Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1174/12.3TVLSB.L1-7
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
DENÚNCIA
DEFEITO DA COISA
ABUSO DE DIREITO
DANOS
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. No contexto da aplicação da legislação de protecção do consumidor, para aferir se a denúncia da falta de conformidade de um determinado veículo foi atempada, importará ter em conta, não apenas a verificação atomística das anomalias que sucessivamente o automóvel vai apresentando ao longo de certo tempo, mas também o comportamento do automóvel globalmente considerado.

II. Tratando-se de automóvel de marca conceituada, mas que em menos de dois anos apresenta um histórico com 11 intervenções, incluindo substituição de componentes, e não obstante o consumidor ter em todas elas obtido a reparação do veículo a expensas do representante, não age com abuso de direito se só depois da última reparação vem a tomar a decisão de pedir a substituição do veículo.

De facto, neste caso a sucessiva e expressiva verificação de anomalias pode ser encarada em si mesma como um facto autónomo radicado na repetição inaceitável das desconformidades do produto.
A última das anomalias pode nem sequer ser a mais expressiva mas pode ser aquela que acaba por motivar o consumidor a accionar os direitos que a lei lhe faculta.

E perante essa repetição de avarias, enquanto facto autónomo, naturalmente que não pode ser negado ao consumidor um dos meios que a lei lhe faculta para defesa do seu direito: a substituição do veículo – sem que se deva considerar que o consentimento nas reparações constitua um facto anterior incompatível.

III. Na ausência de alegação mínima acerca do período durante o qual uma pessoa foi privada do uso de um veículo devido à reparação das anomalias que foi apresentando ao longo do tempo, não é possível, por falta de elementos, sustentar uma condenação baseada em dano relevante por privação do uso do veículo.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


I. RELATÓRIO:

1. Pedido: condenação das R.R. na substituição do veículo, de marca Y, modelo C…, …, por um novo veículo de iguais características e em estado novo, e de indemnização por danos patrimoniais, num valor não inferior a € 5.000,00.

A A. alegou, em síntese, que adquiriu à 1ª R. um veículo em estado de novo, o qual sofreu diversas avarias até aos 22.521 km, não reunindo tal veículo as necessárias condições de segurança nem estando conforme com o contrato de compra e venda.

A 1ª R. contestou, arguindo a excepção de caducidade dos direitos que poderão assistir à A., porquanto esta não denunciou ao vendedor a falta de conformidade no prazo de dois meses a contar da data da sua detecção. Argumenta, ainda, a Ré que a A. incorre em abuso de direito ao vir requerer a substituição do veículo após ter optado pela reparação das pretensas anomalias. Em caso de procedência do pedido, entende a R. que a A. tem de restituir àquela o valor correspondente à desvalorização do veículo resultante do uso e utilização que deu ao veículo. Subsidiariamente, pugna a R. pela condenação da A. no pagamento de uma indemnização de € 20.250 correspondente à diferença entre o preço do veículo em novo e o valor do veículo à data em que a A. o entregue efectivamente à R..

A 2ª R. também contestou, arguindo, igualmente, a excepção da caducidade, sustentando que a A. não observou o prazo de dois meses para denunciar a alegada falta de conformidade.

Foi proferida sentença, na qual o Tribunal a quo julgou a acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolveu as R.R. dos pedidos.

2. Inconformada com a sentença, dela vem apelar a A., formulando as seguintes conclusões:
1 – O presente Recurso tem por objecto toda a matéria da Sentença proferida nos presentes autos, incluindo a reapreciação da prova gravada.
2 - Considera a ora Recorrente, antes de mais, que face à matéria de facto dada como provada, concretamente, deveria ter sido outro o enquadramento jurídico efectuado, e não absolver as RR. do pedido pela ocorrência da caducidade da denúncia da falta de conformidade do bem.

3 - Da factualidade provada resulta que:
- No dia 12/10/2010 foram substituídos os kit injectores – Facto 11;
- No dia 18/10/2010 foi substituído o vedante – Facto 12;
- Em dia não apurado de Janeiro de 2011, o veículo voltou à oficina pois patinava em 1ª tanto em quente como em frio – Facto 13;
- No dia 06/07/2011 substituição da bomba de água – Facto 18;
- No dia 25/08/2011 substituição do corpo da bomba de água – Facto 20;
- No dia 14/11/2011 foi colocado jogo de cabos – Facto 21;
- No dia 25/11/2011 substituição do corpo da bomba de água – Facto 25;
- No dia 10/05/2012 substituição do volante do motor e a embraiagem – Facto 27;
4 - Pelos factos provados, podemos verificar que as intervenções ocorreram nas datas acima referenciadas, sendo que, a última intervenção antes da interpelação das RR. pela A., ocorreu no dia 10 de Maio de 2012. Ou seja, 12 dias antes da A. requerer a substituição do veículo às RR., e 21 dias antes de interpor a presente acção judicial.

5 - Dos factos provados resulta ainda que:
- Não é normal, nem tão pouco expectável que um veículo com as características referidas em 1 esteja, aos 22521 km, com o número de avarias e substituição de peças já realizadas – Facto 28;
- O número de avarias e reparações, não é compatível com a marca do mesmo (Y.), com o referido em 37, bem como com o investimento realizado pela Autora para a sua aquisição – Facto 29;
- A substituição da bomba de água, volante do motor e embraiagem demonstram que o veículo referido em 1 não reúne as condições que um bem adquirido em 1ª mão deveria apresentar – Facto 31;
- Sobretudo num veículo com a quilometragem e utilização que este apresenta – Facto 32;
- No ato da compra e venda, um veículo automóvel da marca Y, deverá ter uma durabilidade e fiabilidade que o presente veículo automóvel não apresenta – Facto 36;
6 - Como se constata, foi provado que o bem não estava de acordo com o contrato de compra e venda, nem tão pouco com as expectativas criadas pela marca Y. (2ª R.) e pela vendedora do bem – M. (1ª R.).
7 - O Mmo. Juiz a quo considerou, e bem, que a compra e venda em causa sujeita-se ao regime do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4 (venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas).
8 - Perante a matéria de facto dada como provada existe uma falta de conformidade do bem com o contrato, conforme factos dados como provados e reproduzidos supra.
9 - O Mm.º Juíz a quo refere na douta sentença que: “Todavia, em 22.5.2012, já haviam decorrido mais de sessenta dias sobre o momento em que a autora teve conhecimento dos problemas do veículo enunciados sob 11 a 25. Assim sendo, caducou o prazo de denúncia das eventuais faltas de conformidade em causa ocorridas entre 12.10.2010 e 25.11.2011 (cf. artigo 5º-A, nº2, do Decreto-lei nº 67/2003, de 8.4).  No arco temporal de dois meses que precedeu a carta de 22.5.2012 apenas se situam a substituição do volante do motor e a embraiagem em virtude desta patinar na 5ª e 6ª velocidade (facto 27). Todavia, o volante e a embraiagem foram substituídas, sendo o custo suportado pela 2ª ré. Como deram nota no seu relatório, os Srs. Peritos frisaram que não detectaram qualquer problema na embraiagem, sendo que a autora não alegou que o mesmo tenha sequer persistido após a reparação. Neste contexto, afigura-se-nos que a autora não pode exigir à vendedora (1ª ré) a substituição do veículo porquanto – tendo a avaria em causa sido reparada no período de garantia – tal substituição integraria um genuíno abuso de direito (cf. artigo 4º, nº5, do diploma em causa). Na verdade, a autora optou, em primeira mão, pela reparação da avaria com a substituição do volante do motor e da embraiagem, as quais foram realizadas com o seu assentimento. Ou seja, a autora exerceu um dos direitos que lhe assistia (o da reparação da coisa), não podendo vir ainda exigir – após a reparação – a substituição da coisa por outra nova – cf. artigo 4º, nº1, do referido diploma.”
10 - Aqui podemos dividir a questão em duas a caducidade e a substituição do bem.
11 – Quanto à caducidade o Mmo. Juíz a quo não relevou a substituição do volante do motor e a embraiagem datado de 10 de Maio de 2012, conforme facto 27 dos factos provados.
12 - Para o Mmo. Juiz a quo este facto não é relevante, nem tão pouco poderá configurar uma falta de conformidade do bem com o contrato. O que a Recorrente não concorda.
13 - Os defeitos do bem ocorreram de forma continuada, sendo que o último defeito ocorreu no dia 10 de Maio de 2012. Tendo a A. denunciado os defeitos em 22 de Maio de 2012.
14 - Nessa data a autora tomou conhecimento da falta de conformidade do bem com o contrato, tendo nesta data a A. perdido a confiança total no bem.
15 - Esta falta de conformidade do bem com o contrato tem de ser visto com o veículo no seu todo, e não apenas peça a peça. Os defeitos foram recorrentes desde 12 de Outubro de 2010 até 10 de Maio de 2012, conforme factos provados.
16 - Sendo os mesmos de diversa espécie, tendo culminado em 10 de Maio de 2012 com a mudança do volante do motor e embraiagem.
17 - Nesta data é que a A., ora recorrente verificou que o bem estava desconforme com o contrato de compra e venda.
18 - A Recorrente denunciou os defeitos às RR. no dia 22 de Maio de 2012 através de carta registada com aviso de recepção, conforme factos dados como provados.
19 - Tudo isto no prazo de dois meses a contar da data de 10 de Maio de 2012.
20 – Mas mais, as Rés sempre tiveram conhecimento dos defeitos desde Outubro de 2010 e todas as intervenções seguintes, conforme factos dados como provados.
21 - O legislador fala em falta de conformidade, não distinguindo entre o primeiro e último defeito. Esses defeitos podem surgir no 1º dia de garantia como no último, sendo que nos presentes autos todos eles foram denunciados.
22 - Pelo que, a excepção de caducidade não deverá proceder, devendo em consequência desse facto dar provimento à presente acção.
23 – Quanto à substituição do bem verificamos pela análise do artigo 4º do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4 que perante a existência de uma desconformidade da coisa comprada, o consumidor tem direito a que ela seja eliminada através de quatro remédios jurídicos, que a lei lhe atribui.
24 - O n.º5 do artigo 4.º refere que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito.
25 - O Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4 com a aposição da conjunção disjuntiva “ou” indicia uma alternatividade pura.
26 - A A. não aceitou a reparação do bem, foi-lhe apresentado como dado adquirido com a reparação de 10 de Maio de 2014.
27 - Após essa data é que a A. denunciou a falta de conformidade e requereu a substituição do bem.
28 - Neste sentido a A. não estaria limitada no exercício do seu direito enquanto consumidora.
29 - No contrato de compra e venda de bens de consumo, abrangidos pelo âmbito do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4, os direitos do comprador por desconformidades da coisa vendida são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas condicionada pelos limites impostos pelo n.º 5, do referido art.º 4º – impossibilidade manifesta do seu exercício ou abuso de direito.
30 - Assim, o comprador, perante a desconformidade do bem vendido, pode, em princípio, desde que respeite os princípios da boa-fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido, optar pelo exercício de qualquer um daqueles direitos, entre os quais se insere o da substituição do bem, que não está reservado apenas para as hipóteses de incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento dos deveres de reparação ou resolução do contrato, justificando-se a sua utilização desde que a desconformidade que o bem apresenta não seja insignificante.
31 - É certo que o respeito por aqueles princípios conduzirá muitas vezes à observância das regras de articulação dos diferentes direitos do comprador impostos no Código Civil, até porque algumas delas também constavam do texto da Directiva transposta pelo Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4,constituindo esse texto um importante elemento interpretativo deste diploma.
32 - Princípios, como o da razoabilidade, da proporcionalidade e da prioridade da restauração natural, poderão muitas vezes impor soluções coincidentes com o cumprimento daquelas regras, mas no âmbito de compras e vendas de consumo não existe uma obrigatoriedade cega do seu respeito.
33 - Serão as particularidades do caso concreto que definirão as possibilidades de exercício dos diferentes direitos colocados ao dispor do comprador, de modo a serem respeitados os princípios que presidiram à sua atribuição.
34 - No caso em análise o pedido de substituição do veículo em causa deduzido pela ora Recorrente não revela um abuso de direito, uma vez que o bem manifestamente não está conforme o contratualmente estabelecido e as expectativas do homem médio perante a compra de um veículo Y. ou de outra marca.
35 - Daí que não fosse exigível, segundo os ditames da boa-fé, à A. qualquer outro pedido. Seria apenas ilegítimo o exercício de um direito quando respectivo titular exceda manifestamente os limites imposto pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito, não se enquadrando nesta previsão a opção de um consumidor em requerer a substituição de um bem que apresenta diversos problemas desde o inicio e que não foram solucionados, provocando neste perda de confiança no bem, tendo inclusivamente receio em o conduzir.
36 - Pelo que, a Autora poderia a todo o tempo, respeitando os limites impostos pela boa-fé, optar pela substituição do veículo. Assim, tem a Recorrente direito à pretendida substituição do veículo nos termos do disposto no artigo 4º do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4.
36 - Por tudo o exposto, deve ser alterado o enquadramento jurídico efectuado face à factualidade provada.
37 - Nos factos dados como não provados consta o quesito 35º da Base Instrutória, no qual é referido o seguinte: “No dia 25/11/2011, foi substituído pela segunda vez, num espaço de 3 meses, o corpo da bomba de água.” Ora o Mmo. Juíz a quo considerou como provado como facto 25 que “No dia 25 de Novembro de 2011, no veículo ..., à data com 17935 Km, foi substituído o Corpo da bomba de água (11º)”. Como se pode verificar o facto é o mesmo, pelo que o quesito 35º da BI deverá ser dado como provado.
38 - Presume-se que se trate de um lapso, pelo que deverá o facto constante da factualidade não provada artigo 35º da BI passar para os factos provados e assentes. Quanto à reapreciação da matéria de facto gravada a Recorrente cinge-se aos quesitos 38º, 39º, 40º, 41º, 51º e 52º da BI.
39 - O Mmo. Juiz a quo considerou como não provados os quesitos 38º, 39º, 40º e 41º da BI estão circunscritos aos factos de 10 de Maio de 2012, e no qual a Recorrente acompanhada da sua neta de 6 meses na A5, subida do Alto de Monsanto (sentido Lisboa – Cascais), ficou sem embraiagem, não tendo por pouco um acidente.
40 - Considerou o Mmo. Juiz a quo também como não provados os quesitos 51º e 52º com relevância para os prejuízos causados à Recorrente pela privação do uso do automóvel, veículos de aluguer, táxis e outros transportes.
41 – Com relevância para a alteração ora requerida foram ouvidas sobre esta matéria, em sede de audiência de julgamento, as seguintes testemunhas RGM, JAG, JMCG, MBCSPDB.
42 – A testemunha RGM (Gravação de 14:51:38 a 15:19:33) referiu que “Se ficar sem embraiagem instantaneamente pode ter um acidente e gravíssimo. Quer seja a descer, quer seja a subir.”, “A subir a tendência do carro é parar, mas depende do sitio onde estamos a circular. Uma coisa é circular numa estrada isolada. Parar parou. Dá-me tempo de travar o carro, sair do carro. Outra coisa é eu ter carros a passarem por um
lado, por outro, pela frente, por trás, e poder provocar ali uma molhada.”, “A subir a tendência do carro é parar, mas depende do sitio onde estamos a circular. Uma coisa é circular numa estrada isolada. Parar, parou. Dá-me tempo de travar o carro, sair do carro. Outra coisa é eu ter carros a passarem por um lado, por outro, pela frente, por trás, e poder provocar ali uma molhada.”, “Penso que a zona onde estava a circular era precisamente uma zona dessas. Subida do alto de Monsanto é muito perigoso claro que é.”, “A descer ainda mais perigoso se torna pois perde-se o controlo da máquina.”.
43 - A testemunha JACG (Gravação de 15:20:55 a 15:35:07) referiu que “Lembro o meu irmão me ter dito que ela ficou muito assustada, o carro perdeu tracção na subida de Monsanto e os carros vão todos muito depressa e teve medo de ter alguma colisão com carros que viessem atrás ou qualquer coisa do género. Recordo-me. Não sei a data exacta mas recordo-me.”, “Lembro-me de o meu irmão me ter dito que ela ficou assustada.”, “Corre. Falo por mim, ela toma anti agregantes plactários, eu também tomo. Se tivermos um acidente, podemos ter uma hemorragia. É complicado. É mesmo complicado. É preciso muito cuidado.”
44 - A testemunha JMCG (Gravação de 15:36:16 a 16:06:42) referiu que “Passou-se que a A. digamos, a minha mulher, foi com uma neta. Ia no carro, perdeu tracção a subir Monsanto, ficou em pânico, telefonou-me e eu o mais cedo que pude peguei eu no carro fiz novamente o mesmo.”, “Não teve um acidente por acaso, potencialmente gravíssimo como se imagina. Que é você perder tracção. São momentos muito curtos. Mas tantos condutores andam em cima uns dos outros que muitas vezes em plena auto estrada podia ter sido um sarilho. Podia ter sido um acidente gravíssimo.”, “Andar com um carro nestas condições é uma total perda de confiança.”
45 - A testemunha MBMC (Gravação de 16:08:26 a 17:06:46) referiu que “Carro fica sem embraiagem, encosta e manda vir o reboque. E aí não anda.”
46 – A testemunha SPDB (Gravação de 10:00:07 a 11:55:12) referiu que “Não há avisos, o aviso é patinar.”, “O condutor sente claramente isso. Sente porque os primeiros sinais são em subidas. É quando o carro tem que mover a sua massa toda para cima, o motor precisa de mais potência e ele não desenvolve.”, “É aí que uma pessoa sente que algo não está bem com a embraiagem.”, “Ficar sem embraiagem não se consegue por mudanças.”, “Põe a hipótese de uma pessoa, sempre foi referido que o carro perde gradualmente a velocidade, mas põe a possibilidade de uma reacção humana. Quer dizer se estou a conduzir o carro e fico sem potência no carro, assusto-me?”, “Sr. Dr., como é óbvio.”.
47 – Atento estes testemunhos deverá ficar provado os quesitos 38º, 39º, 40º e 41º da Base Instrutória, e que no dia 10 de Maio de 2012, a A. circulava no veículo em causa na A5, subida do alto de Monsanto (sentido Lisboa – Cascais, acompanhada da sua neta de 6 meses, quando ficou sem embraiagem no momento que se encontrava em ultrapassagem na faixa de rodagem do lado esquerdo. Este facto provocou quase um acidente com outro veículo. Colocando em perigo a A. e a sua neta. Em sequência deste facto a Autora levou o veículo até à oficina, tendo sido substituído o volante do motor e a embraiagem.
48 - Estes quesitos têm de ser dado como provados atentos os testemunhos acima reproduzidos. As testemunhas RGM, JAG e JMCG testemunharam de forma idónea e de molde a convencer o tribunal quanto à ocorrência destes factos.
49 - As testemunhas MBMC e SPDB, com os seus testemunhos corroboraram a possibilidade de ocorrência da falha mecânica no local onde este ocorreu.
50 – Estes factos são preponderantes para a determinação de não conformidade do bem com o contrato, e a relevância da substituição do volante do motor e embraiagem para o pedido de substituição do veículo pela A. em 22 de maio de 2012.
51 – Quanto aos quesitos 51º e 52º da Base Instrutória, que se requer a reapreciação, foram ouvidas sobre esta matéria, em sede de audiência de julgamento, as seguintes testemunhas JAG e JMCG.
52 - A testemunha JACG (Gravação de 15:20:55 a 15:35:07) referiu que “O pai tem bastante idade, tem de dar assistência ao pai, e ela própria tem uma doença complicada e tem de ter tratamentos periódicos.”, “O Automóvel faz-lhe muita falta.”, “Tem necessidade do veículo automóvel, tem mais dificuldade de movimentação que uma pessoa normal. Tem necessidade, não se pode cansar. Cansa-se mais que uma pessoa normal, é mais frágil. Tem necessidade maior prevenção do que uma pessoa que esteja de perfeita saúde.”.
53 - A testemunha JMCG(15:36:16 a 16:06:42) referiu que “Íamos para férias vou ao capot e reparei que o depósito estava todo babado, a perder liquido de refrigeração. Fomos de imediato à C. ... e foi substituída a bomba que estava gripada.”, “Eu acho que os prejuízos são grandes porque a minha mulher e eu sempre estivemos habituados a ter carros fiáveis e as coisas bastante bem conservados, e confiança naquilo que usamos.”, “Causou perturbações variadíssimas de ordem de falta de confiança, stress. Evitar os fins-de-semana ou deslocações. Neste carro não vou. Daqui até ao Porto não sei se fico a meio.”, “Não é quantificável.”.
54 - Da prova testemunhal supra reproduzida, afigura-se por demais evidente que as respostas dadas aos quesitos 51º e 52º pelo Tribunal “a quo” – todas “Não provado”, não correspondem ao que se logrou apurar. Como resulta claro dos depoimentos parcialmente transcritos, a Recorrente no período em que a viatura se encontrava na oficina foi obrigada a utilizar veículos de aluguer, deslocar-se de táxi e transportes públicos. Evitou ir de férias.
55 - Esta privação de uso de veículo, e os restantes custos inerentes (veículos de aluguer, táxis e outros transportes) são quantificáveis em € 5.000,00.
56 - Esta factualidade conjugada com toda a prova carreada nos autos leva, necessariamente, a que se dê como provado os quesitos 51º e 52º da Base Instrutória.
57 - O que permite obviamente concluir que houve privação do uso de veículo, e houve custos com essa privação. Nos factos provados constam as datas das assistências ao veículo, e nos documentos juntos aos autos constam os períodos em que a Recorrente esteve privada do seu veículo. Nesses períodos foi necessária a utilização de outros meios de transporte, devido à sua vida pessoal, familiar e principalmente de saúde. Aliás, dos depoimentos das testemunhas percebe-se que assim terá sido.
58 - Termos em que os quesitos 51º e 52º deverão dar-se como provados.
59 - Pelo que alterando-se a resposta à matéria de facto nos termos supra expostos, e conjugando tais respostas com a restante factualidade provada e seu enquadramento jurídico acima referido, verifica-se que a A. além do facto de ter direito à substituição do veículo sofreu também danos patrimoniais.
60 - Verifica-se pelos testemunhos supra reproduzidos, e pelos factos que se pretendem alterar, que a situação descrita, é uma situação que tem vindo a causar prejuízos à Autora, não só de índole patrimonial, mas também pessoal.
61 - Na verdade, a Autora por via de se ver privada da utilização do veículo em causa, em virtude das suas repetidas reparações, sofreu prejuízos de natureza patrimonial que importa ressarcir.
62 - A Autora durante o período em que a viatura em causa se encontrava na oficina do concessionário da marca Y., viu-se obrigada (apesar de ter adquirido um veículo de mais de € 50.000,00) a utilizar veículos de aluguer, a deslocar-se de táxi e transportes públicos, com os inerentes custos.
63 - Por outro lado, a Autora ficou limitada na sua mobilidade, dado que não tinha a sua viatura em condições.
64 - Tal situação merecerá a tutela do direito, no sentido de conferir à autora o direito a ser ressarcida a título de danos patrimoniais sofridos, e decorrentes da factualidade descrita em montante a calcular segundo o prudente arbítrio do julgador, mas nunca no valor inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros) que se reclama e peticiona.
65 - Sendo que esta indemnização é devida, de acordo com o artigo 12º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, tendo a Autora direito “(…) à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos”.
66 - Mas mais, nos danos patrimoniais incluem-se, não só os danos emergentes, como também os lucros cessantes.
67 - Os danos patrimoniais medem-se, em princípio, pela diferença entre a situação actual do lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria se não fosse a lesão (cfr. art.º 566.º, n.º 2, do Código Civil).
68 - Conforme enuncia Abrantes Geraldes (Indemnização do Dano da Privação do Uso, p. 39], a privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia" dos poderes inerentes ao proprietário.
69- Deste modo, a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização.
70 - Aliás, o simples uso do veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano.
71 - E o dano imediatamente ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto. A este propósito, o Tribunal da Relação de Coimbra (Ac. de 26.11.2002, CJ, V, p. 19) decidiu que "o uso de um veículo automóvel constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação consubstancia um dano patrimonial que deve, por si só, ser indemnizado com recurso critérios de equidade. Por conseguinte, mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos tendo em conta a mera indisponibilidade do bem".
72 - Por tudo o exposto, deve a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada em conformidade com as presentes alegações e serem as RR. condenadas no pedido da A. de substituição do veículo, bem como no pedido de danos patrimoniais no valor de € 5.000,00.
73 - A sentença objecto de recurso violou as normas contidas nos artigos artigo 4º, 5º, 5º- A do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8.4, 12º da lei 24/96, de 31.7, e o artigo 566º, n.º 2 do Código Civil.

As R.R. contra-alegaram, A R. X. remata as contra-alegações com as seguintes conclusões:
1. Não merece qualquer censura, a douta sentença recorrida, que julgou e bem improcedentes os pedidos formulados pela A. seja por via do decurso dos prazos de denúncia, seja por via do abuso de direito.
2. Das conclusões das alegações de recurso resulta que o objecto do recurso está circunscrito a duas questões: a) reapreciação parcial da matéria de facto provada e b) enquadramento jurídico.
3. A recorrente limita-se, salvo melhor opinião, a alegar que foi errada a decisão sobre a matéria de facto, não apresentando, contudo, nenhum elemento concreto que demonstre que a convicção formulada pelo julgador recorrido deveria ter sido distinta.
4. A recorrente limita-se a citar excertos, que de per si lhe seriam aparentemente favoráveis, do depoimento das testemunhas RGM, JAG, JMCG, MBLC, SPDB e LCF, olvidando-se evidentemente das partes que lhe seriam desfavoráveis.
5. Sendo que, no que concerne à matéria dos artigos 51º e 52º da Base Instrutória, nem sequer foi feita qualquer prova.
6. Os depoimentos daquelas testemunhas, na globalidade, e não isoladamente como pretende a recorrente, não foram, pois, suficientes para fundar no julgador a convicção de que aqueles factos deveriam ser considerados provados.
7. Na apreciação da prova são evidentemente ponderados vários elementos, que nenhuma gravação de depoimento pode transmitir, tais como a expressão, o tom, os gestos, o comprometimento, a espontaneidade da testemunha, factores que se complementam e que ajudam o julgador a formar a sua convicção, a aferir da credibilidade da testemunha, assim se permitindo a livre apreciação da prova nos termos previstos pelo artigo 607º do C.P.C.
8. Só em caso de manifesto e comprovado erro é possível alterar o julgamento feito em P instância, sendo manifesto que, no caso sub judice, tal é impossível de se verificar.
9. Dispõe o artigo 4º do Decreto-Lei 67/2003, cuja aplicação aos presentes autos é indiscutível, que "em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. "
10. E conforme dispõe o artigo 5º-A, para exercer estes direitos e, sob pena de caducidade, "o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses a contar da data em que a tenha detectado".
11. As intervenções referidas e dadas como provadas nos pontos 11 (Outubro de 2010), 12 (Outubro de 2010), 18 (Julho de 2011), 20 (Agosto de 2011), 21 (Novembro de 2011) e 25 (Novembro de 2011), foram efectuadas sem qualquer intervenção da Recorrida X.
12. Essas intervenções, e os motivos que as determinaram, não foram denunciadas perante a recorrida vendedora.
13. O contacto efectuado entre a A. recorrente e um vendedor da R. X, no ano de 2011, não revestiu os requisitos suficientes para ser tido como uma efectiva denúncia, tratando-se de um mero protesto genérico.
14. Acresce que sendo a R. uma pessoa colectiva, qualquer denúncia a efectuar terá de ser feita perante os seus legais representantes ou de modo a que estes possam ter conhecimento da mesma, não se podendo extrair de uma conversa telefónica que tenha sido dado conhecimento aos seus responsáveis dos defeitos apresentados.
15. A A. interpelou as recorridas por meio de carta datada de 22 de Maio de 2012, para a substituição do veículo tendo anexado o histórico de intervenções.
16. Nessa data, há muito que tinham decorrido sessenta dias sobre o momento em que a A. recorrente teve conhecimento dos factos supra mencionados ocorridos entre Outubro de 2010 e Novembro de 2011, tendo, consequentemente, caducado o prazo de denúncia das eventuais faltas de conformidade.
17. Quaisquer situações ocorridas anteriormente a 22 Março de 2012, haviam caducado, não procedendo o entendimento da recorrente de que como os "os defeitos do bem ocorreram de forma continuada" , não decorreu o referido prazo de denúncia.
18. A ser assim, o que não se concede, os prazos de caducidade perpetuar-se-iam por tempo indeterminado, contrariando assim o espírito e a intenção do legislador que ao estabelecer determinado prazo de caducidade visa conferir certeza às situações jurídicas e solucionar com brevidade os conflitos:
19. A situação ocorrida em 10 de Maio de 2012, foi prontamente reparada ao abrigo da garantia e sem qualquer custo para a A..
20. A A. perante uma panóplia de direitos que a lei lhe confere, optou inequivocamente pela reparação do bem.
21. Ao optar pela reparação do bem, não pode, depois de reparado o bem, optar pela substituição do bem por outro novo sob pena de abuso de direito.
22. Com efeito, pese embora a lei não estabeleça nenhuma hierarquização dos direitos do consumidor, certo é que o seu exercício está sempre balizado abuso de direito.
23. Finalmente uma breve nota no que se refere aos danos patrimoniais que a A. pretende ver reconhecidos: a A. não provou a existência de quaisquer danos merecedores da tutela do direito. Sem dano, não há lugar a responsabilidade civil.
24. Nestes termos não deve dar-se provimento ao recurso interposto pela A., mantendo-se, na íntegra, a douta decisão recorrida.

Por seu turno, a R. Y.-… Portugal conclui assim a minuta:
A) Relativamente ao quesito 38.º, resulta, de forma inequívoca, dos depoimentos das testemunhas com conhecimentos técnicos que o veículo não ficou sem embraiagem.
B) Com efeito, resulta do depoimento das duas testemunhas com conhecimentos técnicos - em conformidade, aliás, com o que resulta dos documentos juntos aos autos, que a intervenção efectuada ao nível da embraiagem se deveu ao "patinar", tendo ficado claro - ao contrário do que a A. pretende na motivação do presente recurso, que o veículo não ficou sem embraiagem.
C) Relativamente ao quesito 39.0, não foi produzida qualquer prova sobre a "quase" ocorrência de um acidente, pelo que não poderia, o tribunal a quo, considerar provado, tal quesito.
D) Em consequência da resposta "não provado" aos quesitos 38.0 e 39.0, forçosa é a resposta de "não provado" aos quesitos 40.0 e 41.0
E) Bem andou, pois, a este respeito, o tribunal a quo, ao considerar não provados os quesitos 38.0 39.0 40.0 e 41.0 da base instrutória.
F) No que concerne aos quesitos 50.0 e 51.0, a A. não fez qualquer prova do alegado aluguer de um veículo, da utilização de táxis ou transportes públicos Não basta a alegação genérica de uma falta de conformidade, é necessária a respectiva identificação não tendo, consequentemente, feito prova de ter gasto, com tais actos, EUR 5.000,00.
G) Não por acaso, os depoimentos transcritos na motivação da A., das testemunhas JACG e JMCG, nada dizem a respeito do suposto aluguer de um veículo, ou de outros gastos com transportes.
H) É, pois, evidente, que outra resposta não poderia o tribunal a quo ter dado aos quesitos 50.0 e 51.0 da base instrutória, perante a total ausência de prova produzida.
I) São de manter, em sede de recurso, as respostas dadas aos quesitos 38.0, 39.0, 40, 41.0, 51.° e 52.º
J) A A. não provou a existência de quaisquer danos susceptíveis de gerar responsabilidade civil. Sem prova do dano, como é pacífico, não há responsabilidade civil.
K) Aplica-se ao caso dos autos o regime constante do Decreto-Lei 67/2003, de 8 de Abril
L) Nos termos do número 2 do artigo 5.0 - A do referido diploma, "para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel (... ), a contar da data em que a tenha detectado."
M) O primeiro contacto da A. Recorrente, com a MBP, a respeito do veículo dos autos, foi efectuado em 24 de Maio de 2012 - e não em 22 de Maio de 2012 – data em que a MBP recebeu a carta datada de 22 de Maio de 2012.
N) As intervenções ofícinais ocorridas entre Janeiro e Novembro de 2011, não motivaram qualquer denúncia, por parte da A., perante a MBP.
O) Assim, dois meses após a situação ocorrida em Novembro de 2011, caducaram os direitos da A., relativamente às intervenções acima referidas.
P) A ocorrência de 10 de Maio de 2012, não tem qualquer relação com as anteriores situações que deram origem às intervenções no veículo.
Q) Como bem considerou o tribunal a quo, à data da denúncia, o conhecimento sobre a única eventual desconformidade, relativamente à qual podiam assistir à A. quaisquer direitos, datava de 10 de maio de 2012.
R) Quaisquer direitos, relativamente a situações passadas, haviam caducado, sob a pena de nunca se alcançar a segurança e a certeza que o instituto da caducidade pretende garantir.
S)   Não basta a alegação genérica de uma falta de conformidade, é necessária a respectiva identificação.
T) Se as avarias relacionadas com a bomba de água corresponderam a uma falta de conformidade susceptível de originar responsabilidade do vendedor - no que não se concede - competia à A., por referência a essas avarias, denunciar a referida falta no prazo de 60 dias após o conhecimento, o que não fez.
U) Ainda que a A. tivesse observado o prazo para denúncia, não poderia, após a intervenção de Novembro de 2011, pedir a substituição do veículo.
V) Porém, verificada a caducidade, ficou prejudicada a apreciação das condições do exercício dos direitos previstos no número 1 do artigo 4.0 do DL 67/2003.
W) Quanto à substituição da embraiagem e do volante do motor dos autos, a única intervenção que ocorreu no período de dois meses que precedeu a denúncia operada em 24 de Maio de 2012, entendeu, bem, o tribunal a quo, que a A. não tem legitimidade para, após a reparação da avaria, reclamar a substituição do bem.
X) Como resulta da sentença, a substituição da embraiagem e do volante do motor foram efectuadas ao abrigo da garantia, sem custos para a A, não tendo sido alegado pela A. que persistisse, relativamente ao sistema de embraiagem, qualquer avaria.
Y) Assim, só pode concluir-se que a substituição da embraiagem e do volante do motor correspondeu à reparação da conformidade, nos termos e para os efeitos do disposto no número 1 do artigo 4.0 do DL 67/2003.
Z) O tribunal a quo fez uma correcta interpretação e aplicação do regime constante do DL 67/2003.

I.2. Recortadas nas conclusões de recurso, importa resolver basicamente duas ordens de questões que consistem em saber se: (i) quanto à matéria de facto é ou não de alterar as repostas dadas aos quesitos 38º, 39º, 40º e 41º e 51º e 52º da B.I.; (ii) quanto à apreciação jurídica da causa, assiste à A. o direito à substituição do automóvel e se lhe é devida a quantia de €5.000, a título de danos patrimoniais, por privação do uso do mesmo.

II.2. Em primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - A Autora é proprietária da viatura com a matrícula ..., marca Y.-..., modelo C .., …, com o n.º de motor 6.., e n.º de chassis … (A);
2- A Ré Y.-... Portugal, S.A. é uma empresa cujo objecto social é “a) Importação e/ou comercialização de veículos automóveis, respectivos motores, peças, acessórios e produtos com os mesmos relacionados; b) Indústria de reparação de veículos automóveis e serviços conexos e comercialização de produtos relacionados com essa indústria e serviços; c) Qualquer actividade relacionada com ou de apoio ao comércio de veículos automóveis” (cf. certidão permanente da sociedade no site ….pt, inserindo o seguinte código de acesso: …) (B);
3- Sendo a representante em Portugal da marca Y.-..., que é uma marca da .., .., … ©;
4- A 2ª Ré não presta assistência técnica aos veículos, sendo tal actividade desenvolvida pela rede de oficinas autorizadas Y.-... (62º);
5- A Ré X., Lda. é uma empresa cujo objecto social é “ Indústria e reparação de veículos automóveis e bem assim o de fabrico de peças ou seus componentes destinados aqueles veículos” (cf. certidão permanente da sociedade no site .., inserindo o seguinte código de acesso: …) (D);
6 - Assistindo-lhe, também, a possibilidade de venda de veículos automóveis (E);
7 - Sendo um concessionário autorizado da Y.-... Portugal, S.A. (F);
8- A viatura referida em 1 foi adquirida à Ré M., Lda., no dia 13 de Julho de 2010 (1º);
9- A Autora pagou à Ré M., Lda. o preço de € 50.250,00 (Cinquenta mil duzentos e cinquenta Euros) (2º);
10 - No certificado de entrega do veículo n.º …, foi aposta erradamente a data de entrega de veículo como 1 de Junho de 2010, devendo constar a data de 13 de Julho de 2010 (3º);
11- No dia 12 de Outubro de 2010, no veículo ..., à data com 4322 Km, foram substituídos os Kit injectores (4º);
12- No dia 18 de Outubro de 2010, no veículo ..., à data com 4777 Km, foi substituído o vedante (5º);
13- Em dia não apurado de Janeiro de 2011, o veículo automóvel voltou à oficina pois patinava em 1ª tanto em quente como em frio (24º);
14- No dia 06/07/2011, a bomba de água estava a perder líquido de refrigeração, sem qualquer aviso no painel de controlo do veículo (27º);
15- Tendo apenas sido verificado por inspecção visual (28º);
16- Este facto levou à mudança da bomba de água (29º);
17- As deficiências na bomba de água, e a consequente má refrigeração do motor, levam a que o motor gripe caso o condutor negligencie a informação de alerta do painéis de instrumentos a indicar que o líquido de refrigeração está abaixo do nível (30º);
18- No dia 6 de Julho de 2011, no veículo ..., à data com 12798 Km, foi substituída a bomba de água, devido a uma fuga de água (7º);
19- Em 25/08/2011, o painel de controlo do veículo indicou líquido de refrigeração baixo, tendo sido substituído o corpo da bomba de água na oficina C. …. (32º);
20- No dia 25 de Agosto de 2011, no veículo ..., à data com 14472 Km, foi substituído o Corpo da bomba de água (8º);
21- No dia 14 de Novembro de 2011, no veículo ..., à data com 17933 Km, foi colocado um novo jogo de cabos (10º);
22- As intervenções atinentes aos kit injectores, jogo de cabos e vedante foram efectuadas no âmbito de acções de serviço (63º);
23- As quais são determinadas pelo fabricante para substituir determinados componentes a fim de garantir e/ou melhorar a qualidade dos produtos em causa, independentemente de os mesmos padecerem de qualquer avaria (64º);
24- Tais acções não resultam de qualquer avaria já concretizada (65º);
25- No dia 25 de Novembro de 2011, no veículo ..., à data com 17935 Km, foi substituído o Corpo da bomba de água (11º);
26- A Autora, em data não apurada de 2011, via telefone, falou com o vendedor MS da R. M., Lda., que lhe havia vendido o veículo objecto dos presentes autos, a quem transmitiu o seu desagrado pelas avarias no veículo (46º);
27- No dia 10 de Maio de 2012, no veículo ..., à data com 22521 Km, foi substituído o volante do motor e a embraiagem em virtude da embraiagem patinar em 5ª e 6ª velocidade (13º);
28 - Não é normal, nem tão pouco expectável que um veículo com as características referidas em 1 esteja, aos 22521 km, com o número de avarias e substituição de peças já realizadas (16º);
29 - O número de avarias e reparações (sendo estas todas efectuadas noutro concessionário Y. que não a 1ª ré), não é compatível com a marca do mesmo (Y.), com o referido em 37, bem como com o investimento realizado pela Autora para a sua aquisição (17º);
30 - A mudança do Kit de injectores, efectuada no dia 12/10/2010, foi realizada porque a Autora, através da imprensa escrita, em Outubro de 2010, foi alertada para os defeitos existentes nos veículos série C fabricados entre 2008 e 2010 (20º);
30-A - No dia 25.11.2011, foi substituído pela segunda vez, no espaço de três meses, o corpo da bomba de água (35º)  - facto aditado em razão de pretensão da A. formulada no recurso e de que adiante se conhece.
31- A substituição da bomba de água, volante do motor e embraiagem demonstram que o veículo referido em 1 não reúne as condições que um bem adquirido em 1ª mão deveria apresentar (42º);
32 – Sobretudo num veículo com a quilometragem e utilização que este apresenta (43º);
33 - Em Maio de 2012, o veículo tinha já 22.521 km percorridos (66º).
34- Com data de 22.5.2012, a Autora enviou às Rés a carta de fls. 10/11, cujo teor se dá por reproduzido, e estas receberam-na, requerendo a entrega de um veículo novo pelas razões aí enunciadas (G);
35- Face à reclamação apresentada referida em 36, as Rés não assumiram posição por escrito no sentido de aceitar ou indeferir a pretensão da autora até à apresentação da contestação neste processo (50º);
36- No ato da compra e venda, um veículo automóvel da marca Y., deverá ter uma durabilidade e fiabilidade que o presente veículo automóvel não apresenta (44º);
37- A 2ª Ré publicita os seus veículos como “The best or nothing” (45º);
38- Todas as assistências (com excepção de substituição de lâmpadas), estando no prazo de garantia, foram suportadas pela Ré Y. (48º);
39- As intervenções ocorridas no período da garantia ficam registadas em relatórios digitais atinentes a cada viatura. Volvido o prazo da garantia, as oficinas autorizadas da 2ª ré (em que se inclui a 1ª Ré) acedem a tais relatórios quando o veículo em causa é sujeito a uma intervenção na oficina (49º);
40- A Autora foi Administradora do Grupo JABA, empresa líder em Portugal no sector farmacêutico, tendo sido também membro da Direcção da A.. – AP…
41 - Neste momento, está reformada por invalidez permanente, por padecer da doença metabólica grave com necessidade de anticoagulação permanente (54º);
42 - Em virtude da doença que padece, a Autora necessita do veículo automóvel (55º);
43 - Facto pelo qual adquiriu um veículo para seu uso pessoal e familiar, apto para todas as suas deslocações (56º);
44- E com a segurança que necessita, pois qualquer acidente automóvel para uma pessoa que toma anticoagulante poderá ser fatal caso a pessoa sofra uma hemorragia (57º);
45- A Autora desloca-se diariamente entre vários pontos da cidade de Lisboa e arredores (58º);
46- Presta assistência ao seu Pai que necessita da sua ajuda diária, tendo de realizar várias viagens a vários pontos da cidade para acudir às várias necessidades médicas e alimentares do seu familiar (59º);
47- Presta também assistência à sua neta (60º).

Com relevo para a decisão da causa considera-se ainda provado que:
48- A A. admite que os defeitos por ela detectados e constantes do histórico do veículo constante de fls. 11, “foram alvo de intervenção por parte da oficina de reparações do concessionário da marca Y.-..., C.... – …, S.A..”.
Do histórico do automóvel consta que:
- No dia 12/10/2010 foram substituídos os kit injectores – Facto 11;
- No dia 18/10/2010 foi substituído o vedante – Facto 12;
- Em dia não apurado de Janeiro de 2011, o veículo voltou à oficina pois patinava em 1ª tanto em quente como em frio – Facto 13;
- No dia 06/07/2011 substituição da bomba de água – Facto 18;
- No dia 25/08/2011 substituição do corpo da bomba de água – Facto 20;
- No dia 14/11/2011 foi colocado jogo de cabos – Facto 21;
- No dia 25/11/2011 substituição do corpo da bomba de água – Facto 25;
- No dia 10/05/2012 substituição do volante do motor e a embraiagem – Facto 27;

49- A R. MBP reconhece que: “(…) tem acesso directo às informações relativas a intervenções efectuadas no âmbito de acções de serviço, da garantia concedida pelo fabricante, de intervenções cujo custo tenha sido, total ou parcialmente, assumido pelo fabricante, a título de mera cortesia comercial e serviços de manutenção” (art.º 23º da contestação a folhas 24).

II. FUNDAMENTAÇÃO:

II.1. Recurso de facto[1]

Quanto ao quesito 35º:

A A. defende que só a mero lapso se deu como não provado o teor do artº 35º.

No quesito 35º pergunta-se se: “No dia 25.11.2011, foi substituído pela segunda vez, no espaço de três meses, o corpo da bomba de água!”.

As RR. não questionaram esta pretensão da A.

Deste modo, e percorrendo o documento de fls. 11 – cujo conteúdo merece a aceitação da pluralidade das partes - e que consubstancia o histórico do veículo, não merece dúvida que, na realidade, em 25.08.2011 e em 25.11.2011 foi substituído o corpo da bomba de água.
Ora, não parece, assim, haver qualquer dúvida sobre a realização dupla de tal intervenção no espaço de precisamente três meses. Pelo que se aceita que só a lapso, como diz a A., se deve a omissão de tal facto no elenco dos factos provados.

A A. pretende ainda a alteração das respostas dadas aos quesitos 38º, 39º, 40º, 41º, 51º e 52º B.I., contra o que se insurgem as RR.

No que tange aos quesitos 38º, 39º, 40º e 41º, os quais foram dados como não provados, a A. vale-se dos depoimentos das testemunhas RGM, JAG, JMCG, MBC, SPDBe LCF.
 
Vejamos:

Quanto aos quesitos 38º e 39.º:

O teor destes quesitos é o seguinte:
38.º  “No dia 10 do 5 de 2012, circulava no veículo em causa na A-5, Subida do Alto de Monsanto (sentido Lisboa-Cascais), acompanhada da sua neta de 6 meses, quando ficou sem embraiagem, no momento em que se encontrava em ultrapassagem na faixa de rodagem do lado esquerdo?”;
39.º “a A. estava em quinta velocidade e, de repente, ficou sem embraiagem, tendo por pouco evitado um acidente com um outro veiculo que seguia atrás de si?.

O teor destes quesitos não figura no elenco dos factos provados, constando a propósito uma remissão para o teor da resposta ao artigo 13º da base instrutória – aliás, no contexto da factualidade não provada (folhas 329) -. Pesquisando o que refere ao artigo 13 da base instrutória, o constante do nº 27 dos factos, revela que: “No dia 10 de Maio de 2012, no veículo ..., à data com 22.521 Km, foi substituído o volante do motor e a embraiagem, em virtude de a embraiagem patinar em quinta e sexta velocidades”.

Com o propósito de obter uma resposta positiva, a A. convoca os depoimentos das testemunhas LCF Luís ....

Porém, salvo o devido respeito, não é possível extrair de tais depoimentos o facto em causa, nem sequer os excertos salientados pela A. se mostram adequados à prova do mesmo facto.

Por seu turno, a R. Y. vale-se dos depoimentos de MMC e de SB dos quais também transcreve alguns excertos.

Muito embora, como se sabe, não seja teoricamente impossível circular sem embraiagem, a verdade é que isso supõe a adopção de procedimentos que não estarão ao alcance de um condutor não familiarizado com esse tipo de intervenções. De resto, a A. nada alega no sentido de que tenha adoptado esses mesmos procedimentos.
A A. afirma, isso sim, que conseguiu levar o carro até à oficina (nº 40 da B.I.). Esta afirmação, segundo a experiência comum, é objectivamente mais compaginável com a circunstância de que a embraiagem terá apresentado problemas que motivaram a queixa da A. nessa ocasião e que consistiram, segundo a testemunha MC (engenheiro mecânico) num patinamento da embraiagem nas quinta e sexta velocidades.

Portanto, em termos objectivos não vemos fundamento para alterar as respostas dadas aos referenciados quesitos pelo tribunal recorrido.

Quanto ao quesito 40º:

É do seguinte teor este quesito: “Na sequência deste facto, a A. levou o veículo até à oficina, tendo sido substituído o volante do motor e a embraiagem?”.

Mercê da resposta ao quesito 13.º para que remete também a resposta a este quesito (e que acima se deixou transcrita), em coerência, apenas se poderá manter também a resposta a este quesito.

Quanto ao quesito 41º:

É do seguinte teor este quesito: “Todos estes factos colocaram em perigo a segurança da A. e os restantes ocupantes do veículo?”.

Este quesito foi respondido como não provado.

Também por razões de coerência não vemos fundamento para alterar a resposta a este quesito.

Quanto aos quesitos 50º e 51.º:

Estes quesitos reportam-se à matéria da privação do uso do veículo

São do seguinte teor estes mesmos quesitos:
Quesito 50.º: “A A. durante o período em que a viatura em causa se encontrava na oficina do concessionário da marca Y., viu-se obrigada a utilizar veículos de aluguer, a deslocar-se de táxi e de transportes públicos?”
Quesito 52º: “Com os inerentes custos, no total de €5.000, entre privação do uso do automóvel, veículos de aluguer, táxis e outros transportes?”

Estes quesitos foram tidos como não provados.

Acontece que a A. não chegou a alegar minimamente qualquer facto relevante sob este ponto de vista. Na verdade, não chegou a concretizar o lapso temporal em que terá ocorrido a privação do uso: se dias, se semanas, se apenas horas. Ora, sem uma base factual mínima não é possível sequer efectuar um raciocínio ainda que fosse assente basicamente em ilações.

Aliás, não vem minimamente alegado em que medida tal poderia ser imputado às RR., tendo em conta que aqui houve a intervenção de uma oficina onde o veículo foi reparado, oficina essa que não é parte na acção e se desconhece qual o tempo de reparação nas diversas intervenções de que o veículo foi alvo. Não é possível sequer dizer-se que houve relevante privação do uso e se presumindo-se o dano o mesmo poderia ser imputado a qualquer das RR. ou a ambas.

Por conseguinte soçobra também neste particular a pretensão da A..

Apreciação jurídica da causa:

Quanto a questão de saber se é devida à A. a substituição do veículo.

As partes associam esta questão a uma outra que consiste em saber se caducou ou não o direito de denúncia dos defeitos invocados pela A..

A este propósito recorda-se aqui o facto nº 34 que tem o seguinte teor: “com data de 22.05.2012, a A. enviou às RR. a carta de folhas 10-11, cujo teor se dá por reproduzido, e estas receberam-na, requerendo a entrega de um veículo novo pelas razões aí enunciadas”.

Percorrendo a carta de folhas 10 a 11, subscrita pelo ilustre mandatário da A., consta, nomeadamente, que: “o veículo adquirido pela m/constituinte, apresenta problemas graves de fabrico, conforme se pode verificar pelo histórico de intervenção da viatura que se junta como documento nº1.
Estes vícios descritos, não são de forma alguma compatíveis com a boa qualidade do produto em causa, preço, e com o prestígio da marca do veículo, sendo certo que o mesmo tem apenas 22.521Km.
  Pretende a m/representada, e atento o facto dos defeitos elencados virem a manter-se, a substituição do veículo defeituoso por um novo. O anexo que integra a mesma carta consta de folhas 11 e dele constam diversas intervenções no automóvel em causa, como ali se descreve.

Tal como resulta da decisão recorrida, a carta de 22.05.2012 dirigida pela A. às RR., foi enviada decorridos que eram mais de 60 dias sobre o conhecimento dos problemas elencados nos números 11 a 25 dos factos. A única anomalia abrangida pelo prazo de 2 meses consentido para denúncia da falta de conformidade ao abrigo do artigo 5.º-A do DL 67/2003 de 08 de Abril[2], foi a que mereceu a intervenção de 10.05.2012.

De forma clara o Tribunal a quo notou que: “no arco temporal de 2 meses que precedeu a carta de 22.05.2012, apenas se situam a substituição do volante do motor e a embraiagem, em virtude desta patinar na quinta e sexta velocidade.”.
 
Ora bem,

Perante os vícios de coisa móvel, pode o comprador/consumidor accionar a garantia do produto.
E para accionar a garantia, isto é, para que “o comprador [… possa] exercer os direitos previstos no artigo anterior, quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois a cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel” (artigo 5º, do citado diploma), é necessário que se verifique a condição do artigo 5º-A/nº2 do mesmo Decreto-Lei.

Este inciso dispõe que: “para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem imóvel ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado”.

E nos termos do nº3, o aludido prazo de dois anos conta-se justamente a partir da data da denúncia.

Diga-se, antes de mais nada, que a denúncia dos defeitos, não se prevendo na lei uma forma especial, pode extractar-se da mera colocação do veículo na oficina para reparação.

Neste sentido acolhemos a orientação constante do Acórdão desta Relação, datado de 24-05-2012, relatado pelo Exmº Desembargador Jerónimo de Freitas, onde se lê que: “ tendo ficado a aguardar autorização de reparação ao abrigo da garantia contratual, é de considerar que esses factos, no seu conjunto, consubstanciam a denúncia de defeito de funcionamento”.

No entanto acontece aqui que a A. não colocou o veículo na oficina da primeira R. mas na de um outro concessionário da segunda R.
(nº5 dos factos).

 
Quer, então, isto dizer que, até 22.05.2012, não obstante as sucessivas anomalias detectadas no veículo que foram sendo reparadas, e com excepção do contacto telefónico estabelecido pela A. em data não apurada de 2011, com um funcionário da primeira R. (presume-se, a partir do facto nº26), não há indicação de que a A. tenha denunciado qualquer dos defeitos -isoladamente considerados - constantes do anexo à supra referenciada carta, perante a vendedora ou directamente perante a Y., ... Portugal.

O facto de ter entrado em contacto com o funcionário da primeira R. sem indicação do teor desse contacto e das responsabilidades desse mesmo funcionário no âmbito da representação da mesma, não terá, em princípio, a virtualidade de poder ter-se como denúncia válida dos defeitos.

Ora, não resultando ter a A. dado a conhecer às RR. ou a qualquer delas os assinalados vícios, terá como implicação que a caducidade operou.

Mas acontece que subsiste ainda a apreciação quer das anomalias que a sentença reconheceu terem-se verificado no arco temporal de sessenta dias (reparadas em 10.05.2010: volante do motor e embraiagem), quer as anomalias encaradas no seu conjunto.

É que a questão da caducidade não pode ser equacionada neste caso apenas em função dos defeitos isoladamente considerados.
Para aferir se ocorreu ou não a caducidade dos direitos reclamados pela A., cumpriria verificar, não apenas a sucessiva e isolada ocorrência de anomalias, mas também – como defende a A. - o conjunto das anomalias como um todo em si mesmo, passível de justificar uma valorização autónoma para efeitos de aferição da falta de conformidade do veículo face às características expetáveis, nomeadamente, face à marca (Y.) e o preço (mais de €50.000).

Na verdade, para que o consumidor possa aferir do relevo das anomalias e possa tomar uma posição sobre se pretende exercer o tipo de direitos aqui reclamados, terá de aceder previamente à avaliação do comportamento do automóvel, não apenas numa perspectiva atomística de verificação isolada das anomalias que o mesmo vai sucessivamente apresentando, mas na consideração do conjunto dessas mesmas anomalias, visto que só esta perspectiva global é passível de permitir ao consumidor uma ponderação adequada, suficientemente esclarecida e motivadora da vontade no sentido de formular um juízo relativo ao pedido de substituição da mesma viatura.
 
Portanto, na linha do que a A. pretende, cumprirá verificar também, como complexo factual autonomizável relativamente ao acervo atomístico dos factos, o complexo factológico em que se traduz o comportamento do veículo desde a aquisição até que a A. expressou a vontade de que lhe fosse substituído.

Nesse âmbito, à semelhança do que ocorreu com a anomalia registada em 10.05.2012, e uma vez que a carta a que alude o facto nº 34 – pela qual a A. solicita às RR. a substituição do veículo por um novo – se inscreve dentro do período de dois meses que a lei impõe para a denúncia, não poderá, salvo o devido respeito, deixar de se concordar com o raciocínio da A.

Com efeito, perante a mesma carta, desde logo, as RR. poderiam ter tido acesso às informações sobre a situação da viatura.
Isso é patente quanto à R. Y. - que tinha acesso directo à informação como ela própria admite, ainda que por cortesia. Quanto à R. X, não se vê por que não poderia ela também solicitar internamente a informação dentro da rede
 
A implicação de as RR. poderem ter tido acesso à informação sobre o histórico do veículo e tendo em conta que o mesmo foi objecto de reparação numa oficina de uma empresa concessionaria da segunda R., equivaleria, poder-se-á sustentar, a estarmos perante um acto de denúncia implícito.
Este entendimento é coerente, nomeadamente com o facto incontornável de ter sido a segunda R. que foi arcando com os custos da reparação (facto nº 38).

Por isso não poderia razoavelmente dizer – ao que nos parece - que os defeitos não lhe foram denunciados.

É claro que também quanto a esta R. se coloca a questão da valorização autónoma do complexo de anomalias que foram ocorrendo até que a gota de água fez extravasar o copo da margem de tolerância da A.. E, com base nisso, assinalou à R. uma sequência de anomalias, sequência essa que a levou a pedir a substituição do veículo em causa.
 
Poder-se-á dizer, pois, neste contexto, que a caducidade não pode ter-se por verificada, visto que a A. assinalou anomalias ainda sem ter decorrido o prazo de dois meses sobre a manifestação da última das anomalias isoladamente considerada e enquanto culminar de uma situação que despoletou a decisão da A..

Julga-se, pois, improcedente a excepção de caducidade esgrimida pelas RR..
 
Quanto à questão do abuso do direito:

Desde já se adianta que não podemos subscrever o juízo da primeira instância.
 
Como se viu, a A. denunciou, em tempo, a falta de conformidade do veículo com os termos do contratado.

É verdade que - como se nota, e bem, na sentença recorrida - só após as reparações do veículo é que a A. veio peticionar a substituição do mesmo.

E diga-se de passagem que o veículo foi objectivamente alvo de um total de 11 intervenções (três das quais acções de serviço), ao longo do período que transcorreu entre 12.10.2010 e 10.05.2012.

Mas será que a A. não agiu dentro dos limites que lhe são impostos pelo critério do abuso de direito que decorre do artigo 4º/5 do mesmo indicado diploma?

Determina-se neste preceito que:

O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos nºs anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”.

No âmbito das relações de consumo, o abuso do direito pode operar por iniciativa de qualquer das partes e extravasa os interesses concretos de cada uma delas.
O que sobressai é o interesse social dos consumidores na sua relação com os fornecedores, questão que, naturalmente respeita ao ordenamento económico e social.

É manifesto que a A. comprou um automóvel que não condiz com as qualidades atestadas pela marca e o prestígio da Y.. Mais, a A. usufruiu do veículo durante o assinalado período sem se manifestar de forma relevante junto do vendedor, no sentido de pretender a substituição do mesmo veículo.

É certo que, tal como ficou consignado no facto nº 26 que: “A Autora, em data não apurada de 2011, via telefone, falou com o vendedor MS da R. M., Lda., que lhe havia vendido o veículo objecto dos presentes autos, a quem transmitiu o seu desagrado pelas avarias no veículo (46º)”.

É facto que o mero telefonema para um funcionário do vendedor não demonstrará mais do que um mero desabafo.

Tal facto associado a um sucessivo aceitar sem aparente reacção das reparações que se sucederam, poderia inculcar a ideia de que a mesma não pretendia senão isso mesmo: a reparação do veículo.

Poderíamos, assim, numa primeira leitura, ser levados a pensar que a A. agiu contra a conduta que assumira anteriormente e que, por isso, abalara o princípio da confiança.

Mas não é assim, visto que, como se disse, temos aqui o cruzamento de ordens de questões de diferente qualidade.

De facto, uma coisa são as anomalias concretas passíveis de gerar a necessidade de reparação para que o veículo continue adequado aos seus fins uteis. Isso é normal sem que as qualidades do bem estejam em desconformidade com o atestado pelo vendedor. Trata-se apenas de uma correcção que, à partida resolve o problema. Resolve a anomalia.

Todavia, coisa distinta é estarmos perante uma cadeia sucessiva de ocorrências que sugerem que o problema é profundo, não resolúvel através de uma mera intervenção correctiva. E aqui a base do pedido de substituição já não são as anomalias passíveis de serem reparadas.
É precisamente o que acontece no caso dos autos.

Note-se que nos termos da matéria provada, “O número de avarias e reparações (sendo estas todas efectuadas noutro concessionário Y. que não a 1ª ré), não é compatível com a marca do mesmo (Y.), com o referido em 37, bem como com o investimento realizado pela Autora para a sua aquisição” (facto 29º.

A A. funda o pedido não em anomalias isoladas mas num problema de fundo a que ela só acedeu em virtude de uma intolerável sucessão de avarias isoladas.

Este é um problema, uma anomalia, qualitativamente diferente. E por constituir uma desconformidade de outra ordem, pode justificar uma ponderação autónoma, mesmo para efeitos de verificação sobre o abuso do direito.

Nesse sentido, é em relação a essa desconformidade globalmente considerada que teremos de avaliar da aplicabilidade do artigo 4º do citado diploma, que estabelece no nº1:

Em face de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.

Vemos, assim, que a opção de substituição é alternativa e não concomitante à da reparação.

Mas a A. relativamente a essa anomalia de fundo não efectuou qualquer aceitação.

De facto, mesmo ao aceitar as reparações parcelares, a A. não demonstrou ter aceitado que o problema da falta de conformidade do veículo com as qualidades atestadas pelo vendedor tivesse ficado resolvido.
O que se pode ter como por ela aceite é, outrossim, que foram resolvidas as avarias concretamente verificadas: não o problema da desconformidade das qualidades do veículo.

Neste sentido, não se vê razão para afirmar que a A. teria agido com abuso do direito ao pedir a substituição do veículo, não havendo qualquer demostração de ter sido violado o estatuído no artigo 334º do CC., na modalidade de venire contra factum proprium ou qualquer outra.

A responsabilidade da R. Y. radica na circunstância de ser a representante do produtor em Portugal, pelo que a sua condenação solidária se justifica, além do mais, com base no DL n.º 383/89, de 06 de Novembro.

Por fim, não vá sem se dizer que A R. X na contestação aflorou o problema da desvalorização do automóvel poder gerar em caso de substituição um enriquecimento injusto por parte da A.

Todavia, poder-se-á considerar que tal questão - apesar de não ter sido objecto de pretensão formulada por via de ampliação do objecto do recurso, - cabe ainda no âmbito da apreciação do objecto do recurso.

Assim, tratando-se de um veículo automóvel – pelas particulares finalidades de tal bem de consumo - não assiste ao vendedor o direito de negar a substituição com base em que o veículo continuou entretanto a ser utilizado pelo comprador.

Na verdade, reconhecendo-se as finalidades do veículo, tinha a A. direito a usufruir das condições de um veículo Y. com as características afiançadas pela marca e não à utilização perturbada de que nos dá conta a matéria de facto.
Se tal não aconteceu, deveu-se a razões imputáveis às RR. que, a partir do momento em que lhes foi justamente pedida a substituição do veículo entraram em mora.
Assim sendo, o risco do normal desgaste da viatura  - ressalvado o que puder apurar-se ser de imputar à deficiente utilização – cabe-lhes inteiramente.

Por isso, sem deixar de reconhecer que ao comprador cumpre genericamente o dever de custódia do bem defeituoso cuja substituição reclama, por a tanto o obrigar nomeadamente o disposto no artigo 762º/2 CC (cumprindo-lhe devolvê-lo quando houver lugar à substituição) – o que não se discute nos autos.

  Quanto à questão dos danos pela privação do uso:

  É um facto que a sentença apreciou a questão dos danos não patrimoniais, o que certamente só a lapso se deve, visto que o pedido correspondente à privação do uso vem formulado expressamente no sentido de condenação da R. “no pagamento de uma indemnização de danos patrimoniais num valor nunca inferior a €5.000.”.

Percorrendo a matéria de facto, não se detecta qualquer elemento que possa fundar um tal pedido, visto que a A. optou por mandar proceder às sucessivas reparações do veículo, num outro concessionário da Y., que não na X.

Na verdade, a A. mandou proceder às reparações a C. ... – V. P., donde todo o eventual tempo de espera - que não vem sequer descriminado na petição inicial, nem no seu aditamento (folhas 49 verso e seguintes) – dificilmente poderia ser assacado a qualquer das RR..

Não vem minimamente indicado, sequer, o tempo de privação do veículo, de modo a que, por via reflexa de um juízo de responsabilização das RR., pudesse também concluir-se que o período de imobilização da viatura poderia ter causado danos pelos quais as mesmas RR. devessem responder.

Ora, nada vem dito sobre os períodos de tempo gastos na reparação, sendo certo que essa matéria não é presumível.

Por conseguinte, terá de soçobrar também este fundamento.

III. DECISÃO:

Pelo exposto e decidindo de harmonia com as disposições legais citadas, concede-se parcial provimento ao recurso e, nesta conformidade, altera-se a sentença recorrida, nos seguintes termos:
- Considera-se improcedente a suscitada excepção de caducidade;
- Condenam-se solidariamente as RR. a entregarem à A. em substituição do veículo da marca Y.-..., modelo C….,  um outro veículo de iguais características e em novo.
Custas pelas partes na proporção do vencido.

*

Lisboa, 14.04.2015

Maria Amélia Ribeiro
Graça Amaral
Orlando Nascimento

[1] O conhecimento do recurso de facto apenas faz sentido – não tanto neste contexto recursório, face à solução que preconizamos, mas para a eventualidade de vir a ser considerado necessário, se vier a ser interposto recurso de revista.
[2] Que transpôs para ordem jurídica nacional Directiva nº1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Concelho de 25 de Maio, sobre certos aspectos sobre a venda de bens de consumo e de garantias a ela relativas, e o qual alterou a L24/96 de 31 de Julho – apud jusnet, consult. em 06.04.2015.