Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
890/2005-6
Relator: GIL ROQUE
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
APREENSÃO DE VEÍCULO
CONTAGEM DOS PRAZOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Os Processo relativos às Providências Cautelares, revestem o carácter de urgentes apenas até à decisão que procedeu à sua apreciação, tendo-se em consideração o requisito essencial que lhe atribui essa necessidade de celeridade, o “periculum in mora” .
Apreciada e decidida a Providência Cautelar, perde desde logo a natureza de processo urgente, e passa a correr termos normalmente como qualquer outro processo.
II – Tendo sido decretada a providência cautelar requerida, que ordenou a apreensão duma viatura automóvel em, 2004/08/04, estando então a decorrer as férias judiciais, ficou interrompido o prazo para a requerente intentar a acção principal, até ao fim das férias que se prolongaram até 15/09/2004, voltando depois a decorrer o prazo a partir de então e, prolongando-se até 14/10/2004, data em que se perfizeram os 30 dias legalmente fixados para que ocorra a caducidade, como resulta do preceituado na al. a) do n.º1 do art.º 389.º do C.P.C, conjugada com o disposto no art.º 144.º n.º 1, do C.P.C. com a redacção que lhe foi dada com a reforma de 1995/96.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
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AGRAVANTE:(A)
AGRAVADA: Mister Recrutamento Trabalho Temporário Lda.
I – RELATÓRIO:
    1- Mister-Recrutamento, Selecção e Empresa de Trabalho Temporário, Lda, instaurou, em 25 de Março de 2003, na 6.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra (A), procedimento cautelar comum, pedindo que fosse decretada, como providência cautelar não especificada, a entrega do veículo automóvel, de matrícula 95-l8-LP , com as chaves e documentos.
    Para tanto, alegou, em síntese, ser proprietária do veículo, atribuído em serviço ao marido da Requerida, que, por efeito da ruptura do respectivo casamento, está impedido de entrar no respectivo domicílio, recusando-se aquela a entregá-lo e causando-lhe uma lesão grave.
Citada a Requerida, veio a mesma deduzir oposição, alegando, fundamentalmente, que o veículo sempre esteve afecto ao seu uso exclusivo, constituindo um bem do casal, embora tivesse sido registado em nome da Requerente, necessitando do mesmo para acompanhar os filhos do casal, pelo que, a ser decretada a providência, deve a mesma ficar dependente da prestação da caução de € 2 500,00, correspondente ao valor do veículo.
Realizada a audiência, respondeu-se à matéria de facto e seguiu-se decisão que decretou a providência cautelar requerida.
    Não se conformando  com ela, a Requerida interpôs recurso e alegou, tendo esta Relação proferido acórdão em 5 de Fevereiro de 2004, no qual se negou provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.
A requerida, repetindo argumentos que já havia expendido na contestação que apresentou na acção principal, veio pedir o levantamento da providência com fundamento na sua caducidade, alegando em síntese que a providência foi decretada em 4 de Agosto de 2003 e sendo, a seu ver, a contagem do prazo de 30 dias para intentar a acção principal, nos termos do art.º 389.º n.º1 al. a) do CPC, a acção devia ter sido interposta até 3 de Setembro de 2003.
Como a acção de que o presente procedimento cautelar é mera dependência dado entrada na secretaria no dia 14/10/2003, nesta data já tinha caducado a providência cautelar.
   Apreciada a excepção da caducidade da providência decretada, foi indeferida por despacho de 19/05/2004, proferido a fls.154 e 155.
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    2 – Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a requerida, que foi admitido como de agravo e oportunamente foram apresentadas as alegações, concluindo a recorrente nelas pela forma seguinte:
    A. Por Douto Despacho proferido em 21.05.2004, foi indeferido o requerido pela R., em 02.03.04, no âmbito dos presentes Autos,
    B. Não pode, a Agravante conformar-se com tal decisão.
    C. O Despacho de que ora se recorre profere decisão sobre o pedido formulado pela ora Agravante, no sentido de ser declarada a Caducidade da Providência Cautelar contra esta instaurada e decretada.
    D. Tal fundamenta-se na circunstância de a acção principal de que depende o presente procedimento cautelar ter sido interposta dia 14.10.2003, quando deveria tê-lo sido até ao dia 03.09.2003, tendo em conta que a audiência de Inquirição de Testemunhas, teve lugar em
04.08.2003 e, nesse mesmo dia, à tarde, foi proferida Douta Decisão relativa à Providência, tendo a mesma sido decretada.
    E. Em 14.10.2003, havia já decorrido quase um mês e meio sobre a data-limite de interposição da Acção Principal que, nos termos do disposto no artigo 389°, n.º1 al.a) do Código de Processo Civil, é de 30 dias, a contar da data de notificação da decisão que tenha ordenado a providência.
  F. O Despacho proferido, fundamenta a Douta Decisão de indeferimento no facto de o referido prazo de 30 dias, previsto no citado preceito, ser um "prazo judicial, continuo, suspendendo-se nas férias (...)" e ainda porque, "os prazos prescritos na alínea a)" e no n.º2 do art.º 389° (...) como prazos estabelecidos para propositura de acções previstas no CPC, deve entender-se que correm seguidamente, suspendendo-se em períodos de férias judiciais."
    G. A Decisão de Indeferimento resultou do entendimento segundo o qual, a contagem do prazo de Caducidade da Providência Cautelar decretada, se suspende durante o período de férias judiciais, dado tratar-se de um prazo para propositura de uma acção prevista no Código de  Processo Civil, e atenta a actual redacção do n° 4 do artigo 144° do Código de Processo Civil, adoptada após a reforma 1995/1996.
    H. Não pode concordar-se com tal entendimento, Isto porque,
    I. O n.º1 do artigo 144° do Código de Processo Civil, para cujo regime se remete no n° 4, consagra uma excepção à regra da suspendo da contagem dos prazos em período de férias judiciais, segundo a qual “salvo se (...) se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes” (sublinhado nosso). Ora,
    J. Não pode duvidar-se de que a interposição de acção de  que dependa providência cautelar se inclui nesta excepção. Aliás, o carácter urgente dos procedimentos cautelares encontra-se expressamente consagrado no artigo 382° do Código de Processo Civil (conforme, inclusive a própria epígrafe do preceito). Assim sendo,
    K. Ainda que o disposto no n° 4 do artigo 144° do Código de Processo Civil seja aplicável ao caso "sub judice" (que não é, conforme infra se explanará), sempre este estará abrangido pela excepção consagrada no n° 1, “in fine".
L. CONSEQUENTEMENTE, NÃO se suspende a contagem do respectivo prazo durante o período de férias judiciais.
    M. Por outro lado, perfilhamos o entendimento segundo o qual o artigo 144°, n° 4 do Código de Processo Civil não se aplica quando esteja em causa a interposição de acções na dependência de providências cautelares, na medida em que,
    N. Este é o único entendimento consentâneo com a natureza urgente (expressamente consagrada e tutelada por Lei) de todo o processado relativo às providências cautelares. Isto porque,
    O. Tal natureza é totalmente incompatível com a observância de um prazo, que sendo, por si só alargado (30 dias) quando comparado com a maioria dos prazos de natureza processual, ao mesmo ainda se aplicasse a regra prevista no n° 1 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, de suspensão de contagem durante as férias judiciais.
    P. A regra da suspensão de contagem dos prazos durante as férias judiciais foi concebida como aplicável aos prazos de natureza processual, em regra de duração mais curta, e em função da qual se justifica a suspensão.
    Q. Foi, aliás, este um dos fundamentos do entendimento perfilhado no Assento n° 8/94 do ST J, de 02/03/1994 que fixou jurisprudência
    R. Daí que, se tenha entendido no mencionado Assento que o referido prazo é de natureza judicial e de propositura de acções, mas não se lhe aplica a suspensão de contagem prevista.
    S. Da análise supra, resulta claro que a fixação de jurisprudência, então operada, teve como pressuposto a natureza especifica e particular das providências cautelares, uma vez que,
    T. Embora o prazo contido no artigo 389.º n.º1, alínea a) do Código de Processo Civil, constitua um prazo judicial e de propositura de acção, ainda assim, considerou-se não ap1icável ao mesmo a regra da suspensão.
    U. É neste sentido  que não pode  concordar-se com o entendimento de  que após a reforma de 1995/1996, face à actual redacção do artigo 144.º, n° 4 do C6digo de Processo Civil se passe a considerar como inaplicável ao prazo de 30 dias a regra da suspensão.
    V. Tal seria ignorar e contrariar a natureza própria das providências cautelares.
    W. Assim, a natureza urgente destes procedimentos, aliada à “ratio” da regra de suspensão da contagem dos prazos durante as férias judiciais, afasta o prazo, ora em apreço, da observância da mesma. Deste modo,
    X. Discorda-se daqueles que entendem que com actual redacção da 1ei, o que efectivamente interessa averiguar é se o prazo da propositura da acção está fixado no Código de Processo Civil ou fora dele.
    Y. Pelo contrário, entende-se que "(...) a natureza de um prazo, designadamente para propor uma acção, deve resultar da análise da correspondente norma jurídica, e não da sua  simples inclusão em determinado diploma. " (in BMJ 435-35 (1994), p.p. 37).
    Z. ASSIM  SENDO, a alteração operada pela reforma de 1995/1996 não pode sobrepor-se ao entendimento (anteriormente fixado jurisprudencialmente), segundo o qual, a regra da suspensão de contagem durante as férias judiciais, é inaplicável ao prazo de propositura da acção de que dependa providência cautelar.
   Em face do exposto, deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a Douta Decisão recorrida e substituindo-a por outra em que se declare a Caducidade da Providência Cautelar decretada.

    - Nas contra alegações, a agravada, pronuncia-se pela confirmação da decisão recorrida, com o não provimento do recurso.
    - No tribunal recorrida foi mantida decisão objecto de recurso.
    - Corridos os vistos e tudo ponderado cabe apreciar e decidir.

    II- FUNDAMENTAÇÃO:
    Factos e direito aplicável:
    Os factos são os constantes das decisões do processo em apreciação. 
    Uma vez que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, como resulta do disposto nos art.º 684º nº3 e 690º nºs 1 e 4 do Cód. Proc. Civil e vem sendo orientação da jurisprudência[1], a elas nos cingiremos na sua apreciação.   
    A apelante manifesta a sua discordância da decisão recorrida, através das 26 conclusões que tira das alegações e que se enquadram numa única questão que consiste em saber se na contagem do prazo de 30 dias para a interposição da acção da qual a providência cautelar decretada depende, embora sendo contínuo, se suspende durante as férias judiciais, e se também se excluem, ou não, os dias em que os tribunais estiverem encerrados.
    A questão afigura-se-nos clara , embora não seja esse o entendimento da recorrente.
    Na verdade, antes da alteração da redacção do artigo 144.º do CPC, introduzida pela reforma de 1995/1996, a jurisprudência só veio a firmar-se através do Assento n.º8/94 do STJ de 02/03/1994, como acertadamente refere a agravante na sua conclusão Q), mas esta como todas as interpretações jurisprudenciais, só se mantêm, enquanto o legislador não esclareça ou resolva a questão. Foi o que aconteceu no caso com a nova redacção dada ao n.º 4 do art.º 144.º do CPC., que é hoje inequívoca.
   Com efeito, enquanto na redacção anterior deste preceito legal se dispunha nos n.ºs 3 e 4 do art.º144 do CPC que: “ O prazo judicial suspende-se, no entanto, durante as férias, sábados domingos e dias feriados” e que,  “O disposto no número anterior não se aplica aos prazos de propositura das acções, com excepção dos embargos de terceiro, nem aos prazos de interposição dos recursos extraordinários”, a nova redacção que foi dada ao n.º 4 do mesmo preceito legal pela reforma de 1995/1996, esclarece que: Os prazos para a propositura de acções previstas neste Código, seguem o regime dos números anteriores.”
  Nos números anteriores, logo no n.º 1, estabelece-se que embora sendo o prazo continuo se suspende durante as férias judiciais, desde que os prazos sejam inferiores a seis meses, e nos n.º2  e 3 esclarece-se que também não se contam os dias em que os tribunais estejam encerrados e quais são esses dias.
A agravante discorda dessa interpretação, salientando que as providências cautelares são processos urgentes e que por essa razão estão afastados pela redacção da parte final do n.º1.
   É verdade que as providências cautelares são processos com carácter urgente.
   Isso ninguém põe em dúvida. Compreende-se que os actos que se inserem na tramitação das providências, obedeçam a essa regra específica de contagem, tendo em conta o requisito essencial que é “periculum in mora”, mas a providência cautelar no caso em apreciação já havia sido decretada.
    As providências cautelares, como qualquer processo urgente perdem o carácter de urgência logo que sobre elas recaia uma decisão, como aconteceu. A providência instaurada pela recorrida, deixou de ser processo urgente a partir da decisão de 4/08/200[2].
   É evidente que a acção da qual a providência depende, não é processo urgente e por isso não está abrangido pela ressalva do n.º 1 do art.º 144.º do CPC. Não se pode estabelecer qualquer confusão entre as providências cautelares e as acções de que elas são dependentes. A pensar-se como a apelante, sempre que se requeresse uma providência cautelar o processo de que ela dependesse passaria “ipso facto” a processo urgente.
    Estaria assim  descoberta a forma de incutir celeridade processual às acções de processo comum.
A questão é de tal modo cristalina, que não se vê necessidade de alongadas considerações sobre esta questão, mas sempre se dirá que, atendendo a que o despacho que decretou a providência cautelar foi proferido em 4/08/2003, durante as férias judiciais que se prolongaram até ao dia 15 de Setembro, o prazo de 30 dias para o requerente intentar a acção principal, ficou interrompido desde a data em que foi proferida até ao dia 15 de Setembro, decorrendo o prazo de 30 dias até ao dia 14 de Outubro, data em que deu entrada na secretaria a respectiva petição inicial.
A acção foi assim interposta dentro dos trinta dias, portanto, atempadamente.
   O despacho recorrido foi bem claro, não merecendo qualquer censura. Com ele nenhum agravo foi feito à agravante.
     Improcedem assim todas as conclusões que a agravante tira das suas alegações.

III- DECISÃO
 Em face de  todo o circunstancialismo descrito e das aludidas disposições legais, nega-se provimento ao agravo, confirmando-se em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela agravante, devendo ter-se em atenção o apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 10-02-2005
Gil Roque
Sousa Grandão
Arlindo Rocha
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[1]  - Vejam-se entre outros os Acs. STJ. de 2/12/82, 25/07/86, 3/03/91, 29/05/91 e 4/02/93, do STA de 26/04/88 (in BMJ, n.º 322º- 315, 359º-522, 385º- 541, Acórd.Doutrin.364-545, Col.Jur./STJ,1993, 1º-140 e Ac.Dout.,322 -1267 respectivamente).
[2] - O Prof.º Lebre de Freitas é bem claro e não deixa margem para dúvidas, que os processos de que as providências dependem, não são urgentes. Refere na anotação n.º5 ao art.º 144.º do CPC que: “ O problema pôs-se com maior acuidade quanto ao prazo para a propositura de acção posterior ao decretamento da providência cautelar (antigo art.º 382-1-a, hoje 389.1.a).....pgs.250.   A norma do n.º 4  põe cobro a estas dúvidas interpretativas, ao sujeitar ao regime geral dos números anteriores todo o prazo para a propositura da acções, previstas no CPC, independentemente da sua qualificação como substantiva ou processual-. Código Processo Civil- Anotado, I – Vol. pgs 247 a 252 e II Vol.pgs 46 a 57. anotações ao art.º389 - Coimbra Editora – 1999.
   Veja-se também no mesmo sentido a opinião Desembargador Abrantes Geraldes – Temas da  da Reforma do Processo Civil –fls.281 a 283