Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
617/2008-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1 – A finalidade específica das providências cautelares decorre do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada.
2 – Se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, falta a necessidade da composição provisória e a providência não pode ser decretada.
3 – Tendo sido requerido inventário judicial, não há fundamento para se decretar uma providência cautelar, visando evitar que o cabeça – de – casal lese interesses da herança ou dos demais interessados, sonegue ou oculte bens da herança, disponha indevida e ilegalmente de bens da herança pois as normas que visam a tramitação do processo de inventário prevêem mecanismos próprios de evitar que qualquer interessado venha a sofrer perigo de lesão grave e dificilmente reparável.
G.F.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
[Maria] requereu contra [J] a presente providência cautelar não especificada, pedindo que (i) seja entregue provisoriamente à Requerente e a sua filha, para que nela possam habitar, o imóvel pertencente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais; (ii) que o Réu proceda ao depósito das rendas dos imóveis pertencentes à referida herança ilíquida e indivisa ou, em alternativa que (iii) o Réu entregue à Autora 50% dos rendimentos que lhe cabem; (iv) que seja notificado para se abster de praticar actos lesivos dos bens que integram a herança, tais como obras ilegais e não licenciadas, sem o necessário consentimento da Autora; (v) que seja notificado o Réu para se abster de praticar actos que oneram os imóveis da herança, tais como celebrar contratos de arrendamento sobre os mesmos e outros contratos que diminuam a posse e o gozo efectivo dos mesmos por parte da Autora e do Réu; (vi) que seja notificado para se abster de praticar actos que, de um modo geral, diminuam o valor dos bens da herança; (vii) que seja notificado o Réu para proceder ao depósito e entrega das jóias deixadas por óbito de [Lucinda] a um fiel depositário, indicando-se para o efeito [Raquel], incumbindo-a da guarda e administração das mesmas.

Fundamentando a sua pretensão, refere que tanto ela quanto o Requerido são filhos e únicos herdeiros dos falecidos [Manuel] e mulher [L], os quais deixaram diversos bens móveis, imóveis e contas bancárias.
Dos quatro imóveis arrendados, existem sete arrendamentos, recusando-se o Requerido a identificar os nomes dos inquilinos, os montantes das rendas bem como a repartir as mesmas, sendo certo que, a partir da morte dos pais, se apodera das referidas rendas, recusando-se a depositá-las em conta aberta em nome de todos os herdeiros ou a dividir as referidas verbas.

Para além disso, os falecidos deixaram diversas contas bancárias, as quais o Réu não incorporou na competente relação de bens apresentada às Finanças, recusando-se igualmente a proceder ao levantamento dessas verbas e divisão pela Autora, que reside na Venezuela.

Apesar do Requerido se utilizar de um imóvel da herança, onde habita, impede que a Requerente, ou a sua filha, se utilizem de um outro imóvel da herança, quando se deslocam à Madeira, retirando todos os móveis do interior das casas.

O Réu tem efectuado obras na moradia que deveria ser atribuída, sem o consentimento desta, só para ir gastando o dinheiro da herança com obras desnecessárias e não licenciadas e encontra-se a dissipar os bens móveis.

O Réu já desapareceu com as jóias deixadas, tendo-as entregue a outros familiares, existindo, pois, o perigo de dissipar os bens móveis e as jóias.

O Requerido contestou, impugnando os factos articulados pela Requerente.
Foram inquiridas as testemunhas. Foi proferida decisão, tendo a providência sido julgada improcedente.

Inconformada, recorreu a Autora, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O “periculum in mora” consiste num juízo de certeza, de realidade, da iminência de lesão grave e dificilmente reparável do direito que se quer proteger.
2ª – Existindo o fundado receio de uma lesão, porque o Agravante já se encontra a gastar o dinheiro recebido das rendas, que pertencem à herança e em parte à Agravante, em obras desnecessárias, tanto que nem estão licenciadas, só com o objectivo de não dividir com a Agravante, usando-as para seu único e exclusivo aproveitamento.
3ª – Já tendo dissipado alguns bens pertencentes à herança, é mais do que previsível que continuará a fazer o mesmo, a seu bem entender.
4ª – Existe, também, lesão grave do direito da Agravante à sua parte na herança, pois o Agravado vai dissipando os bens, e aquando da partilha dos mesmos, a Agravante sairá lesada, porque o Agravado, além dos bens que já dissipou para seu proveito, irá receber a herança na mesma proporção que a Agravante.
5ª – Também se verifica uma difícil reparação desse direito, pois nunca o Agravado irá ressarcir a Agravante das rendas já por si dissipadas, e muitas das jóias da falecida mãe de ambos, além do valor patrimonial, têm elevado valor sentimental para a Agravante.
6ª – Mesmo que a Agravante seja indemnizada pelo Agravado pela dissipação dessas jóias, nunca existirá reparação do direito que lhe assistia em ficar com parte dessas jóias.
7ª – A Agravante não tem direito sobre qualquer bem concreto que integre a herança, por esta se encontrar indivisa e ilíquida, tal como o Agravado não tem.
8ª – Não pode o Agravado usar da sua nomeação como cabeça de casal para justificar a sua actuação, porque de acordo com o artigo 2079º do CC apenas tem poderes de administração da herança.

O Agravado contra – alegou, defendendo a bondade da decisão recorrida.

Cumpre decidir:

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da Recorrente, extraídas das alegações, importa saber se há fundamento para se decretar a requerida providência.
2.
Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - A Autora é herdeira da herança ilíquida e indivisa de [Manuel] e mulher [Lucinda], falecidos , respectivamente, em 16/07/95 e 26/12/06.
2º - A Autora e Réu são filhos dos inventariados.
3º - Os inventariados deixaram diversos bens móveis e imóveis, no concelho do Funchal;
4º - Os falecidos deixaram os seguintes bens imóveis:
a) - prédio urbano sito na Rua da Carne Azeda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 811 da freguesia do Imaculado Coração de Maria, concelho do Funchal;
b) - prédio urbano sito na Rua da Carne Azeda;
c) - prédio urbano sito na Rua da Carne Azeda, n. º 32-A, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 841 da freguesia do Imaculado Coração de Maria, concelho do Funchal e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n. 1307;
d) - fracção autónoma designada pela letra A do prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1600 da freguesia do Imaculado Coração de Maria, concelho do Funchal;
e) – fracção autónoma designada pela letra B do prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1600 da freguesia do Imaculado Coração de Maria, concelho do Funchal.
5º - Os falecidos deixaram diversos bens móveis compostos pelo recheio dos imóveis referidos em c) e e).
6º - O imóvel referido em c) era a casa de habitação dos falecidos e residência do Réu.
7º - Os referidos imóveis encontram-se arrendados, à excepção dos dois imóveis referidos em c) e e).
8º - Dos quatro imóveis arrendados existem sete arrendamentos, correspondentes aos imóveis com entrada pela Rua da Carne Azeda, n. os e pelo imóvel sito no Beco do Sousa n. º 12.
9º - A Autora reside na Venezuela.
10º - Aquando da morte da mãe do Réu, em Dezembro de 2006, a Autora combinou com o Réu que viria para a Madeira para tratar da divisão de bens, tendo o Réu acordado em que esta viesse ocupar uma das casas desocupadas e sem inquilinos, e que seria o imóvel sito na Rua da Carne Azeda, n. º 34-D, pois era o único vago, dado que o Réu habita na Rua da Carne Azeda n.º 32-A;
11º - A Autora transmitiu ao Réu que pretendia vir residir definitivamente para a Madeira.
12º - A Autora entrou em processo litigioso de divórcio, razão pela qual não pôde vir de imediato para a Madeira.
13º - Em seu lugar, mandou a sua filha [R], para que a substituísse e representasse;
14º - Esta veio definitivamente para a Região.
15º - O Réu impediu que a filha da Requerente ficasse numa das casas.
16º - Consequentemente, a filha da Autora foi residir para casa de uma das vizinhas da rua.
17º - O Réu chegou a agendar o dia 14/07/2007 pelas 10H30 horas para entregar uma casa, não tendo comparecido.
18º - O Réu vive numa das casas da herança e impede que a Autora e a sua filha vivam noutra.
19º - O Réu tem efectuado obras na moradia mencionada em e), sem o consentimento da Autora.
20º - Em 24/07/07, deu entrada neste Tribunal processo de inventário por óbito dos pais da Requerente e do Requerido.
21º - Aquando da entrada em juízo da providência ainda não se mostrava junta aos autos principais a relação de bens.
3.
Estipula o artigo 381º do CPC que, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar o efectividade do direito ameaçado. A providência é decretado, desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão (artigo 387º, n.º 1 CPC).

Exige, assim, a lei para o decretamento de uma providência cautelar comum ou não especificada que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) – Probabilidade séria da existência do direito ameaçado;
b) – Fundado receio de lesão grave e de difícil reparação desse direito;
c) – Inaplicabilidade de algum procedimento cautelar nominado;
d) – Adequação da providência à remoção do periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado;
e) – Que o decretamento da providência não implique prejuízo superior ao dano que se visa evitar.

No caso concreto, a pretensão da Requerente não reúne as condições elencadas. Dos factos provados, e são a esses que nos devemos ater, não resulta, desde logo, a verificação do periculum in mora.

Com efeito, a necessidade da composição provisória decorre do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada. A finalidade específica das providências cautelares é, por isso, a de evitar a lesão grave e dificilmente reparável, na expressão do artigo 381º, n.º 1, proveniente da demora na tutela da situação jurídica, isto é, obviar ao chamado periculum in mora. Esse dano é aquele que seria provocado quer por uma lesão iminente, indiciada nomeadamente por lesões passadas, quer pela continuação de uma lesão em curso, ou seja, de uma lesão não totalmente consumada.
Se faltar o periculum in mora, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, falta a necessidade da composição provisória e a providência não pode ser decretada. Quer dizer, esse periculum é um elemento constitutivo da providência requerida, pelo que a sua inexistência obsta ao decretamento daquela.

Ora, reportando-nos aos factos considerados provados, nada nos permite inferir a existência de fundado de receio de que antes de proferida a decisão de mérito nos autos de inventário, surja uma lesão grave e de difícil reparação do direito da autora. De facto, como muito bem considera a sentença, “o que sucede nos presentes autos de inventário é o que sucede em todos os que são interpostos: um ou mais herdeiros requer o inventário, é nomeado o cabeça de casal com poderes de administração da herança que lhe são atribuídos pela lei; este deve juntar relação de bens”.

Se o cabeça de casal prevarica, não cumpre com as suas obrigações, lesa interesses da herança e ou dos demais interessados, há sempre possibilidade de remoção do cabeça – de – casal, o que não aconteceu.

Se o cabeça – de – casal sonega ou oculta bens, há também no âmbito do próprio processo de inventário incidentes e meios para o denunciar, fazer cumprir e responsabilizar (cfr. artigo 2096º[1]).

Se o cabeça – de – casal dispõe indevida e ilegalmente de bens da herança, ultrapassando os poderes de administração que lhe cabem ou fazendo mau uso destes, há, ainda, no processo de inventário, meios e formas de lhe pôr termo e de responsabilizar o cabeça – de – casal.

Se o cabeça – de – casal não presta contas, há um processo próprio para o efeito.
Ora, in casu, os autos principais ainda nem sequer chegaram à fase da reclamação à relação de bens, pelo que ainda não foram accionados os mecanismos legais previstos para, em momento oportuno, impugnar o que o cabeça – de – casal considera integrar ou não a herança. Assim, merece a nossa aceitação a sentença quando refere que, relativamente a todas as questões suscitadas pela Requerente no tocante às rendas, contas bancárias e jóias, nada permite dizer, neste momento, que existe qualquer periculum in mora relativamente aos mesmos, sendo certo que as normas que visam a tramitação do processo de inventário prevêem mecanismos próprios de impugnação, pelo que não estamos perante o processo próprio para o efeito.

Quanto as rendas dos imóveis locados, também a sentença considerou e bem que, embora a 1ª parte do artigo 2092º do CC preveja a possibilidade de os herdeiros exigirem ao cabeça de casal que distribua por todos eles, até metade dos rendimentos que lhes caibam, a segunda parte do preceito salvaguarda a situação de tais rendimentos serem necessários, mesmo nessa parte, para encargos da administração.

Como, in casu, ainda não decorreu um ano, desde a investidura do Requerente, no cargo de cabeça – de – casal, este ainda não prestou contas conforme impõe o artigo 2093º, n.º 1 do CC, pelo que ainda não é possível determinar se tal distribuição é possível ou não.

Acresce que, relativamente aos arrendamentos dos imóveis que integram a herança, os mesmos constituem actos de administração que cabem nos âmbitos do cabeça de casal (cfr. artigo 2087º, n.º 1 CC).

Por outro lado, também não estão provados factos que nos permitam afirmar que existe um perigo de lesão grave do direito e dificilmente reparável na não atribuição de uma casa pelo cabeça de casal à Requerente. É certo que não faz o mínimo sentido, julgando-se até um acto vergonhoso do cabeça de casal utilizar uma casa da herança para nela habitar e impedir a irmã de utilizar uma outra casa da herança igualmente para nela habitar, quando se desloca à Madeira, ou para que nela habite a sua filha e procuradora, enquanto permanece na Madeira, no decurso do inventário judicial. Quer o cabeça- de – casal, quer a irmã têm rigorosamente os mesmos direitos em relação aos bens da herança. O facto de ela poder utilizar uma dessas casas não significa que a mesma lhe venha a ser adjudicada na partilha, tal como nada garante que a casa utilizada pelo cabeça – de – casal lhe possa ser adjudicada. Se a casa devoluta pode ser arrendada, também a casa ocupada pelo cabeça – de – casal o poderia ser. Cremos que, com a ajuda do seu ilustre mandatário, verá o cabeça de casal a irrazoabilidade da sua conduta, que não o dignifica nem como herdeiro, nem como cabeça de casal. Aos olhos de qualquer pessoa sensata surge como injusta a atitude do cabeça de casal que não se coíbe de residir numa das casas da herança, impedindo, por outro lado, a Requerente e/ou a sua filha e procuradora de residir numa outra casa da herança provisoriamente. Todavia, embora seja patente a atitude indigna assumida pelo Requerido, tal circunstância não permite concluir que o direito genérico à herança ilíquida e indivisa por óbito de seus pais, esteja a sofrer perigo de lesão grave e dificilmente reparável. É que não existe qualquer direito que assista, neste momento, à Requerente, cuja não atribuição de imediato acarrete para a mesma um prejuízo de difícil reparação, e isto porque tanto ela quanto o seu irmão não têm, em bom rigor, qualquer direito sobre qualquer bem concreto que integre a herança.
4.
Pelo exposto, negando provimento ao agravo, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela Requerente.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2008

Manuel F. Granja da Fonseca

Fernando Pereira Rodrigues

Maria Isabel Pereira

_______________________
[1] O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça – de – casal, perde em benefício dos co – herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de que incorre nas mais sanções que forem aplicáveis.