Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
69/14.0TTBRR.L1-4
Relator: EDUARDO AZEVEDO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO
FUTEBOLISTA PROFISSIONAL
TRANSFERÊNCIA ONEROSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A cláusula em que se prevê que em caso de transferência compromete-se o praticante a entregar ao clube desportivo também subscritor 50% do valor de uma transferência, não podendo tal valor ser inferior a 74.820,00€, deve ser interpretada no sentido da onerosidade dessa transferência.
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Apelação Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

AA – Futebol - SAD propôs acção com processo comum contra BB.
Pediu a condenação deste a pagar 74.820,00€, acrescidos de juros de mora.
Alegou, em síntese: o R, jogador de futebol, trabalhou para si, sendo que acordaram na revogação do contrato trabalho por mútuo acordo, com efeitos a partir de 25.01.2005 e no âmbito do qual aquele obrigou-se a pagar-lhe 50% do valor total da transferência que viesse a verificar-se do clube onde o jogador faria a primeira inscrição após a rescisão para um novo clube, não podendo esse valor ser inferior a 74.820,00€; apesar de ter trabalhado depois em vários clubes o R não efetuou tal pagamento e devia-o ter feito até 30 dias após a concretização da sua transferência do CC Football Club para o DD; e não lhe comunicou essa transferência do CC Football Club, conforme também se tinha obrigado.
Ocorreu audiência de partes, sem que conciliação houvesse.
O R contestou e reconveio, em súmula, alegando: exceção de ilegitimidade por sua banda e de prescrição do direito que se pretende fazer valer, por a acção ter sido interposta decorrido mais de um ano desde a data da cessação do contrato de trabalho; jamais foi transferido entre clubes, nunca tendo havido o pagamento de qualquer valor de transferência; e a ação causou diversos prejuízos.
Termina pedindo que a A fosse condenada a pagar 5.000,00€ de indemnização e, como litigante de má-fé, no pagamento de multa e indemnização, esta em valor nunca inferior a 5.000,00€.
A A respondeu à matéria da reconvenção e de litigância de má fé.
Foi proferido despacho saneador no âmbito do qual se indeferiu a reconvenção e relegou-se para final o conhecimento da exceção, nomeadamente.
Foi realizada audiência de julgamento e proferida sentença pela qual se decidiu: “Nestes termos, julgo a exceção de prescrição, a presente ação e o pedido de condenação por litigância de má-fé, improcedentes e, em consequência:
- Absolvo o R. BB do peticionado pelo A. AA – Futebol - SAD;
- Absolvo o A. do pedido de condenação como litigante de má-fé.”
A A recorreu.
1º A Recorrente fundamenta o seu recurso em erro na matéria de Direito, nomeadamente na interpretação do acordo de cessação do contrato de trabalho, subdivindo-se em dois pontos fundamentais, sendo estes: conceito de "transferência", e a Cláusula 3 do referido acordo de cessação do contrato de trabalho;
2º No que concerne ao primeiro aspecto, o tribunal a quo considerou o significado literal da palavra “transferência”, fazendo a transcrição do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa onde consta: “1. Acto ou efeito de transferir ou de ser transferido. 2. Passagem; permuta; substituição; troca; mudança.”
3º Segundo a Recorrente, a expressão “transferência” foi redigida no acordo de cessação de trabalho, foi interiorizada, clara e conscientemente, por ambos os intervenientes, no seu lato sensu, aquele que é utilizado nas legislação e regulamentos desportivos.
4º Contrariamente, a douta Sentença em crise vem a considerar apenas e só a expressão “transferência” stricto sensu.
5º Conforme é referenciado anteriormente, em concordância com a legislação que estabelece o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, e com o regulamento da Federação Portuguesa de Futebol acima citado, a expressão, “transferência" não obriga a comunicação/acordo/contrato entre os clubes por onde o desportista passa.
6º Levando em consideração a legislação supra referenciada, também não indica, nem tão pouco obriga, que a passagem do clube onde o desportista esteja inscrito para o novo clube onde se vai inscrever, deva ser onerosa ou gratuita, para que seja considerada "transferência".
7º Da mesma forma, também não referencia nem considera que esta passagem tenha de ser feita seja por acordo de cessação do contrato de trabalho entre ambas as partes, ou por término do contrato, ou até mesmo durante a vigência do mesmo, para que seja considerada como "transferência".
(…)
11º Mais que isso, a Sentença em crise não levou em conta o carácter essencial e a existência de uma condição suspensiva, existente na 3ª cláusula do acordo de cessação do contrato de trabalho.
(…)
13º No caso em apreço, e dando especial ênfase ao art. 6º do Código Civil, estamos perante uma obrigação do R. indemnizar o A., a partir do momento em que há a passagem do primeiro clube onde se inscreveu depois da rescisão do contrato, para um novo clube onde tenha feito outra inscrição.
(…)
16º Não está referido neste acordo qualquer exclusão em caso da dita "transferência" se realizar a título gratuito, ou no término do contrato de trabalho onde o jogador se tenha inscrito.
(…)
Termina pedindo que seja dado procedimento ao recurso, revogando-se a sentença
Contra-alegou-se.
Conclusões:
(…)
XXXIX - A Douta Sentença recorrida, não violou pois qualquer normativo legal, mor mente os invocados pelo Recorrente na sua Alegação e nas suas Conclusões e nem merece qualquer reparo.
XL - Pelo que deve ser integralmente mantida e confirmada.
XLI - Negando-se consequentemente provimento ao recurso apresentado pelo Autor/Recorrente, “AA – Futebol – SAD”.
O processo foi com vista ao MP sendo que o seu parecer foi no sentido da improcedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões a conhecer revertem para o acordo de cessação do contrato de trabalho e para o erro na interpretação da sua cláusula 3ª, nomeadamente.
Os factos considerados assentes na sentença são:
“A autora dedica-se a atividades desportivas na modalidade de futebol profissional. (art.º 1.º petição inicial)
A autora gere uma equipa de futebol profissional com presença na I Liga do campeonato nacional desta modalidade. (art.º 2.º petição inicial)
No âmbito da sua atividade, a autora e o réu celebraram um contrato de trabalho assinado por ambas as partes a dia 6 de Agosto de 2003 que veio a ser resolvido por mútuo acordo, com efeitos a partir de 25 de Janeiro de 2005. (art.º 3.º petição inicial)
No documento intitulado “Revogação de Contrato de Trabalho Por Mútuo Acordo”, o réu obrigou-se: “ Em caso de transferência do Clube onde o praticante fará a primeira inscrição, após a presente rescisão, compromete-se este a entregar à AA SAD 50% do valor de uma transferência, não podendo tal valor ser inferior a 74.820,00 € (setenta e quatro mil oitocentos e vinte euros)”. (art.ºs 4.º petição inicial e 7.º contestação)
O R. prometeu efetuar: “O pagamento da referida verba no ponto 3 é aqui assumido expressa e irrevogavelmente pelo praticante após trinta dias (30 dias) de se concretizar a respetiva transferência”. (art.ºs 5.º petição inicial e 8.º contestação)
Após dia 25 de Janeiro de 2005, data da revogação por mútuo acordo do contrato de trabalho, o réu foi inscrito no Campeonato de Futebol (…) pelo CC Football Club. (art.º 6.º petição inicial)
O mesmo jogador, ora réu, após algumas épocas no CC Football Club, passou pelo DD (campeonato de futebol (…), pelo EE FC (campeonato de futebol (…) e FF (campeonato de futebol (…). (art.º 7.º petição inicial)
A meio da época 2007/2008, quando o jogador deixou o Futebol CC, para ser registado no Futebol Clube DD a título de empréstimo, o acordo entre os dois clubes ocorreu sem custos de transferência e o Futebol Club DD, apenas pagou os salários do jogador. (art.º 9.º contestação)
O jogador deixou o clube em 2008, após ter expirado o seu contrato de trabalho no Futebol Clube DD, não tendo recebido qualquer quantia para o libertar. (art.º 9.º contestação)
O R. enquanto jogador profissional de futebol, celebrou um contrato de trabalho com o Clube EE, em 31 de Agosto de 2008, sem qualquer valor de transferência ou qualquer outro. (art.º 11.º contestação)
Depois do contrato celebrado nos termos referenciados no artigo que antecede, o R. celebrou contrato de trabalho com o Clube FF (…), em 5 de Julho de 2011, sem qualquer valor de transferência ou qualquer outro. (art.º 12.º contestação)
Seguidamente, o R., em 26 de Julho de 2013 celebrou com o Futebol Clube GG contrato de trabalho sem qualquer valor de transferência. (art.º 13.º contestação)
O réu encontrava-se, à data da propositura da ação, inscrito pelo FC GG do campeonato de futebol (…). (art.º 8.º petição inicial)
O réu não comunicou à autora qualquer transferência sua do CC Football Club para um novo clube. O réu não pagou à autora a quantia prometida. (art.º 11.º petição inicial)”
Vejamos.
O acordo foi assinado em 26.01.2016, embora com efeitos a partir de 25.01.
A cláusula 3ª tem o seguinte teor:
“Em caso de transferência do Clube onde o praticante fará a primeira inscrição, após a presente rescisão, compromete-se este a entregar à AA SAD 50% do valor de uma transferência, não podendo tal valor ser inferior a 74.820,00 € (setenta e quatro mil oitocentos e vinte euros)”
Na cláusula 4ª o recorrido assumiu também efectuar o pagamento dessa verba após trinta dias de se concretizar a respetiva transferência, obrigando-se ainda, na cláusula seguinte, a comunicar à recorrente qual o clube ou SAD que iria representar, assim como revelar o conteúdo deste acordo ao clube ou SAD que eventualmente viesse a contratá-lo, coma a obrigação do mesmo/a, subscrever o acordo.
Da matéria assente não resulta que do primeiro clube a que esteve vinculado após a revogação do contrato, o CC Club, o recorrido se tenha vinculado a qualquer outra entidade desportiva empregadora mediante a cedência de todos os seus direitos desportivos e profissionais de jogador de futebol por negócio jurídico oneroso ou não, designadamente na vigência do respectivo contrato de trabalho.
Não se demonstra, pois, qualquer contrato de cedência nesses termos.
Na sentença sem dúvida se interpreta de forma literal a cláusula principal em discussão e por isso refere:
“Em primeiro lugar, verifica-se que, do CC Football Club – clube que se seguiu ao aqui A. - o R. passou para o Futebol Clube DD, a título de empréstimo, pelo que não se pode falar em transferência (como admitiu o próprio A. nas alegações orais).
Deste modo, o importa saber se, na(s) contratação(ões) seguinte(s), se pode falar em transferência, ainda que não tenha havido, nem acordo entre os clubes para o R. deixasse de jogar num clube para passar a jogar no outro, nem o pagamento de qualquer quantia para que tal viesse a acontecer.
Dispõem os art.ºs 236.º e 237.º, do Código Civil, que:
Artigo 236.º (Sentido normal da declaração) 1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Artigo 237.º (Casos duvidosos) Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Não se conhece a vontade real do declarante. Quando ao sentido que um declatário normal deduziria da declaração feita, há que ter em conta o sentido corrente da palavra transferência: trans·fe·rên·ci·a
substantivo feminino
1. Acto ou efeito de transferir ou de ser transferido. 2. Passagem; permuta; substituição; troca; mudança.
"transferência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 20082013, http://www.priberam.pt/dlpo/transfer%C3%AAncia [consultado em 26-09-2015].
Ora, este é efetivamente o sentido corrente de transferência, utlizado em linguagem comum: a transferência implica a substituição, a troca, a passagem de um lugar para outro; ora, no caso em apreço, o R. nunca passou de um clube para outro – foi saindo dos clubes, após o que, não tendo qualquer vínculo, passou para o clube seguinte – pelo que não se pode falar de transferência.
Deste modo, improcede a presente ação.”
É verdade que na sentença não se chegou a concluir sobre a interpretação da claúsula 3º a onerosidade da transferência de direitos de julgador de uma entidade para outra como fundamento do direito peticionado pela recorrente, ao contrário daquilo que é tese deste desde o início da lide.
De qualquer modo, diremos, qualquer que seja o significado de transferência a nível de linguagem comum, corrente, etimológica, académica ou mesmo apelando aos regulamentos desportivos nacionais ou internacionais que regem estas realidades ( nomeadamente o Regulamento do Estatuto, da Categoria, da Inscrição e Transferência de Jogadores sendo que os exemplos dados pela recorrente por si não implicam a aquisição da definição de transferência), seria importante indagar do sentido da cláusula quanto aos pressupostos de pagamento à recorrente mediante a passagem de representação do recorrido de uma para outra entidade na plenitude dos seus direitos de jogador.
Ora, face ao disposto nos artºs 236º a 238º do CC, só se pode concluir acerca de tal cláusula que as partes previram e quiseram que tal direito só devia exercido sob a manifestação onerosa da forma como o recorrido deixasse de representar uma entidade desportiva e passasse a representar outra.
Nesse sentido aponta a directa referência dos 50% ao valor da transferência.
Outra fosse a razão de ser do valor mínimo associada inclusive à não onerosidade essa referência percentual tornava-se espúria.
Para além de que o valor mínimo só faz sentido na previsibilidade de que haveria certezas por banda pelo menos da recorrente que o desenvolvimento da realização desportiva do recorrido era inseparável dessa envolvente onerosa.
Pois bem, é sabido que o declarante responde pelo sentido que a outra parte quer atribuir à sua declaração, enquanto esse seja o sentido que ele próprio devia considerar acessível à compreensão dele. É nesse sentido que se mostra consagrada a teoria da impressão do destinatário, prevista no artigo 236º do CC.
E assim sendo o sobredito é necessariamente aquele que um declaratário normal, colocado na posição do recorrido, entenderia do escrito em causa.
E que foi essa a sua intenção, conforme se referiu, resulta para nós apodíctico.
Não se pode olvidar que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (artº 236º, nº 1, do CC).
Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artº 238º, nº 1, do CC).
E, “em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações” (artº 237º do CC).
Por seu turno na interpretação dos contratos, sendo admissível o recurso a elementos exteriores às respectivas declarações, o ónus da sua demonstração cabe a quem os invoca (artºs 236º, nº 2, 238, nº 2 e 342º, nº 1, do CC).
Ademais, o revelar do conteúdo do acordo “ao clube ou SAD que eventualmente viesse a contratá-lo, com a obrigação do mesmo/a, subscrever o acordo” só faz sentido como forma de se conseguir também o pagamento de pelo menos parte do valor da transferência sem ser por intermédio do recorrido.
E de resto não se vislumbra como se pode dizer que a cláusula em apreço encerra uma condição suspensiva quando na economia do contrato nada se constata no sentido da sorte do acordo estar inegavelmente relacionado e dependente da satisfação da cláusula 3ª.
Pelo que carecendo assim de fundamento a pretensão da recorrente deve o recurso improceder, mantendo-se a sentença na íntegra.
Decisão
Acordam os Juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
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O acórdão compõe-se de treze folhas, com os versos não impressos.
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29.06.2016
Eduardo Azevedo
Celina Nóbrega
Paula Santos