação de documentos, com a colaboração das sociedades “C…” e “D…”, também denunciadas neste processo criminal. Invoca, também, que o requerido tem vindo a fazer desaparecer o seu património, tendo levantado em Março deste ano a quantia de € 350.000,00 da sua conta bancária e que se encontra desaparecido e incontactável.
Produzida a prova oferecida pela requerente, o Mmo Juiz do 2.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, proferiu em 12 de Julho de 2010 decisão final do incidente, com o seguinte teor:
«[…]

A…, vem ao abrigo do disposto no art° 228 n°1 do C.P.P. requerer arresto preventivo dos seguintes bens do requerido B…:
- Prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n° 0000/000000 sita na Freguesia de S. Lourenço; Aldeia de Irmãos, Quinta de… Rua… ;Lote…
- Saldos de contas bancárias tituladas pelo requerido na Caixa Geral de Depósitos.
Alega, em síntese, que o requerido se apropriou ilegítima e fraudulentamente de avultadas quantias pertencentes á requerente através da colaboração das denunciadas C… e D…, encontrando-se suficientemente indiciados nos autos a prática dos crimes de dano qualificado, burla qualificada, infidelidade e falsificação de documentos.
Mais alega que o requerido tem vindo a fazer desaparecer o seu património e se encontra incontactável.
Juntou oito documentos.
Foram inquiridas as testemunhas E…, F…, G…
Cumpre apreciar:
Dispõe o o art° 228 n°1 do C.P.P. que a requerimento do Ministério Publico ou do lesado pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil.
E o art° 406 n°1 do C.P.Civil diz que o credo que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto dos bens do devedor.
A imposição de arresto preventivo funda-se no receio do devedor dissipar, ocultar, desencaminhar, transferir bens patrimoniais que frustrem a expectativa do titular do crédito de obter a sua satisfação à custa do património dele.
Tal perigo tem que resultar de factos que objectivamente o indiciem.
Para que a requerida medida de garantia patrimonial venha a ser decretada não basta a existência de montantes elevados em que arguido venha a ser condenado é necessário ainda a existência de factos donde se possa concluir que o arguido visa eximir o seu património a responder pelas obrigações relacionadas com o crime.
Da valoração conjunta da prova documental e testemunhal carreada para os autos não resulta, porém, suficientemente indiciado que o requerido pretenda vender o prédio de que é proprietário ou desfazer-se de valores para não responder pelas obrigações relacionadas com os crimes por que está indiciado.
Assim sendo, por não estarem reunidos os pressupostos para que seja decretado o arresto preventivo indefiro a aplicação ao requerido da medida de garantia patrimonial prevista no art° 228 n°1 do C.P.P.
Custas pelo requerente.
Notifique.

[…]»
1.2. A requerente A…, interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:
“A. Vem o presente recurso interposto da parte da douta Sentença recorrida em que se decidiu indeferir a aplicação ao Arguido da medida de garantia patrimonial prevista no art. 228.° do Código de Processo Penal, com fundamento na falta de preenchimento do requisito do "justo receio'", previsto no arts, 406.° e 407.° do Código de Processo Civil ex vi art, 228.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.
B. A Sentença recorrida enferma da nulidade prevista na al. a) do n.° 1 do art. 379.° do Código de Processo Penal, porquanto a presente decisão omite por completo qualquer fundamentação sobre a apreciação feita sobre a prova, demitindo-se mesmo de indicar e proceder ao exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, o que torna totalmente imperceptível o processo causal e lógico que levou à prolação da decisão em crise, em flagrante violação do n.° 2 do art. 374.° do mesmo Código.
C. Nulidade que vem arguir, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts, 379.°, n.° 2 e 414.°, n.° 4, ambos do Código de Processo Penal,
D. Independentemente da nulidade supra arguida, a Sentença recorrida vem indeferir a aplicação da medida de garantia patrimonial prevista no art. 228.° do Código de Processo Penal com fundamento na não verificação do requisito do "justo receio" previsto nos arts, 406.°, n.° 1 e 407.°, n.° 1 do Código de Processo Civil por entender que da factualidade apurada nos autos não resultou "suficientemente indiciado" o risco de perda da garantia patrimonial do crédito da Recorrente, demitindo-se, porém, de indicar qualquer sustentação fáctica, ou qualquer correspondência na prova testemunhal elou documental produzida.
E. A Sentença recorrida peca de forma grave por não retirar as devidas consequências legais dos factos que, salvo melhor opinião, estão indiciariamente provados, não só em relação à existência de um direito de crédito da Recorrente sobre o Recorrido, mas também em relação à concretização do periculum in mora, ou seja, a existência de um fundado receio da Requerente no sentido de que o Requerido pretenda eximir-se do pagamento das obrigações relacionadas com os crimes por que está indiciado.
F. Todavia, parece resultar implícito da parca fundamentação aposta na Sentença a quo a aceitação do Tribunal quanto ao preenchimento do requisito do fumus boni iuris.
G. Efectivamente, dos elementos de facto recolhidos nos autos de inquéritos e da prova produzida em sede de inquirição de testemunhas, resulta suficientemente demonstrado o direito de crédito da Recorrente em virtude da prática dos diversos ilícitos em investigação objecto do inquérito em curso, o qual, pelo menos, ascenderá ao valor das facturas indevidamente liquidadas pelo Recorrido, no valor total de € 461.155,13 – razão porque não se impugna nesta parte a Sentença recorrida,
H. No que concerne ao requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial, importa desde logo sublinhar que, devidamente analisados os factos apurados no inquérito em curso, a Recorrente logrou fazer a prova perfunctória e indiciária que lhe era exigível, designadamente, demonstrando que o Recorrido desenvolveu actos de dissipação do seu património e que se encontra em paradeiro incerto.
I. Os actos de dissipação do património do Recorrido resultam directamente da Informação de Serviço prestada pela Unidade de Informação Financeira sobre Depósitos e Levantamentos da Polícia Judiciária, a fls. 94 a 102 dos autos de inquérito.
J. Resulta da referida informação que, em Fevereiro de 2009, o Recorrido procedeu ao levantamento de € 350.000,00 da sobredita conta bancária (quantia equivalente à quase totalidade do saldo), justificando a operação com "motivos particulares e com a crise bancária actual" (cfr. fls. 100 dos autos de inquérito).
K. Concluiu a Polícia Judiciária que "poderemos estar em presença de capitais que entraram na posse de B... eventualmente de forma ilegítima e muito possivelmente conexos à sua suposta gestão fraudulenta actualmente em investigação".
L. Em face da informação acima descrita, não se compreende a Sentença a quo quando refere que "não resulta suficientemente indiciado que o requerido pretenda desfazer-se de valores para não responder pelas obrigações",
M. Mais resultou demonstrado que o actual paradeiro do Requerido se revela incerto, sendo que desde o dia 07.10.2008 todas as tentativas que a Requerente tem desenvolvido no sentido de o encontrar se mostraram absolutamente infrutíferas, permanecendo o Requerido incontactável quer na morada da sua casa, quer através do telefone (cfr. doc's n.° 6 e 7 juntos com o requerimento para aplicação da medida de garantia patrimonial a fls. 2 a 49 do Apenso A e doc. n.° 1 junto com o aditamento à participação criminal apresentado em 25.11.2009 a fls. , do inquérito).
N. Esta factualidade foi integralmente confirmada através dos depoimentos prestados petas testemunhas E..., Directora Geral da Requerente, e G..., ex-director financeiro da Requerente, que corroboraram, sem margem para dúvidas ou quaisquer hesitações, conforme se pode verificar através da audição da gravação digital da inquirição das referidas testemunhas realizada no dia 28.05.2010 (cfr. Autos de inquirição de fls. 99 a 100 e 103 a 104 do Apenso A).
0. O Tribunal a quo desconsiderou por completo os indícios probatórios acima indicados, demitindo-se de tomar posição sobre a sua prova ou ausência dela, sendo certo que tais elementos demonstram de forma suficiente e inequívoca o fundado receio da perda de garantia patrimonial da Recorrente, impondo-se a conclusão que o Tribunal a quo incorreu num erro notório na apreciação que fez da prova.
P. Qualquer outro entendimento representaria uma flagrante denegação de justiça, permitindo e facultando ao Recorrido a possibilidade de se furtar à acção penal e aos efeitos da sua futura e provável condenação no pedido de indemnização civil que venha a ser deduzido pela ora Recorrente.
Q. A demora do julgamento em sede de acção penal é um dado irremovível, devendo por conseguinte, possibilitar-se à Recorrente, enquanto titular de um direito indemnizatório, agir processualmente na sua defesa cautelar, por forma a que a decisão que venha a ser proferida (talvez só daqui a muitos anos, sendo que o inquérito já corre há quase 2 anos e está longe de ser concluído) não perca a totalidade ou parte do seu efeito útil.
R. Deste modo, se conclui que a Sentença recorrida errou na apreciação que fez da prova, bem como violou grosseiramente o disposto no art. 228.° do Código de Processo Penal e os dispositivos constantes dos arts. 406.° e 407.° do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. certamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência,
a) Ser julgada procedente a nulidade arguida, ao abrigo do disposto no art. 379.°, n.° 1, al. a) do Código de Processo Penal, devendo a mesma ser reparada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379.°, n.° 2 do mesmo Código;
b) Ser revogada a Sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine a aplicação ao Arguido da medida de garantia patrimonial de arresto preventivo dos bens do Requerido identificados no requerimento apresentado para garantia do crédito que a Requerente sobre ele detém no valor de, pelo menos, € 461.155.13, em conformidade com o disposto no art. 228.° do Código de Processo Penal, só assim se fazendo o que é de mais elementar JUSTIÇA!”
1.3. O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu à motivação concluindo que deverá ter-se por não verificada a nulidade arguida e ser a decisão que indeferiu a aplicação da medida de garantia patrimonial de arresto preventivo mantida nos seus precisos termos.
Concluiu do seguinte modo:
1. Veio a recorrente arguir a nulidade prevista no art. 379º, nº 1 a) e 374°, nº 2 do CPP, considerando que a decisão controvertida carece de fundamentação.
2. Analisado o teor da decisão, na concreta parte da enumeração dos factos provados/não provados, parece-nos não assistir razão à recorrente na medida em que o Mmº Juiz refere aquele facto considerado não provado que é determinante para a decisão de indeferimento.
3. Relativamente ao exame crítico da prova, a singeleza da decisão quando se refere à valoraçào conjunta das provas contém o mínimo de essência necessário à apreensão pelo seu destinatário das razões pelas quais o decisor indeferiu a sua pretensão, i. e., os relatos das testemunhas inquiridas e os documentos juntos não bastaram para considerar provado que o requerido pretenda vender o prédio de que é proprietário ou desfazer-se de valores pora não responder pelas obrigações relacionadas com os crimes por que está indiciado...
4. A recorrente interpôs recurso da sentença de fls.108 que decidiu não aplicar ao requerido B... a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo, invocando a violação dos art.228º do CPP e art. 406º e 407º do CPC, considerando que a mesma padece de erro na apreciação da prova produzida, designadamente na parte em que considera inexistir fundado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito;
5. A decisão que aplica a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo está sujeita à verificação dos seguintes requisitos: gerais - os previstos nos art. 193º do Codigo de Processo Penal; específicos para o arresto preventivo – art. 228" do Código de Processo Penal e art. 406º, nº 1 do Código de Processo Civil.
6. Para aplicação do arresto preventivo, exige, especialmente, o legislador a probabilidade de um crédito sobre o requerido e o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento.
7. A conclusão de que o requerido pretende dissipar o seu património de molde a inviabilizar a realização do direito da requerente não emerge da prova que foi produzida nos autos.
8. O facto de o requerido se furtar aos contactos da requerente, aliado às circunstâncias de, por um lado, ser proprietário de bens e de, por outro, em determinada data, ter efectuado um levantamento bancário, não são bastantes para se considerar que o direito da requerente em obter um pagamento por parte do requerido em virtude dos factos que lhe são imputados não será satisfeito.
9. Mostram-se cumpridos todos os dispositivos legais que presidem à decisão à decisão proferida e, designadamente, o disposto nos art.228" do Código de Processo Penal, bem como os art. 406º e 407º do Código de Processo Civil, pelo que não merece qualquer censura.
1.4. O recurso foi admitido por despacho documentado a fls.164.
1.5. Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido de considerar que o recurso não merece provimento.
1.6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, a recorrente apresentou resposta aquele parecer, reiterando a posição expressa no recurso.
1.7. Foi proferido despacho preliminar.
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido - artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, as questões que fundamentalmente se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
1.ª – se o despacho recorrido padece de falta de fundamentação;
2.ª – se a decisão a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova;
3.ª – se a requerente detém sobre o requerido um crédito no valor de € 461.155,13;
4.ª – se se verifica o justo receio de perda da garantia patrimonial deste crédito da requerente.
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3. Fundamentação
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3.1. A primeira questão enunciada constitui uma questão prévia à apreciação do mérito.
Sustenta a recorrente que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista na al. a) do n.° 1 do art. 379.° do Código de Processo Penal, porquanto omite por completo qualquer fundamentação sobre a apreciação feita sobre a prova, demitindo-se mesmo de indicar e proceder ao exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, o que torna totalmente imperceptível o processo causal e lógico que levou à prolação da decisão em crise, em flagrante violação do n.° 2 do art. 374.° do mesmo Código.
Vejamos.
3.1.1. Nos termos do preceituado no artigo 205º nº 1 da Constituição da República, “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Esta exigência constitucional não constitui uma mera exigência formal, já que a fundamentação cumpre uma dupla função: de “carácter subjectivo” - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários - e de “carácter objectivo” - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões (vide Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, p.70).
E reporta-se a todas as decisões dos tribunais, apenas ressalvando as de mero expediente.
O n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal é o preceito que condensa, no âmbito do processo penal, o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, ao estabelecer que “[o]s actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
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3.1.2. Não decorrendo desta norma genérica qual o grau exigível de fundamentação em cada acto decisório, há que lançar mão de critérios de razoabilidade e ter presente a função desempenhada pelo dever legal nele enunciado, ponderando-se relativamente a cada tipo de decisão o grau exigível de especificação dos fundamentos de facto e de direito que lhe subjazem.
Na palavra de Jorge Miranda e Rui Medeiros, a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara, coerente e suficiente e deve ser adequada à importância e circunstância da decisão (ob. cit., pp. 72-73).
In casu encontramo-nos perante a decisão final de uma providência cautelar de arresto preventivo, requerido ao abrigo do disposto no artigo 228.º do Código de Processo Penal.
De acordo com o n.º 1 do artigo 228.º, o arresto a decretar a requerimento do Ministério Público ou do lesado deve sê-lo feito “nos termos da lei do processo civil”, o que significa serem os pressupostos legais de que depende o seu decretamento os que o Código de Processo Civil exige no seu artigo 406.º, desenrolando-se o seu processamento nos termos previstos nos artigos 407.º e 408.º - vide Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, Lisboa 2009, p. 628 e o Acórdão da Relação do Porto de 2004.06.23, in CJ, tomo III, p. 218.
Devendo, em coerência, entender-se que o nível de exigência da fundamentação da decisão final da providência corresponde, igualmente, ao nível exigido pela lei processual civil.
A propósito da decisão sobre a matéria de facto nos procedimentos de natureza cautelar, escreve Abrantes Geraldes que logo a seguir à produção da prova o tribunal deverá ter em consideração o disposto no artigo 653.º, n.º 2 do Código de Processo Civil proferindo “decisão sobre a matéria de facto, com indicação dos factos provados e não provados, acompanhada da respectiva motivação”. Explicita este autor que a motivação “constitui um dever legal e uma exigência derivada da transparência e sindicabilidade das decisões, correlativa do direito das partes conhecerem, em concreto, os motivos que influíram na decisão do juiz, não bastando uma mera referência tabelar, genérica ou vazia de conteúdo quanto aos motivos da sua decisão” (in Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 4.ª edição revista e ampliada, Coimbra, 2010, pp. 234- 235 e nota 409).
E, referindo-se globalmente à natureza e estrutura da decisão final e ao dever de fundamentação, vem a concluir pela necessidade de se compatibilizarem os diversos princípios que regem a matéria dos procedimentos, destacando “por um lado, a celeridade e a apreciação sumária do litígio que não se compadecem com decisões excessivamente longas e prolixas e, por outro, a necessidade de concretizar uma fundamentação razoável, de acordo com as circunstâncias do caso” (pp. 238-239).
Impõe-se, pois:
- quer relativamente à decisão de facto [em que se enumeram os factos provados e não provados];
- quer relativamente à decisão de direito [em que se aprecia se os factos apurados preenchem as condições para o decretamento do arresto: (i) a afirmação da existência de um direito de crédito do arrestante sobre o arrestado no momento em que a providência é pedida e (ii)o justo receio de que, sem ela, se venha a frustrar ou a tornar-se consideravelmente difícil a sua prestação],
que o tribunal dê a conhecer, de modo sumário, mas suficiente, as razões do seu veredicto.
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3.1.3. Retornando ao caso sub-judice, verifica-se que a decisão recorrida não contém uma decisão de facto autonomizada, não elencando quaisquer factos provados ou não provados, quer os relacionados com a existência de um direito de crédito da requerente, quer os relativos à verificação de um justo receio de perda da garantia patrimonial desse crédito.
Assim, depois de emitir considerações gerais de direito sobre a providência do arresto preventivo, a ponderação do caso sobre que versa limita-se a uma frase, com o seguinte teor:
“Da valoração conjunta da prova documental e testemunhal carreada para os autos não resulta, porém, suficientemente indiciado que o requerido pretenda vender o prédio de que é proprietário ou desfazer-se de valores para não responder pelas obrigações relacionadas com os crimes por que está indiciado.”
A esta frase segue-se de imediato o segmento decisório em que é indeferida a medida pretendida por não estarem preenchidos os seus pressupostos legais.
Sem que previamente se elenquem os factos provados e não provados e sem que, relativamente aos únicos que descritivamente o tribunal a quo considerou não suficientemente indiciados – que o requerido pretenda vender o prédio de que é proprietário ou desfazer-se de valores para não responder pelas obrigações relacionadas com os crimes por que está indiciado –, se haja feito um exame, sucinto e perfunctório que fosse, da prova apreciada.
Se quanto ao aspecto jurídico da decisão pode dizer-se que a decisão final da providência contém uma fundamentação mínima, insusceptível de permitir a afirmação da absoluta ausência de fundamentação, já quanto à decisão de facto o mesmo não pode dizer-se.
Na decisão da matéria de facto, é manifesto que o tribunal a quo não cumpriu minimamente o dever geral de fundamentação que emerge dos citados preceitos constitucional (artigo 205.º da CRP) e legais (artigo 653.º, n.º 2 do CPC ex vi dos artigos 304.º, n.º 5 e 384.º, n.º 3 do mesmo diploma e todos estes ex vi do artigo 228.º, n.º 1 do CPP), e que para a generalidade das decisões penais se encontra prescrito no n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal: o texto da decisão recorrida não permite alcançar quais os factos que o tribunal considerou provados e, ainda que se considere quanto aos que descritivamente referiu não se terem apurado, que desse modo os elencou, não explana minimamente as razões determinantes do juízo de não prova desses factos.
O que, no que diz respeito a este último aspecto, impede o tribunal de recurso de compreender os motivos que levaram o tribunal a quo a firmar a sua convicção no sentido de que aqueles factos não se verificaram.
Tanto basta para que se considere a decisão de facto infundamentada.
Deve ainda acrescentar-se que no caso sub judice, atenta a configuração que foi dada ao recurso, a apontada falta de fundamentação impossibilita a sua apreciação pelo tribunal ad quem.
Na verdade, a recorrente dedica uma parte substancial das suas conclusões a invocar o erro notório na apreciação da prova no que diz respeito aos factos não apurados (vide as alíneas H a O das conclusões),
Este vício decisório, previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea c) do Código de Processo Penal, verifica-se “quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários, ou mesmo contraditórios, ou desrespeitou regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (vide Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, pp. 77 e 78).
Ora, lendo a decisão recorrida, que de todo não contém a exteriorização pelo Mmo. Juiz da análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos decisivos para a formação da sua convicção, fica-se sem perceber quais foram as razões concretas pelas quais considerou que a valoração da prova testemunhal e documental conduz à não indiciação daqueles factos necessários ao preenchimento de um dos pressupostos essenciais para que seja decretado o arresto preventivo: o justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito invocado pelo requerente (cfr. o artigo 406.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Assim, estando no recurso invocado o erro notório na apreciação da prova no que diz respeito a estes factos, a constatada falta de fundamentação inviabiliza de todo que o Tribunal da Relação – que neste aspecto apenas pode servir-se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, por força do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal –, aprecie a razoabilidade do juízo probatório efectuado e não plasmado no texto decisório.
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3.1.4. A questão que se coloca é a de saber em que espécie de invalidade se integra a inobservância do dever de fundamentação prescrito no artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal na decisão final da providência cautelar do arresto preventivo previsto no artigo 228.º do mesmo diploma.
O artigo 118.º do Código de Processo Penal consagra o princípio da legalidade (também denominado da tipicidade ou taxatividade) das nulidades, ao estabelecer que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal “só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” (n.º 1) e que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”(n.º2).
O sistema das nulidades insanáveis e dependentes de arguição estabelecido no Código de Processo Penal constitui um sistema fechado, configurando as normas relativas a nulidades como normas excepcionais, dado o seu carácter taxativo, o que afasta a possibilidade de aplicação analógica de outras disposições, nomeadamente as normas de direito processual civil, como forma de integrar eventuais lacunas legais – vide Conde Correia, in Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra, 1999, p. 152.
A falta de fundamentação das decisões não consta das nulidades insanáveis (artigo 119.º do CPP), nem das dependentes de arguição (elencadas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 120.º do CPP), o que impõe se averigúe se a mesma se encontra configurada na lei como tal (vide a segunda parte do corpo do n.º 2 do artigo 120.º).
É o que sucede especificamente com as sentenças, que devem cumprir as particulares exigências de fundamentação prescritas no artigo 374º do CPP, estabelecendo o artigo 379º, expressamente, que se “a sentença” não contiver as menções naquele preceito referidas é “nula”. Como resulta, aliás, das disposições conjugadas dos arts. 379.º e 380.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o referido artigo 379.º apenas logra aplicação ao caso da nulidade da sentença, e não aos casos de vícios processuais similares que ocorram nos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º do mesmo diploma, em que se incluem os despachos judiciais (vide ainda as nulidades configuradas no artigo 194.º, n.º 4 e nos artigos 308.º, n.º2 e 283.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPP).
Não podemos, assim, sufragar a afirmação da recorrente de que a decisão recorrida padece de nulidade nos termos prescritos no artigo 379.º do Código de Processo Penal.
O acto decisório em causa não conhece a final do objecto do processo, razão pela qual não pode o mesmo considerar-se uma sentença - cfr. o artigo 97.º, n.º 1, alínea a) - e só às sentenças se aplica o disposto nos artigos 374º e 379º do Código de Processo Penal.
Consubstanciando a decisão recorrida um “despacho” a inobservância na mesma do dever legal de fundamentação prescrito no n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal importa a sua irregularidade (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2), já que tal omissão não consta das nulidades insanáveis, nem das dependentes de arguição (artigos 119.º e 120.º), nem se encontra configurada na lei como tal.
Em suma, por não observar o dever legal de fundamentação enunciado no n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal, a decisão recorrida padece de irregularidade nos termos do preceituado no art. 123.º, n.º 1 do mesmo diploma.
Uma vez que a constatada irregularidade se reporta à própria decisão recorrida, entendemos que era lícito ao recorrente invocar a mesma em recurso e beneficiando do prazo para a interposição deste, por força do que estabelece o n.º 3 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, nos termos do qual “[o] recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 410.º do Código de Processo Penal, por “maioria de razão o recurso pode ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de irregularidade que não deva considerar-se sanada” in ob. cit., p. 1112.
Assim, porque esta irregularidade afecta o valor do acto praticado, impedindo mesmo a sua sindicância em via de recurso, há que declarar a irregularidade verificada e julgar inválida a decisão recorrida nos termos prescritos no artigo 123.º do Código de Processo Penal, determinando-se que o Mmo. Juiz da 1.ª instância lavre nova decisão final da providência em que enumere os factos provados e não provados e fundamente a decisão de facto quanto a uns e a outros, em conformidade com o dever de fundamentação que emerge dos enunciados preceitos legais, aplicando depois o direito aos factos apurados.
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Procede, pois, a questão prévia suscitada pela recorrente.
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3.2. Em consequência da solução dada à questão da irregularidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, mostra-se prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, relacionadas com o invocado erro notório na apreciação da prova, com a existência de um crédito no valor de € 461.155,13 e com a verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial deste crédito da requerente (conclusões E. a R.).
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4. Decisão
Em face do exposto, julga-se irregular o despacho recorrido e determina-se que os autos baixem à primeira instância a fim de o mesmo aí ser substituído por outro em que se elenquem devidamente os factos provados e não provados e se fundamente a decisão de facto.
Sem custas.
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(Documento elaborado pela relatora e integralmente revisto por quem o subscreve – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 20 de Outubro de 2010

Maria José Costa Pinto
Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida