Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7462/2007-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
HIPOTECA
PENHOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Os créditos laborais com privilégio mobiliário e imobiliário geral nos termos da Lei nº 17/86, de 14 de Junho e da Lei n.º 96/201, de 20 de Agosto, porque não são créditos que disponham de privilégio especial, não são oponíveis a terceiro com crédito garantido por hipoteca ou penhor, ou seja, não se aplica ao caso o disposto no artigo 751.º do Código Civil, mas antes o disposto no artigo 749.º do Código Civil
S.C.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Recurso interposto pelo B. […] NIPC (fls.2661)

2. Crédito reclamado em 22-4-1994 (ver fls. 491 dos autos) pelo Banco: 138.468.829$00.

3. O crédito está garantido por hipoteca incidente sobre imóvel

4. O crédito está garantido por penhor mercantil

5. A sentença graduou o crédito como crédito comum:  ver fls. 2397

6. Segundo o recorrente , atento o disposto no artigo 20.º/2 do CPEREF a graduação é geral para os bens da massa falida e especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia.

7. Assim, o seu crédito  deve ser graduado como hipotecário até ao montante dos valores pelos quais foram constituídas as hipotecas, sendo o remanescente qualificado como comum

8. O mesmo se diga em relação ao penhor mercantil.

9. A sentença ( ver fls. 2380/2447 in 9º Vol da reclamação de créditos) graduou os créditos da seguinte forma:

1º As custas dos presentes autos , incluindo a remuneração da liquidatária reclamada nos autos, saem precípuas de todo o produto da massa.
2º Os créditos reclamados pelos trabalhadores.
3º Os demais créditos reclamados nos autos, efectuando-se rateio entre eles na proporção dos respectivos montantes.

10. Os créditos dos trabalhadores, de acordo com a sentença, gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral ( ver Lei nº 17/86, de 14 de Junho e Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto).

11. A ora recorrente é credora hipotecária no que respeita aos empréstimos

A) 0888/00/89/2878/000/0
-capital em dívida.....           10.691.524$00
-juros contados
até 25-1-1994.............         7.153.569$00
(remuneratórios)
-imposto de selo                     643.821$00
                                  _____________
TOTAL......                      18.4888.914$00
B) 0888/00/90/0439/000/8
-capital em dívida.....           50.000.000$00
-juros contados
até 25-1-1994.............        34.528.388$50
(remuneratórios)
-imposto de selo                   3.107.555$00
                                  _____________
TOTAL......                      87.635.943$50

A ora recorrente é credora pignoratícia no que respeita ao empréstimo  0888/00/89/3034/000/1
-capital em dívida.....           20.857.107$40
-juros contados
até 25-1-1994.....                10.277.484$00
(remuneratórios)
-imposto de selo                     924.974$00
                            ____________    
TOTAL......                   32.059.565$40

12. Por isso, porque tais créditos gozam de garantia real (artigos 686.º) preferindo o crédito hipotecário  aos dos demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo e o pignoratício aos dos demais credores  pelo valor de coisa móvel ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca (artigo 666.º do Código Civil), não podem deixar de ser graduados com preferência sobre os créditos comuns importando atentar, no que toca aos juros  que a hipoteca não abrange mais do que os relativos a 3 anos considerada  a data da falência (25-1-1994; ver artigo 693.º/2 do Código Civil).

13. O remanescente do valor reclamado, e reconhecido, será graduado como crédito comum, nessa parte se mantendo a decisão proferida.

14. Quanto à graduação, e porque os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral, a questão que se suscita é a de saber se o artigo 751.º do Código Civil, é ou não aplicável.

15. Este preceito estabelece uma preferência do privilégio imobiliário em relação às garantias reais designadamente a hipoteca.

16. Não dizia o preceito, na primitiva redacção,  que os privilégios imobiliários especiais preferem à hipoteca, como agora sucede, o que permitiria sustentar o entendimento de que, não distinguindo a lei, o privilégio imobiliário, fosse ele geral ou especial, se encontrava abrangido pelo artigo 751.º do Código Civil.

17. A entender-se assim, quando a Lei nº 17/86, de 12 de Junho veio atribuir privilégio imobiliário geral aos créditos dos trabalhadores, tais créditos preferiam à hipoteca.

18. Podia, no entanto, sustentar-se que à luz do Código Civil os privilégios imobiliários que a lei tinha em vista eram os privilégios imobiliários especiais não o referindo aquele preceito expressamente por se considerar que uma tal referência seria redundante visto que  o próprio Código Civil prescrevia noutro preceito - artigo 735.º/3 - que “ os privilégios imobiliários são sempre especiais”.

19. Ora, se são sempre especiais, então o artigo 751.º do Código Civil tinha em vista apenas tais privilégios e não outros.

20. Se algum privilégio imobiliário geral viesse a ser reconhecido pela lei a determinado crédito, não seria o artigo 751.º do Código Civil aplicável porque esse preceito tinha em vista os privilégios imobiliários especiais.

21. Não nos esqueçamos de que no diploma preambular do Código Civil se prescrevia (ver artigo 8.º/1 do Decreto-Lei n.º 47334, de 25 de Novembro de 1966) que “ não são reconhecidos para o futuro, salvo em acções pendentes, os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo quando conferidos em legislação especial”.

22. Os créditos dos trabalhadores não foram esquecidos pelo legislador de 66 que lhes atribuiu privilégio mobiliário geral, mas não privilégio imobiliário ( ver artigo 737.º, alínea d) do Código Civil).

23. Não seria, portanto, à luz da primitiva redacção do artigo 751.º do Código Civil, atribuível preferência do crédito com privilégio imobiliário geral em relação à hipoteca:  veja-se Ac. do S.T.J. de 3-4-2001 (Azevedo Ramos)(P. 652/2001), Ac. do S.T.J. de 5-2-2002 (Reis Figueira) C.J.,1, pág. 71, Ac. do S.T.J. de 27-6-2002 (Quirino Soares) C.J.,2, pág. 146, Ac. de 24-9-2002 (Azevedo Ramos) C.J.,3, pág. 54, Ac. do S.T.J. de 3-4-2003 (Silva Salazar) (Revista 466/2003), Ac. do S.T.J. de 18-6-2003 (Santos Bernardino) (P. 03B  1550), Ac. do S.T.J. de 24-6-2004 (Oliveira Barros) (P. 1560/2004), Ac. do S.T.J. de 26-10-2004 (Lopes Pinto) (P. 2875/2004), Ac. do S.T.J. de 13-1-2005  (Salvador da Costa) (P. 4398/2004); publicado na C.J.,2005,1, pág. 41, Ac. do S.T.J. de 7-6-2005 (Lopes Pinto) (P. 1774/2005) também na C.J.,2, pág. 116, Ac. do S.T.J. de 22-6-2005 (Custódio Montes) (P. 1511/2005), Ac. do S.T.J. de 4-10-2005 (Barros Caldeira) (Revista nº 1653/2005), Ac. do S.T.J. de  25-10-2005 (Silva Salazar) (P. 2606/2005) também na C.J.,3, pág. 86, Ac. do S.T.J. de 8-11-2005  (Nuno Cameira) (P. 2355/2005), Ac. do S.T.J. de 29-11-2005  (Oliveira Barros) (P. 3145/2005),Ac. do S.T.J. de 29-11-2005 (Salreta Pereira) (P. 3534/2005), Ac. do S.T.J. de 21-2-2006  (Pereira da Silva) (P. 2387/2005), Ac. do S.T.J. de 27-6-2006 (Pinto Monteiro) (Revista nº 438/2006), Ac. do S.T.J. de 21-9-2006 ( P. 2871/2006) (Salvador da Costa, Ac. do S.T.J. de  14-11-2006 (Urbano Dias (P. 3563/2006) também na C.J, 3, pág. 107, Ac. do S.T.J. de 8-6-2006 (Fernandes Magalhães) (P. 1487/2006), Ac. da Relação de Lisboa de 14-3-2002 (Cruz Broco) C.J.,2, pág. 77. Este entendimento não era unânime mas era e é maioritário:  ver Ac. do S.T.J. de 18-11-1999 (Peixe Pelica) B.M.J Nº 491-233, Ac. da Relação do Porto de 2-5-2000 (Soares de Almeida) B.M.J. 497-443.

24. Com a alteração introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março  no texto dos artigos 735.º e 751.º do Código Civil, disposição que se deve ter por interpretativa (artigo 13.º do Código Civil) ficou clarificado que, sendo especiais os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil, outros privilégios que possam ser ou tenham sido constituídos que não gozem de privilégio imobiliário especial não preferem aos créditos com garantia real referidos no artigo 751.º do Código Civil.

25. O Tribunal Constitucional não considera este entendimento ferido de inconstitucionalidade. Assim se lê no Acórdão n.º 284/2007 do Trib. Const. de 8-5-2007 in , D.R. n.º 122, Série II de 2007-06-27, 27-6-2007 “não padecer de  inconstitucionalidade  a norma do artigo 751.º do Código Civil na interpretação segundo a qual esta norma não abrange o privilégio imobiliário geral concedido aos créditos laborais pelo artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho”

26. Recentemente o Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de 1-3-2007 (Silva Salazar) (revista nº 477/2006) salientou o seguinte:

 “I - O art. 751.º do CC, mesmo antes da redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/03, de 08-03, continha e contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens certos e determinados e pelo facto de os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual CC, o que implicava que, dizendo o n.º 3 do art. 735.º que os privilégios imobiliários eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários especiais o dito art. 751.º se podia referir, só estes, portanto, preferindo, que à consignação de rendimentos, quer à hipoteca, quer ao direito de retenção.
II - O citado DL veio, pois, decidir a questão já então controvertida de saber quais dos créditos assim garantidos ou protegidos deviam ser pagos em primeiro lugar, questão essa forçosamente conhecida do legislador e que este quis resolver excluindo de forma explícita do art. 751.º os privilégios imobiliários gerais.
III - Assim, constitui esta nova formulação desse dispositivo uma norma de natureza interpretativa, que, nos termos do art. 13.º, n.º 1, do CC, se integra no mesmo dispositivo e, consequentemente, nos diplomas legais que atribuíram aos créditos laborais e da Segurança Social privilégio imobiliário geral, pelo que a sua aplicação aos créditos anteriores não constitui aplicação retroactiva.
IV - Só com a aprovação do Código do Trabalho pela Lei n.º 99/2003, de 27-08, entrado em vigor, nos termos do art. 3.º, n.º 1, da mesma Lei, em 01-12-2003, é que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, passaram a gozar do privilégio imobiliário especial, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, segundo se dispõe no seu art. 377.º, n.º 1.
V - Não podendo este art. 377.º ser considerado como uma norma de natureza interpretativa por ser inovador ao criar um privilégio imobiliário especial antes inexistente, - o que, à luz do art. 13.º, n.º 1, do CC, impede a sua integração no art. 12.º da Lei n.º 17/86, que o art. 21.º, n.º 2, al. e), da mesma Lei n.º 99/2003, até visa revogar -, se ignora qual o imóvel em que cada um dos ora recorrentes exercia a sua actividade.
VI - Os créditos laborais dos ora recorrentes apenas beneficiam de privilégios imobiliários gerais, que se traduzem em meras preferências de pagamento, só susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns, pois, não incidindo esses privilégios sobre bens determinados - pelo que não estão envolvidos de sequela -, o regime aplicável tem de ser o dos privilégios mobiliários gerais a que se reporta o art. 749.º do CC, cedendo os direitos de créditos por eles protegidos perante os direitos de crédito garantidos por consignação de rendimentos, hipoteca, ou direito de retenção.
E muito recentemente o mesmo Supremo Tribunal salienta - ver  Ac. do S.T.J. de 17-5-2007 (Salvador da Costa) (P. 1309/2007) - o seguinte:
“1. Os privilégios creditórios imobiliários gerais não se consubstanciam em garantias reais de cumprimento de obrigações por não incidirem sobre imóveis certos e determinados, só funcionando como causa de preferência legal de pagamento.
2. O conflito entre a garantia especial de cumprimento obrigacional decorrente de privilégio creditório imobiliário geral e de hipoteca é legalmente resolvido por via da aplicação do disposto no nº 1 do artigo 749º e não do que se prescreve no artigo 751º, ambos do Código Civil
3. O direito de crédito garantido por hipoteca prevalece na graduação em relação ao produto do prédio apreendido para a massa falida sobre o direito de crédito dos trabalhadores garantido por privilégio imobiliário geral.

27. Assim, na graduação, os créditos hipotecários da recorrente, nos termos assinalados, devem figurar em 2º lugar, seguindo-se os créditos dos trabalhadores e, depois, os demais créditos, tal como se decidiu, nestes se incluindo o remanescente dos créditos do recorrente não abrangidos pela garantia real.

28. Quanto ao  crédito pignoratício não se suscita dúvida de que, na graduação, antecede os créditos laborais.

Concluindo:
Os créditos laborais com privilégio mobiliário e imobiliário geral nos termos da Lei nº 17/86, de 14 de Junho e da Lei n.º 96/201, de 20 de Agosto, porque não são créditos que disponham de privilégio especial, não são oponíveis a terceiro com crédito garantido por hipoteca ou penhor, ou seja, não se aplica ao caso o disposto no artigo 751.º do Código Civil, mas antes o disposto no artigo 749.º do Código Civil

Decisão: concede-se provimento ao recurso graduando-se o crédito do recorrente nos termos anteriormente indicados.

Sem custas
Lisboa,11 de Outubro de 2007
(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)