Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14808/15.9T8LSB.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: CARTA
DIREITO À PROVA
PROVA ILÍCITA
DIREITO À RESERVA E INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
DOAÇÃO
COISA MÓVEL SUJEITA A REGISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A carta é um documento particular, e a chancela Notarial apenas determina a conformidade com o original que foi exibido, mas tal não significa que o mesmo não deva ser apreciado como documento particular e como carta pessoal dirigida ao 2º A. pela sua mãe.
II. A limitação do direito à prova surge da observação dos princípios gerais do processo, em especial a lealdade, boa-fé, espontaneidade da prova e o respeito à pessoa humana. Pode ocorrer em dois sentidos distintos: de forma subjetiva (incide sobre a capacidade; legitimidade; sujeitos) e objetiva (recai sobre a admissibilidade de certos meios de prova, produção e valoração da prova).
III. A junção de uma carta do foro estritamente pessoal, embora possa ser classificada como prova ilícita pode ser admitida quando configure a única forma possível de demonstrar determinado facto.
IV. Quando a junção de um documento constitui uma prova ilícita materialmente e que tal junção apenas viola o direito à reserva e intimidade da vida privada e violação da correspondência, sem que esteja em causa o confronto com o direito à prova, não existem os dois direitos por forma aferir da prevalência de um em relação ao outro.
V. Numa acção cujo fim é constitutivo e de anulação de um acto translativo de propriedade, o pedido de devolução do bem objecto de tal negócio constitui a consequência da nulidade ou anulabilidade que se pretende ver afirmada pelo Tribunal, não estando em causa uma reivindicação propriamente dita.   
VI. Na ausência de documento escrito que reflita a doação de coisa móvel a sua validade depende da correspondente tradição da coisa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
A… e  L…intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra L… pedindo a declaração de nulidade ou de anulabilidade, de declarações negociais que transferiram no registo automóvel, o direito de propriedade do veículo automóvel matrícula …, marca Mercedes-Benz, e consequente cancelamento da vigente inscrição registral de aquisição a favor da ré com esse fundamento, bem como seja declarado que o veículo integra a herança de I…, e seja a Ré condenada na sua restituição, com documentos e chaves, ao A. António, fixando-se sanção pecuniária compulsória que liquidam, para assegurar o cumprimento da dita entrega.
Para tanto alegaram, em síntese, que I…, mãe de AA. e Ré, adquiriu o veículo automóvel marca Mercedes modelo E 250 CDI, matrícula …, acto que foi levado então ao registo automóvel, que durante anos e até á sua morte aquela utilizou o veículo em seu proveito, como dona, como também constava do registo, que entretanto a capacidade psíquica da referida Idília deteriorou-se, o que justificou a declaração da sua interdição por anomalia psíquica, que já no período de incapacidade, a dita Idília assinou impresso de requerimento de registo automóvel, em branco, isto é em que então não estava preenchido nenhum dos outros campos, documento que posteriormente à morte daquela, a Ré fez preencher em termos de aparentar que aquela lhe vendera o dito veículo, o que então fez inscrever no registo automóvel, visando apoderar-se do mesmo e prejudicando o que o A. António cabeça de casal do acervo hereditário da referida Idília, providenciava para guarda do veículo para efeitos de partilha.
A Ré contestou arguindo a incompetência territorial do Tribunal, já que estando a coisa automóvel objecto dos pedidos, em Sintra, na área do Tribunal da Comarca de Lisboa-Oeste, este será o competente, bem como erro na forma do processo, porquanto as finalidades prosseguidas pelos AA. haveriam de ser conhecidas em processo de inventário. E, depois de reiterar que se tem visto privada da utilização do veículo em causa por obstrução do A. António, excepcionou que o dito Mercedes … foi-lhe doado por sua mãe I…, como reconhecimento pela atenção e carinho que lhe dedicava, em contraponto com a relação fria e distante com que os AA. também filhos, a tratavam, estes mais preocupados com questões financeiras, doação que já tinha antecedentes noutros veículos, a seu favor, e de terceiro trabalhador. Ainda, disse que não questionando que I… se apresentava como dona do veículo até morrer, isso não impediu que pela sua parte se preocupasse com a conservação daquele, pagando despesas do mesmo, e estendeu o paralelismo das doações, à utilização que fez de documento registral para formalizar a situação já depois do falecimento da mãe, que não impugnou, para concluir que tendo adquirido a propriedade do automóvel, por acto entre vivos com I…, o mesmo não integra a herança desta, improcedendo a acção.
Em resposta os AA. rejeitaram as arguidas incompetência territorial do Tribunal e de erro na forma de processo.
Dispensou-se a realização de audiência prévia, e elaborou-se saneador. No qual se indeferiram as excepções de incompetência do Tribunal e de erro na forma de processo.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença a declarar parcialmente procedente os pedidos formulados pelos Autores, nos seguinte termos: “a) a) Declaro que não foram proferidas as declarações de compra e venda, fundamento da apresentação nº 3703 de 15.04.2015 na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, da inscrição da aquisição a favor de L…, por compra a I… do direito de propriedade do veículo automóvel marca Mercedes, matrícula …; em consequência do que:
b) Declaro a nulidade da inscrição com apresentação nº 3703 de 15.04.2015 na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, da aquisição a favor de L…, por compra a I… do direito de propriedade do veículo automóvel marca Mercedes, matrícula …; em consequência do que
c) Ordeno o cancelamento da inscrição com apresentação nº 3703 de 15.04.2015 na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, da aquisição a favor de L…, por compra a I… do direito de propriedade do veículo automóvel marca Mercedes, matrícula …; e
d) Declaro que o direito de propriedade do veículo automóvel marca Mercedes, matrícula … é titularidade da Herança de I…, em que são herdeiros A…, L…, e L…, o primeiro servindo de Cabeça de Casal; e
e) condeno a Ré L… a reconhecer o direito declarado na alínea d), e condeno-a a entregar de imediato ao Autor A… (como Cabeça de Casal da referida Herança) o veículo automóvel marca Mercedes, matrícula …, seus documentos e chaves; e
f) Absolvo a Ré do demais pedido.”
Inconformado veio a Ré recorrer da sentença, pedindo a procedência do recurso e a anulação e revogação da sentença, substituindo-a por uma outra que opte pelo “primado da forma sobre a matéria e ordene a substituição do registo efectuado por outro que refira o motivo da transmissão da propriedade do veículo dos Autos, que foi uma doação - facto que terá que ser dado como provado, bem como todos os demais que foram dados como não provados”, concluindo ainda que “Decisão que, seja ela qual for, terá que ser expurgada dos comentários infelizes e difamatórios que a Sentença em crise contém quanto à Apelante”. Nas suas conclusões expôs o seguinte:
«1. Salvo o devido respeito, e com toda a consideração, entende a Apelante que foi proferido um errado juízo quanto aos factos dados como provados e como não provados na Sentença em crise;
2. Nas motivações já supra explanadas, a Apelante demonstrou, assim o entende, que, todos os factos não provados, deveriam ter sido dados como provados, devendo igualmente ser dado como não provado o que se inseriu na parte final do facto provado E);
3. Tal julgamento é imposto pela apreciação isenta dos depoimentos das Testemunhas J…, C… e A…, e que o Tribunal a quo desconsiderou por completo, ou simplesmente ignorou;
4. Depoimentos esses que não foram contrariados por qualquer outro meio de prova, e isso sim, são corroborados pelos documentos juntos aos autos, nomeadamente como doc. 11 com a petição inicial e 1, 2, 3, e 4 com a Contestação.
5. O mesmo sucedendo com o depoimento e declarações de parte da Apelante, que o Tribunal igualmente desconsiderou em tudo quanto os Autos.
6. Pelo que, ao apreciar os depoimentos em causa da forma como apreciou, e desvalorizar totalmente o teor dos documentos acima referidos, o Tribunal a quo violou grosseiramente o art.º 607.º do CPC, apreciando a prova produzida contra todas as regras de experiência comum.
7. Bem como violou grosseiramente os artigos 76.º e 77.º do CC ao qualificar de ilícita a junção do Doc. 3 com a contestação por parte da Apelante, por se tratar de documento ao qual foi dada pública forma e não de uma carta privada.
8. Tais regras impunham, sem margem para dúvidas, que fossem dados como provados todos os ponto da matéria de facto não provada, devendo igualmente ser dado como não provado o que se inseriu na parte final do facto provado E), devendo a Sentença em crise ser alterada em tal excerto, o que implicará, pela aplicação do direito aos novos factos dados como provados, mormente a existência da doação do veículo ... à Apelante, a absolvição da Apelante do pedido e o reconhecimento de que é esta a única proprietária desse veículo.
9. Ao apreciar a prova da forma como o fez, totalmente parcial, o Tribunal comportou-se como Parte e, simplesmente, ignorou depoimentos e declarações de parte, que, não tendo sido contraditados, nem contraditórios, desmentiam por completo a tese a que, de forma prévia, o Tribunal já tinha aderido.
10. Os depoimentos prestados pelas testemunhas que o Tribunal a quo decidiu ignorar demonstraram, sem qualquer contradição, não existindo nenhum elemento processual que permitisse pô-los em causa, a forma, modo e tempo em que foi efectuada a doação do veículo dos Autos à Apelante.
11. Sendo o depoimento da Apelante igualmente claro quanto a tal matéria, e quanto à forma totalmente clara e legal como procedeu ao registo do veículo.
12. Tudo sem quaisquer discrepâncias, incongruências ou contradições.
13. Bem como se demonstrou que o Apelado A… não podia ignorar a doação, até pelas exigências que fez.
14. Tendo a Sentença em crise feito tábua rasa de diversos depoimentos isentos – e relativamente aos quais não se levantou qualquer problema de credibilidade, nem na sentença tal é apontado - bem como de praticamente todos os documentos juntos e que teriam relevância para a decisão, nomeadamente os Doc. 11 e 13 juntos com a petição inicial e os Docs. 1 a 4 juntos com a contestação.
15. É incompreensível e legalmente inadmissível, por violar frontalmente o artigo 607.º do CPC e 76.º e 7.º do CC, que se desconsiderem depoimentos e documentos, sem que se indique o motivo pelo qual tais elementos de prova, produzidos legalmente e admitidos sem qualquer oposição, não se revelaram credíveis.
16. Compulsada a Sentença em crise, tal não se verifica, pois que o Meritíssimo Juiz a quo se limitou a, pura simplesmente, ignorar os depoimentos das testemunhas J…, C…e A…, bem como a totalidade das declarações da Apelante, como se os mesmos não tivessem sido produzidos e ficado gravados.
17. Depoimentos que impunham decisão de facto diversa da que foi tomada, nomeadamente quanto a todos os factos dados como não provados.
18. Bem como ignorou os documentos juntos à contestação (Vide docs. 1, 2 e 4 juntos com a contestação) e que, sem sombra de dúvida, em conjunto como o documento que serviu de base ao registo do Automóvel dos Autos (Doc. 11 junto com a petição inicial), comprovam que a Sra. D. I… doou, para além de outros, o veiculo … à Apelante.
19. E fê-lo sem que no momento em que se efectivaram as doações se tivessem registado imediatamente as mesmas, e sempre utilizando como suporte documental de tais doações (de todas as que fez) requerimentos para registo de propriedade de automóvel, em que se indica como motivo a compra e venda verbal.
20. Mais, os documentos juntos pela Apelante comprovam igualmente que a situação foi debatida com o Apelado A…, que, ademais, exigiu receber ele próprio quantia em dinheiro para a aceitar.
21. Documentos, todos eles, simplesmente, e mais uma vez, ignorados de forma absolutamente violadora dos critérios de apreciação da prova do art. 607º do CPC, pelo Tribunal a quo.
22. Sendo que, em momento algum os Apelados alegaram a falsidade dos documentos assinados pela Sra. I… e juntos aos Autos, ou puseram em causa que tivesse sido ela quem os assinou.
23. E tendo o Tribunal a quo, igualmente errada e ilegalmente, entendido que a situação relativa ao chamado mercedes Verde era diferente, quando, do que resultou da prova documental e testemunhal produzida, tal registo foi efectuado com as mesmíssimas premissas e nos mesmíssimos termos – em ambos os casos se tratou de uma doação documentada com uma declaração para registo em que se indicava como motivo a compra e venda verbal e, em ambos os casos a doação ocorreu anos antes do registo, e foi efectuada com base nas mesmíssimas declarações e pelo mesmo Solicitador.
24. A única diferença é que os Apelados concordaram com uma e não concordam com a outra, mas, de facto, tal concordância, no caso das doações, apenas relevaria se as mesmas fossem, e não são, anuláveis por inoficiosidade.
25. Do mesmo modo, contrariamente ao que se refere na Sentença em crise, existiu uma efectiva tradição do veículo, efectivada pela assinatura e entrega à Apelante, da declaração de venda do veículo dos autos
26. Nesse momento a Sra. D. I… deixou de ter animus possedendi, ficando apenas
com o corpus da posse, que é insuficiente para impedir a traditio.
27. E animus que apenas os que lhe eram mais chegados - como as testemunhas J… e C… - poderiam conhecer e testemunhas que, face ao falecimento da Sra. D. I…, poderiam depor quanto a tal conhecimento.
28. Tendo-o feito, nos termos em que o fizeram, e não existindo na Sentença qualquer alusão a um motivo que abale a sua credibilidade, a decisão de que se apela é, também por esta via, incompreensível e ilegal.
29. Tanto mais que, quer a testemunha Carla quer a testemunha José, afirmaram peremptoriamente ter ouvido a Sra. D. I… afirmar, mais que uma vez, que doara o mercedes preto à sua Filha.
30. Grave, mais grave, foi a forma como Tribunal qualificou o depoimento da Apelante e os juízos que fez quanto ao doc. 3 por si junto com a contestação, e que são inaceitáveis.
31. Mais ainda quando o Tribunal a quo não foi capaz de indicar uma única incongruência no depoimento da Apelante, face à inexistência de qualquer uma.
32. Ao que tudo indica fruto da junção pela de uma alegada carta privada que a Sra. D. I… terá escrito ao seu Filho L… e que foi junta sob Doc. 3 com a contestação, não tendo o Meritíssimo Juiz a quo percebido que este documento não pode, de forma alguma, enquadrar-se nos artigos 76.º e 77.º do CC, que, ao decidir como decidiu a sentença em crise igualmente violou.
33.  Este documento não é uma carta pessoal, mas sim uma declaração dirigida a um dos Filhos à qual a Sra. D. I… entendeu dar publica forma junto de Notário Público, exactamente para permitir o seu uso por quem o entendesse fazer, e para não deixar dúvidas nem quanto à sua sanidade quando a produziu, nem quanto ao seu teor ou à sua vontade.
34. Sendo a sua junção absolutamente legitima, lícita, e pertinente no enquadramento da discussão do processo.
35. Mais, é incompreensível que, tendo essa posição quanto ao documento, o Meritíssimo Juiz a quo, tenha permitido a sua junção e discussão em sede de audiência de julgamento.
36. Bem como tenha dado tanta credibilidade a uma parte apenas de um mail junto como doc. 12 com apetição inicial (único meio de prova, aliás, em que a decisão em crise se estriba), mas tenha ignorado o restante texto do próprio mail e o documento 13 junto com a mesma petição inicial, em que - em ambos os documentos - a Apelante reitera que o veículo dos autos já era seu antes de o registar, por vontade expressa da Mãe.»
Os recorridos nas contra alegações pugnam pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:
«a) – Os pedidos subjacentes nos pontos 8 e 37 das conclusões da alegação da Rec.te devem ser rejeitados (artº 573º nºs 1 e 2 do Cód. de Processo Civil;
b) – A impugnação sobre a matéria de facto deve ser rejeitada (artº 640º nºs 1 alª a), b) e c) e 2 do Cód. de Processo Civil;
c)- As passagens das gravações dos depoimentos invocados na alegação da Rec.te não impõem decisão diversa da que foi proferida;
d) – Entre I… e a Rec.te não foi celebrado contrato de compra e venda algum que tivesse por objecto o veículo automóvel …;
e) – Esse veículo não foi doado, menos ainda validamente, à ora Rec.te;
f) – O documento junto sob o nº 12 com a pet. inicial, da autoria da Rec.te, demonstra que nenhum acto verdadeiro translativo do direito de propriedade do dito veículo para a Rec.te ocorreu em vida de I…;
g) – A tradição que releva para efeitos do disposto no artº 947º nº 2 do Cód. Civil envolve a entrega real da coisa, ainda que simbólica (v.g. entrega de chaves ou de documentos), passando a detenção efectiva da mesma para o transmissário;
h) – A doação, se doação tivesse existido, o que se rejeita, jamais podia ser considerada nos presentes autos, uma vez que a Rec.te não pediu, no momento e no lugar próprios, conversão alguma;
i) – Inexistindo compra e venda ou doação, a inscrição registral da aquisição a favor da ora Rec.te é nula e de nenhum efeito;
j) – A douta sentença recorrida não enferma de erro, vício ou ilegalidade».

O recurso foi admitido.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são as seguintes:
1ª A alteração das respostas contidas na sentença, com a reapreciação da prova, devendo considerar-se alterada a matéria factual contida em E) e provados todos os factos dados como não provados;
2ª A verificação da eventual prova ilícita resultante de um documento junto e suas consequências;
3ª A possibilidade de improcedência da acção com a conversão de um registo de venda de um veículo em doação do mesmo a favor da Recorrente.    
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II. Fundamentação:
 Os elementos fácticos que foram considerados provados na sentença são os seguintes:
A) Em 04.03.2008 I… outorgou testamento (com que se finou em 08.01.2015) em que dispôs da quota disponível a favor dos ora A. António e Ré, e em que intervieram dois peritos médicos que declararam “(…) garantir a sanidade mental da testadora(…)”.
B) Em 03.12.2009 I… adquiriu, por compra a Mercedes Benz Portugal,SA , pelo preço de cerca de € 70.000,00, o veículo automóvel marca Mercedes matrícula …, aquisição inscrita registralmente a seu favor na mesma data, e que subsistiu até 15.04.2015.
C) Em 01.12.2014 foi proferida sentença (processo nº 25999/12.0T2SNT), decretando a interdição de I…, com fundamento, designadamente, em que aquela “(…) apresenta evidentes sinais de demência, manifesta deficiência de entendimento ou discernimento, degradação mental e neurológica (…)”, que “(…) verificam-se pelo menos desde 06.11.2013 e que são incapacitantes para o governo da sua pessoa e bens (…)”, fixando-se esta última data como a do início da incapacidade da ali Requerida, com trânsito em julgado.
D) No período de 03.12.2009 a 08.01.2015 I… fazia-se deslocar no veículo Mercedes …, conduzido por motorista ao seu serviço, para o que mantinha na sua posse as chaves e os documentos do mesmo.
E) No período de 24.12.2009 a 08.01.2015, I… agia como dona do veículo Mercedes …, dispondo dele como entendia, e sendo sua responsabilidade as despesas com motorista, consumíveis, conservação, seguros e impostos.
F) Até 08.01.2015, a Ré nunca guardou consigo as chaves ou documentos da viatura dos autos, e após a morte de I…recebeu os documentos do veículo e uma chave do mesmo, da pessoa que fora o motorista daquela.
G) Depois de 06.12.2009, I… e a Ré L… não declararam, respectiva e reciprocamente, vender e comprar, o veículo Mercedes …
H) Em 08.01.2015 faleceu I…, no estado civil de viúva de M… (pelo menos desde 04.03.2008), deixando além dos legatários e herdeiros instituídos no testamento indicado em a), como herdeiros legais os três filhos, os ora Autores e a Ré; sendo Cabeça de Casal o A. António.
I) Em 03.02.15 a R. Luísa enviou ao A. António mail com o teor do doc. 12 pi, fls 79, em que disse “(…) Como combinado telefonicamente, junto envio a declaração de venda do mercedes preto datada de 26/12/2009. Tal como te disse, não passei para meu nome porque quis que fosse da mãe enquanto fosse viva. Também te disse e mostraste concordância que gostaria de ficar com ele, pagando à herança o valor que a Mercauto indicar como actual.(…)”, juntando em anexo o denominado “Requerimento de Registo Automóvel”, com o teor do doc. 11 pi, fls 77/78, o original em uma folha com duas páginas, de que então os Autores tomaram conhecimento.
J) Neste último, a assinatura aposta na página dois no lugar do sujeito passivo, foi aposta por I….
L) No mesmo documento, na página 1, no campo 2 não está assinalado o acto “Declaração para registo de propriedade (Contrato verbal de compra e venda)”, não foi indicada “Outras causas de aquisição de propriedade (contrato escrito, sucessão por morte, venda judicial”, e os demais campos respeitantes a matricula, marca do veículo, identificação do sujeito activo (comprador/adquirente/requerente /exequente/locador), identificação do sujeito passivo (vendedor/transmitente/requerido/ executado), data da celebração do “contrato”, número de identificação, data de emissão e entidade emissora do cartão de cidadão do sujeito passivo, não foram preenchidos por Idília Aguiar de Matos.
M) Os AA. não autorizaram a compra e venda do automóvel Mercedes …, entre I… e a Ré Luísa, e o A. Luís não reconheceu a Ré como dona legítima do mesmo veículo.
N) Em 07.04.2015 o A. António, como cabeça de casal da herança de I…, proferiu as declarações para efeitos fiscais (artigo 26º C.I. Selo) com o teor do doc. 1 junto à resposta, fls 204/214, em que relacionou como integrante do acervo hereditário de Idília Aguiar de Matos, o veículo automóvel marca Mercedes, matrícula ....
O) Em 15.04.2015 a R. Luísa incumbiu o Solicitador A…, de apresentar na Conservatória do Registo de Automóveis, requerimento de inscrição de aquisição a seu favor, do automóvel Mercedes matrícula …, que instruiu com o original do doc. 11 pi , fls 77/78, sabendo aquele que a dita I… já falecera.
P) Que correspondeu à Apresentação 3703 de 15.04.2015, data desde a qual está inscrita registralmente a favor da R. Luísa, o direito de propriedade do Mercedes matrícula …, aquisição por compra a I…
Q) Posteriormente a 15.04.2015, a Ré não aceitou promover modificações na inscrição a seu favor no registo da propriedade automóvel, relativamente ao Mercedes …, de modo a viabilizar a utilização do veículo a favor da Herança de I…
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Da facticidade considerada não provada:
i) Em 03.12.2009 I… adquiriu por compra o veículo Mercedes …, com o propósito de a curto prazo transferir o direito de propriedade do mesmo para a R. Luísa.
ii) Em 24.12.2009 ou posteriormente, I… e a Ré Luísa declararam, respectiva e reciprocamente, doar e aceitar o veículo Mercedes ….
iii) O original do doc.11 pi, fls 77/78, foi assinado por I… em 24.12.2009, não estando preenchidos quaisquer outros campos,
iv) Depois de assinar o original do doc.11 pi, fls 77/78, I… entregou-o à R. Luísa.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
 Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
No entanto, quando seja impugnada a matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 168-169: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Assim, em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. Além disso, também a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
O ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, consagrado no art. 640.º do C.P.C., impõe, sob pena de rejeição, a identificação, com precisão, nas conclusões da alegação do recurso, os pontos de facto que são objeto de impugnação. Acresce que o mesmo preceito exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permite pôr em causa o sentido da decisão da 1ª instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Não obstante, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados (Cfr. Ac. do STJ de 03.12.2015, , in www.dgsi.pt. ).
Abrantes Geraldes ( in ob. Cit.), salienta que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderá ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art. 662.º do C.P.C., atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Feito este enquadramento, haverá que aferir se a apelante cumpre os requisitos em que fundamenta a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
No caso concreto, a recorrente conclui que pretende que não seja dada como provada a parte final do facto provado em E), porém, em momento algum das suas alegações ou conclusões refere, que “parte final” pretende que seja considerada como não provada.
O facto provado em E) tem a seguinte redação: “E) No período de 24.12.2009 a 08.01.2015, I… agia como dona do veículo Mercedes …, dispondo dele como entendia, e sendo sua responsabilidade as despesas com motorista, consumíveis, conservação, seguros e impostos.”
A recorrente nas suas alegações e na parte relativa à reapreciação da matéria de facto apenas pretende que seja eliminado de tal facto a sua parte final, contudo, não identifica a que “final” se reporta em concreto, às despesas com motorista? Aos consumíveis? À conservação? Ou aos seguros e impostos? Com efeito, nem indica nos termos exigidos pelo artº 640º nº 1 alínea a) do CPC, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ou sequer os concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa e, por fim, que decisão deveria ter sido proferida quanto a esse facto. Na verdade, na apreciação da prova feita não se vislumbra a que item se reportará quando “à parte final” do facto contido na alínea E) que considera incorrectamente julgado. Acresce que os únicos documentos juntos pela ré reportam-se a alegadas despesas com a manutenção do veículo juntas a fls. 143 e ss. cujas facturas foram emitidas em nome da ré, porém, todas são reportadas  a uma data posterior à data em que foi declarada incapacitada Idília Matos, ou seja posteriores a 6/11/2013 ( cf. Acórdão junto a fls. 283 e ss.). E mesmo o reportado à designada via verde, o que resulta do doc. de fls. 151 é que tal serviço estava em nome de Idília …., e os pagamentos foram feitos pela mesma até 2011. Por outro lado, o documento de substituição do cartão de crédito destinado ao seu pagamento em momento algum evidencia que tenha sido através de uma conta da ré, pois tal não resulta da análise do documento junto a fls. 152. Além disso, foram juntas facturas de manutenção do veículo em nome de Idília …. – cf. fls. 166 a 173, pagamento de seguro – fls. 249 a 251- e pagamento do imposto único de circulação- de 2010 a 2015, sempre reportado a Idília ….– cf. fls. 252  a 257. Logo, nenhuma prova foi feita quanto a nenhum dos segmentos dos factos relativos à alínea E) que abale o teor do mesmo, nem a prova testemunhal ouvida permite resposta diferente. Mas mesmo que assim não se entendesse a recorrente não cumpre o ónus que nos permitiria aferir da modificabilidade de tal segmento factual, pois não apresenta em sede de recurso que alteração em concreto pretende.
Vejamos os demais factos objecto do recurso da Apelante.
Pretende a recorrente que se considere provada toda a facticidade que obteve resposta negativa, ou foram dados como não provados, a saber:
 i) Em 03.12.2009 I… adquiriu por compra o veículo Mercedes …, com o propósito de a curto prazo transferir o direito de propriedade do mesmo para a R. Luísa.
ii) Em 24.12.2009 ou posteriormente, I… e a Ré L… declararam, respectiva e reciprocamente, doar e aceitar o veículo Mercedes ….
iii) O original do doc.11 pi, fls 77/78, foi assinado por I… em 24.12.2009, não estando preenchidos quaisquer outros campos,
iv) Depois de assinar o original do doc.11 pi, fls 77/78, I… entregou-o á R. Luísa.
Na motivação na consideração de tais factos como não provados enuncia o Juiz a quo o seguinte:
«Sobre a factualidade não provada, no nº i) de a aquisição do ... haver sido feita por I… já com o propósito da sua transferência (em vida) para a Ré L…, além do depoimento desta, enquadrado numa perspectiva mais ampla do relacionamento da mãe com os irmãos AA., nenhum outro meio de prova o sugere, mais a ter a dita Idília, já (em 06.12.2009) a ideia assente de beneficiar aquela relativamente aos irmãos, como o afirmou a Ré L…, e de uma maneira mais exuberante --- porventura demasiado --- a testemunha C… (de 1998 a 2012 trabalhando como empregada administrativa para I… e Filhos, e desde 2012 nas mesmas funções para a sociedade P…,Lda, esta que do que se percebeu gere os interesses da R. Luísa, sua gerente), quando a referida I… se propôs comprar o veículo …, em 06.12.2009, para a finalidade proposta, mais operativo seria fazer a R. adquirir a propriedade do veículo, reservando ela I… para si o usufruto do mesmo, o que não vem sequer alegado.No concernente à não demonstração das declarações de doação do automóvel Mercedes …, por I… à R. L… (nº ii)), elas não decorrem da prática provada da I… depois de Dezembro de 2009, quando a mesma agia e era tratada por aqueles, com quem lidava, como dona exclusiva do veículo, disfrutando dele como queria e suportando as despesas correspondentes, ou seja não se prova tradição do automóvel para a R. L…. E sobre o formalizado no documento 11 pi, fls 77/78, requerimento de registo de compra e venda, com base na assinatura de I…, admitindo que os demais elementos do documento foram preenchidos pela testemunha C… (presume-se que segundo ordens da Ré L…), temos dificuldade em entender que a mesma com a experiência que evidenciou, não houvesse lido todo o documento e chamado a atenção para não se confundir a doação com compra e venda, assinalando a causa efectiva, mas do seu depoimento também não concluímos que soubesse o que ia no espirito de I…, ou que houvesse conversado com esta sobre o assunto. A testemunha J… motorista de longos anos de I…, a sua patroa até ela falecer como afirmou, disse que “(…) a senhora sempre disse que o carro (preto) era da filha (…)” para esclarecer que a data de “24.12.2009” não foi aposta por I…, como se o demais o tivesse sido, e interpelado porque depois da morte daquela, a filha L… haja recorrido á utilização de um documento do registo, para registar uma compra e venda do mesmo, disse não saber, o que mais acentua as dúvidas sobre a produção deste documento e o que com ele se quis. Mais, esforçando-nos por entender as “disfunções” do referido doc. 11 pi, fls 77/7, afinal os intervenientes quereriam doação, e fez-se constar que era compra e venda “porque era assim que se costumava fazer” (depoimento de parte da R. L…), deparamo-nos com o escrito junto à contestação como doc. 3, fls 136/139 --- carta dirigida em 25.02.2008 por I… ao filho o aqui Réu L…, cujo conteúdo se resumiria em “és um ingrato” --- referente à intimidade da vida entre aqueles dois, e que a R. Luísa não desdenhou utilizar agora, como coisa sua, pese a ilicitude da conduta (art. 77º C. Civil), quadro em que ficamos sem saber a que título ela acedeu a documento que não deveria ter utilizado, a não ser que também em acto de “reconhecimento” do carinho que dedicava a I… (em contraponto á frieza dos irmãos) aquela lhe houvesse disponibilizado cópia da carta referida, para arremesso em futuros litígios com os irmãos ora Autores.,Queremos dizer, que a ilícita utilização pela Ré Luísa do referido doc.3 cont. fls 136/139, como posteriormente, em 15.04.15 vai fazer com o doc.11 pi apresentando-o a registo na suposição de a vendedora Idília (que afinal seria doadora) ainda era viva, deixa-nos num clima de dúvida insanável quanto aos termos e finalidade da produção do documento requerimento para registo doc.11 pi, fls 77/78, sendo que a equiparação com a situação referente à doação de outro automóvel Mercedes, feita por Í… ao motorista J…, só serviria para evidenciar as diferenças, esta foi acto do conhecimento e concordância dos três filhos, e a objecto da nossa apreciação não o foi.
Ainda e sobre a expressão da vontade de Idilia Matos, de doar o veículo Mercedes … à filha a Ré L…, se desconsideramos em termos probatórios o conteúdo do supracitado documento 3 da contestação (carta de 25.02.2008 de I… para o A. Luís), pela ilicitude na sua utilização pela Ré L…, tal não nos impede de --- admitindo que a saúde daquela se tivesse mantido nos dois anos seguintes (até Dezembro de 2009), ainda cerca de quatro anos antes do início (Novembro de 2013) da sua incapacidade --- teríamos por expectável que correspondentemente tivesse sido declarado pela mesma, com o vigor no escrever (nota-se em seguir as linhas) e sobretudo no dizer, que por “reconhecimento do tratamento que lhe disponibilizava” a Ré Luísa, lhe doava o veículo mercedes …, ainda que depois lhe apusesse condições, tal ocupar-lhe-ia meia página comparada com a carta de três páginas para expressar a ingratidão ao Réu Luís, sendo absolutamente despropositado afirmar-se, como se disse, que o preenchimento do documento registral como de compra e venda, o foi porque “era assim que se costumava fazer”. E por fim, o último mas não o menos importante, sobre o modo como a Ré L… viu o acto em causa, considere-se o teor do já referido doc. 12 pi,, fls 79, mail que a mesma dirigiu em 03.02.15 ao R. António, com conhecimento ao R. Luís, em que se propõe pagar um preço pelo veículo, o que afasta a doação que fundamentasse a transmissão do direito para si, e não considerámos na espontaneidade do escrito, o que poderia ser uma manifestação de boa vontade para solucionar o assunto, porque não vislumbrámos assomo daquela nesta relação. .
O não provado nos nºs iii) e iv) advém das dúvidas descritas sobre a produção do documento 11 pi, fls 77/78.».
Apreciada toda a prova produzida importará, assim, aferir se os factos dados como não provados devem ou não ser objecto de resposta diferenciada, existindo ou não quanto aos mesmos erro de julgamento.
Da inquirição das testemunhas M…, A… e J… de A…, os dois primeiros por conhecerem a falecida Idilia e a família pelo facto de a mesma frequentar o restaurante dos mesmos, e o segundo como amigo dos AA. e logo, com conhecimento da falecida no âmbito dos convívios familiares, onde também estava presente, ou da frequência do mesmo restaurante, desses depoimentos apenas resulta que era a falecida que utilizava o veículo em causa nos autos, sendo transportada no mesmo pelo motorista.
Na verdade a recorrente parece confundir a traditio com  o registo do veículo, ou mais concretamente entende que a tradição do veículo foi efetivada pela assinatura e a alegada entrega à Apelante da declaração de venda do veículo dos autos. Ora, apenas a entrega e o uso pela ré do veículo, em vida da sua mãe, é que nos permitiria considerar existir a tradição do bem, e não a mera intenção de registo da venda.
Quanto à testemunha J…, motorista da falecida, evidenciou que após o falecimento da mesma foi logo dispensado pelo 1º A., na qualidade de cabeça de casal, sendo que em Março passou a trabalhar para a ré. Donde, do depoimento ressalta a preferência pela posição da ré na dinâmica familiar dos irmãos ora em confronto, o que lhe retira desde logo objetividade. Além disso, o seu depoimento na questão em causa não deixa de ter incoerências manifestas, o que leva a que não seja determinante, por por si só, a prova dos factos contidos nos pontos i) a iv). Por um lado, explicou a questão realtiva à propriedade pela falecida I…, mãe dos AA. e ré, de um veículo cinzendo de matrícula …, que sempre foi dito que seria da ré, e apesar de ter sido assinado requerimento de registo de venda a favor da ré nos termos constantes do documento junto a fls. 133 e 134, nunca tal propriedade foi transmitida. Na verdade, a testemunha acabou por referir que tal veículo foi entregue a título de dação em pagamento de parte do valor do veículo de matrícula …, da marca Mercedes e de cor preta, ou seja o veículo em causa nos autos. Logo, nem o documento títula qualquer doação, nem esta alguma vez foi feita à ré. É certo que o mesmo explicou que um veículo de marca Mercedes de cor verde, no qual também transportava a falecida e que seria sempre era utilizado na ausência de outro veículo, lhe havia sido oferecido pela falecida, utilizando um requerimento de registo de propriedade idêntico e junto aos autos a fls. 140 e 141, ou seja relativo a uma venda. Porém, e de relevância quanto às datas de tal doação resulta a primeira das incongruências quer desta, quer da testemunha C…, funcionária administrativa quer da falecida, quer da ré. Pois começou por dizer que o veículo de cor verde lhe terá sido doado em 2003, na altura do seu aniversário, e que existia uma declaração para efeito de registo de propriedade (que o mesmo indicou ter na sua posse, na audiência )  dessa data, mas como tais declarações deixaram de ter validade teve de ser efetuada uma outra datada de 15/09/2009.
Ora, de tal depoimento resulta que a intenção da falecida não era doar o veículo desde logo, pois a doação determinaria a entrega do veículo ao doador, mas sim e apenas quando não necessitasse do mesmo. Tanto que a transferência efetiva da propriedade a favor da testemunha, do veículo de cor verde, ocorreu já numa altura em que I… tinha sido declarada interdita. Acresce que ao contrário do referido pela testemunha a declaração relativa à transferência da propriedade do veículo Mercedes Verde, e a mesma declaração reportada ao veículo em causa nos autos, esta a favor da ré (a 24/12/2009), não têm a mesma data, nem se vislumbra a que corresponde a data constante da mesma ( a proximidade do Natal? ninguém o afirmou em concreto). Na verdade, quer esta testemunha, quer a testemunha C…, foram perentórias sim em afirmar que desde  a aquisição do veículo que I… afiançou que o mesmo seria de sua filha, mas a declaração não data da compra, pois esta ocorreu em 3/12/2009, e não em 24 de dezembro do mesmo ano, como consta da declaração do registo, mas também não é contemporanea da data da declaração do registo do veículo Mercedes de cor verde a favor da testemunha, como quis fazer crer no seu depoimento. Permite-nos ainda afirmar que a falecida I… caso pretendesse que o veículo fosse atríbuido a sua filha, e como parece resultar de tais depoimentos logo que não necessitasse do mesmo, tê-lo-ia legado como fez relativamente  a outros bens no âmbito do testamento junto, bastando para tanto uma alteração do testamento nesse sentido. Ou então, como refere o juiz na sentença sob recurso, teria deixado um escrito onde tal doação resultasse inequívoca. A questão de apenas ser dado à filha logo que não necessitasse do mesmo resulta aliás do depoimento do motorista, que referiu que apenas entregou as chaves à ré após o falecimento da mãe, ou seja nunca a ré utilizou o veículo ou atuou como sendo proprietária do mesmo, nem se vislumbra em que data pretenderia a mãe doar tal veículo à filha.
Donde, não resulta de tal depoimento que, logo após a compra do veículo, Idília …. tenha tido logo a intenção de transferir a propriedade do mesmo para a ré – facto contido em i) – ou que posteriormente tenham declarado doar e aceitar, reciprocamente  o mesmo veículo – alínea ii) – pois o único documento existente é de registo da propriedade a favor da ré, tendo por base uma venda, registo efetuado já após o falecimento da mãe, único acto de que os AA. foram confrontados.
Quanto às alíneas iii) e iv), ao contrário do pretendido pela recorrente, tais factos não resultam dos depoimentos de J… e de C…, ou ainda A…, solicitador que procedeu ao registo do veículo em nome da ré, já em 2015. Pois o motorista apenas referiu que I… assinou as declarações de registo, mas o constante do ponto iii) reporta-se à data da assinatura e se não estariam preenchidos os demais campos do formulário de tal declaração. E no ponto iv) era se depois tal declaração foi  entregue pela mãe à ré. Ora, tal testemunha quanto à data apenas afirmou “não sabe quando assinou”, e já vimos que não corresponde à mesma data da declaração que o mesmo utilizou para registar o veículo de cor verde em seu nome, ainda que tenha declarado que teria sido na mesma altura, o que não resulta do confronto dos dois documentos, nem a assinatura do documento relativo ao veículo dos autos poderia ter a mesma data. Logo, não corresponde à verdade o referido pelas testemunhas, pois a data da aquisição do veículo em causa é do início de dezembro de 2009 e o documento que serviu de base ao registo de propriedade do veículo de cor verde a favor da testemunha J… é de setembro de 2009.  
Por outro lado, também do depoimento de C…, que tratava dos assuntos da falecida I…, não resulta manifesta a prova de tais pontos, pois o último que se reporta à entrega à ré, a testemunha acabou por dizer que as declarações de registo foram preenchidas na mesma altura, mas sem conseguir explicar as datas diferenciadas dos mesmos, por outro lado que guardou a declaração no cofre, referindo que o fez quanto à declaração que beneficiaria J…, mas sem referir se quanto à declaração que beneficiaria a ré teve o mesmo destino ou que a mesma tenha sido entregue à ré – tal como consta do ponto iv). Além disso, também não resulta evidente a doação ora afirmada pela ré reportada à explicação dos cheques juntos a fls. 135. A testemunha C…, e a própria ré, pretendem afirmar que tais cheques comprovam a doação do veículo à ré, logo aquando da sua aquisição, todavia, tais documentos não são de molde a confirmar tal facto. Na verdade ao contrário do afirmando pela testemunha C… os cheques não contêm a assinatura do 1º A., por outro lado, se o cheque de 70 mil euros emitido a favor do 1º A. se destinava a compensar o mesmo pelo facto de se pretender oferecer o veículo à ré, não se vislumbra porque motivo, com a mesma data, I… emite um cheque no valor de 50 mil euros a favor da ré, ou seja dar-lhe-ia esse valor e ainda um veículo cujo valor de aquisição foi de 63.000€? Logo, que compensação pretenderia em relação ao 1º A.? A testemunha não soube explicar, sendo que a única explicação seria que tal cheque de 50 mil se destinasse a pagar o valor do veículo Mercedes de cor preta, a que acresceria a entrega do veículo de cor cinzenta, mas aí a testemunha foi perentória em afirmar que o veículo foi pago por I… através da entrega de outro cheque. Transparece do depoimento da testemunha uma animosidade em relação aos AA. e uma “tomada de posição” a favor da ré, sendo manifesto que na quezília familiar existente a testemunha  pretende defender a posição da ré. A mesma testemunha confrontada com o email da ré onde propõe ao A. o pagamento do veículo, acaba por concluir de forma emotiva “não necessitava de autorização para ter o carro, e só propõe a compra para ter descanso e paz”. Logo, o depoimento apaixonado e tendencioso retira-lhe objetividade e o mesmo não é de molde a explicar a incongruência da documentação junta, pelo que o mesmo não determina a resposta positiva aos pontos i) a iv).
Quanto ao depoimento da testemunha A…, que procedeu ao registo da propriedade do veículo em causa a favor da ré, tendo como causa a compra efetuada, à data, à sua mãe, entretanto falecida( cf. facto provado em O) e não impugnado), nada sabe sobre os factos ocorridos em 2009 e até ao falecimento de I…, pelo que o seu depoimento também não poderá determinar a resposta positiva aos mesmos pontos.
É certo que das declarações da ré resulta que o veículo lhe foi oferecido por Idília …., sua mãe, mas os factos reportam-se a datas concretas e entregas de declaração de “venda”, e além dos factos já contidos nas alíneas G) a L) dos factos provados, nada mais resulta, ficando sim evidenciado o desentendimento familiar existente e que o mesmo se prolonga agora em sede de inventário e partilha de bens.
Vejamos a questão relacionada com o doc. 3 junto com a contestação da ré.
Como se refere na sentença a propósito de tal documento «(…)deparamo-nos com o escrito junto à contestação como doc. 3, fls 136/139 --- carta dirigida em 25.02.2008 por I… ao filho o aqui Réu L…, cujo conteúdo se resumiria em “és um ingrato” --- referente à intimidade da vida entre aqueles dois, e que a R. L… não desdenhou utilizar agora, como coisa sua, pese a ilicitude da conduta (art. 77º C. Civil), quadro em que ficamos sem saber a que título ela acedeu a documento que não deveria ter utilizado, a não ser que também em acto de “reconhecimento” do carinho que dedicava a I… (em contraponto á frieza dos irmãos) aquela lhe houvesse disponibilizado cópia da carta referida, para arremesso em futuros litígios com os irmãos ora Autores».
Entende a recorrente na suas conclusões que o Juiz a quo violou grosseiramente os artigos 76.º e 77.º do CC ao qualificar de ilícita a junção do Doc. 3 com a contestação por parte da Apelante, por entender que se trata de documento ao qual foi dada pública forma e não de uma carta privada.
O documento resulta de uma fotocópia tendo sido no âmbito do Cartório Notarial emitido a pública forma junta fls. 136 e ss., e tal documento constitui uma carta de 25 de fevereiro de 2008, dirigida ao 2º A. e redigida pela sua mãe I…, mas junta aos autos pela ré, sua filha e irmã do 2º autor. Importa ainda referir que em março do mesmo ano, I… deixou em testamento vários legados ao 1º A. e à ré, bem como a quota disponível a estes dois filhos, excluindo o 2º A.
A carta é um documento particular, e a chancela Notarial apenas existe na conformidade com o original que foi exibido, tal como consta da pública forma de fls. 136, mas tal não significa que o mesmo não deva ser apreciado como documento particular, e como carta pessoal dirigida ao 2º A. pela sua mãe. Por outro lado, não se vislumbra porque motivo foi certificada tal fotocópia no Notário e por quem, ou seja se pela ré, ou pela subscritora da carta, ou por terceiro. Todavia, a questão coloca-se em saber se tal prova no contexto da acção é ou não lícita.
O direito à prova consagrado no artº 20º da CRP não pode ser compreendido literalmente, ou seja, não implica um direito colocado à disposição das partes para que estas apresentem toda e qualquer prova no processo a fim de provocar o convencimento do magistrado. Ao contrário, o seu alcance é amplo, consistindo no: a) direito das partes em alegar factos no processo; b) direito de provar a existência ou inexistência desses fatos; c) direito de participar na produção das provas; d) direito de valoração das provas pelo magistrado; e) direito do contraditório, quer seja das provas deduzidas pelas partes ou trazidas oficiosamente pelo juiz; f) direito das partes à aquisição das provas admitidas.
Como refere Maria Luiza do Valle Rocha (in “A Prova Ilícita do Processo Civil Português”, pág. 30 e ss.) « O direito, sob o ponto de vista instrumental, ou seja, mecanismo para obtenção de uma convivência social pacífica, pode sofrer algumas restrições. Estas, por sua vez, são impostas para melhor adequar o exercício do direito à vida em sociedade. É o que se observa no direito à prova, por exemplo. No sistema probatório, em regra, preza-se pela liberdade à prova, que encontra na permissividade a possibilidade de as partes se utilizarem de todo o meio de prova capaz de demonstrar os factos (alegados) relevantes a ponto de interferirem no convencimento do magistrado. Essa máxima deve ser considerada sob a ótica da legalidade, assim as provas não encontrarão óbices ao serem admitidas (cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2004, p.468. e Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, 1998, p.104.). Entretanto, existem “zonas” no “território” da regulação probatória que tratam de normas jurídicas limitadoras, as quais, por importantes razões fundadas no ordenamento jurídico, se sobrepõem ao direito à prova. Assim como qualquer exceção, são necessários motivos estruturantes e legalmente previstos que justifiquem a privação probatória pretendida. Segundo Walter, citado por Isabel Alexandre ( in ob. Cit.), devem ser observados certos requisitos (cumulativamente) para que as restrições sejam efetuadas, quais sejam: a) resguardar o interesse público; b) princípio da proporcionalidade (quando existem outros direitos que merecem uma tutela mais forte do ordenamento jurídico); c) preservar o núcleo intangível do direito à prova (garantir que as partes se utilizem de meios úteis e idôneos para demonstrarem a veracidade de suas alegações).».
A limitação do direito à prova surge da observação dos princípios gerais do processo, em especial a lealdade, boa-fé, espontaneidade da prova e o respeito à pessoa humana. Pode ocorrer em dois sentidos distintos: de forma subjetiva (incide sobre a capacidade; legitimidade; sujeitos) e objetiva (recai sobre a admissibilidade de certos meios de prova, produção e valoração da prova).
Conclui Pedro Trigo Mesquita ( in “Admissibilidade da prova ilícita em processo civil” pág. 85) que « (a) prova ilícita é toda a prova que, devido ao modo como foi adquirida, aos factos que faz prova, ao modo como é trazida a juízo ou que por qualquer outra razão, extrínseca ou intrínseca ao processo, viola disposições de direito, processual ou material».
Carlos Castelo Branco ( in “A Prova Ilícita”, pág. 87 ) estabelece a definição assente na seguinte ideia fundamental:« A prova ilícita traduz um desvalor na formação da prova, a qual, sem afectar a sua natureza extrínseca ou a finalidade probatória da mesma, foi produzida (extraprocessualmente) ou ingressou no processo, por meios ilegais ou ilegítimos, colidindo com valores e direitos protegidos, via de regra, pela própria Constituição, ou seja, violando ou postergando princípios fundamentais ou normas de direito material».
Tal como preconiza o mesmo autor ( in ob. Cit. Pág. 90 e ss. ) a concretização de prova ilícita  nomeadamente por violação da reserva da intimidade da vida privada, ou inviolabilidade da correspondência, e citando Miguel Teixeira de Sousa,  constituem as provas «cujo método de obtenção ou forma de produção é um acto materialmente ilícito, dando como exemplo provas cuja produção em juízo constitui uma ilicitude, v.g. junção de diário intimo, mesmo que tenha sido obtido licitamente». Ou reportado ao caso em apreço a junção de uma carta estritamente pessoal, violando o artº 76º e 77º do Código civil, ou até no limite o direito à reserva da vida privada – artº 80º do mesmo diploma, dado que a carta dizia respeito à relação entre o filho e sua mãe.     
Logo, no caso concreto a questão coloca-se em relação a uma prova eventualmente materialmente ilícita, nomeadamente por violação de disposições infraconstitucionais, ligados a direitos fundamentais, contrapondo estes ao direito à prova também constitucionalmente consagrado. E nesta oposição há quem defenda que embora a prova seja ilícita a mesma deve ser admitida quando configure a única forma possível de demonstrar determinado facto ( v. g. Remédio Marques in “Ação Declarativa à luz do Código Revisto”, pág.371). Defende Sara Rodrigues Campos ( in “(In)admissibilidade de Provas Ilícitas”, pág. 100 e ss.) que «adotamos uma posição intermédia, de “inadmissibilidade  mitigada”, segundo a qual a prova ilícita deverá ser vedada, salvo os casos excecionais em que se mostre ser o único meio possível e razoável para apurar a verdade e nas situações que envolvem direitos fundamentais em colisão, que deverão ser analisados de acordo com o princípio da proporcionalidade».
Assim, perante um conflito entre dois direitos constitucionalmente protegidos v. g. direito à honra e intimidade da vida familiar e privada e direito à prova, deve ser realizada uma ponderação de interesses tendo por base o caso concreto. 
Na verdade, ao contrário do Processo Penal no âmbito do Processo Civil consagra-se o principio da aquisição processual previsto no artº 413º do CPC. E as provas ilícitas estão previstas no mandamento constitucional no art. 32º, nº 8, que dispõe: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/09/2013 ( in www.dgsi.pt/jtrl), tendo por base os ensinamentos de Casanova Abrantes, refere-se que as provas ilícitas estão divididas conforme o tipo de violação realizada para sua obtenção. Desse modo, asseverou a existência de dois segmentos extraídos das provas ilícitas: o primeiro relacionado às provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, que, pela gravidade apresentada, devem ser consideradas absolutamente inadmissíveis; e o segundo referente àquelas provas que se mostrem susceptíveis de intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e que, pelas circunstâncias de sua obtenção, devem ser tidas como relativamente inadmissíveis, tendo sua admissão que ser analisada de acordo com o caso concreto.
Ora, dúvidas não há que a lei processual é omissa quanto à inadmissibilidade de prova ilícita, ainda que contenha muitas normas limitativas de produção de prova – pr. Ex. artºs 433º, 607º nº 2 do CPC e artºs 364º, 393º e 394º do CC. Porém afloramento de tal consideração poderá advir da recusa de cooperação legítima ou ilegítima contida no artº 417º do CPC, mas como refere Carlos Castelo Branco (ob. Cit. Pág.  227) neste preceito « o legislador resolveu a tensão entre Verdade processual e a Lealdade na obtenção dos meios probatórios dando prevalência a determinados direitos fundamentais em detrimento do direito à prova». Mas tal preceito permite-nos adotar o tal sistema mitigado, ou seja a prova será apreciada dentro do contexto da acção em concreto e a eventual necessidade de mesma ser ou não a única prova com relevância para o caso concreto.
In casu o escrito particular junto reporta-se a uma carta dirigida por I… ao seu filho L…, este, segundo autor nos autos, e tal como refere o Juiz a quo poderá ser resumida como “és um filho ingrato”, porém, para a prova da eventual venda ou doação de um veículo da falecida mãe a sua filha, ora ré, nada releva ou acrescenta. Na verdade, nada se refere quanto a este facto no documento em causa e a carta datada de um mês antes do testamento apenas fundamenta as deixas testamentárias deste, pois manifestamente no testamento quis a testadora beneficiar os dois filhos – 1º A. e ré – excluindo o 2º autor da parte disponível e dos legados, mas nenhuma prova faz quanto à eventual oferta de um veículo à ré e igual montante ao 1º A., como parece pretender a ré com a sua junção.
Donde, entende este tribunal que tal documento constitui uma prova ilícita materialmente, pois apenas viola o direito à reserva e intimidade da vida privada e violação da correspondência, sem que esteja em causa o confronto com o direito à prova, pelo que não existem sequer os dois direitos por forma aferir da prevalência de um em relação ao outro. Assim, tal prova não pode ser tida em conta, nem é de molde a abalar os factos tal como foram considerados na sentença, mantendo-se a factualidade da mesma.  
                                             *
III. O Direito:
Consolidada que está a questão da matéria de facto importará aferir se é de considerar procedente o recurso.
 A Ré no seu intuito recursório pede a procedência do mesmo e a anulação e revogação da sentença, substituindo-a por uma outra que opte pelo “primado da forma sobre a matéria e ordene a substituição do registo efectuado por outro que refira o motivo da transmissão da propriedade do veículo dos Autos, que foi uma doação”.
Na sentença decidiu-se que: «Esta acção tem a natureza de reivindicação de propriedade (art. 1311º C. Civil, visando os AA. exigirem o reconhecimento pela Ré do direito de propriedade do bem em causa (o automóvel marca Mercedes, matrícula …) na titularidade da Herança de I…, em que as partes são os herdeiros da mesma. Assim, importa entender a causa de aquisição e manutenção do direito que os Autores alegam, que foi a compra e venda do veículo pela “de cujus” Idília ao proprietário originário, Mercedes Benz Portugal,SA, a inscrição registral da mesma em 06.12.2009 e a inefectividade do que prejudique esta (incluindo a anulabilidade por falta da sua autorização), de modo a invocar para a tutela da sua posição a presunção registral prevista no artigo 7º do C. Registo Predial que não vem questionada pela Ré. Por sua vez a Ré rejeita a pretensão dos AA., enquanto entretanto, adquiriu o referido veículo com base em doação da referida Idília que aceitou, em 24.12.2009, que fez inscrever no registo predial a aquisição do direito pela sua parte em 15.04.2015 (invocando como causa compra e venda), e que lhe facultaria por via do trato sucessivo da cadeia registral, ser ela agora a beneficiária da respectiva tutela.
Definida assim a análise a fazer, duas são, em primeira linha, as questões a decidir, da regularidade da inscrição registral a favor da Ré, e a declarar-se esta última nula, noutro âmbito do fundamento da posição activa da Ré, a eficácia das declarações de doação entre a anterior titular inscrita Idília …., e ela própria, causa de aquisição do direito por contrato, o primeiro dos modos de aquisição do direito (art. 1316º C. Civil), mesmo que não levada ao registo. Subsidiariamente a manter-se a compra e venda, se abordará a sua anulação, por não autorização dos Autores.
Neste entendimento o provado na alínea G) de que I… e a Ré L… não declararam, respectiva e reciprocamente, vender e comprar, o veículo Mercedes …, depois de 06.12.2009, conduz-nos á conclusão de que a inscrição registral na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa (alínea P)) que corresponde à Apresentação 3703 de 15.04.2015, de aquisição a favor da R. Luísa, do direito de propriedade do veículo Mercedes matrícula …, por compra a I…, é nula, face ao disposto no artigo 16º a) do C.Registo Predial, por haver sido lavrada com base em título falso, já que as respectivas declarações não se verificaram, como era do conhecimento da adquirente Ré L…, o que se declarará (art. 17º C.R. Predial), com o consequente cancelamento do mesmo (art. 13º CRP). Deste modo, removida a tutela registral da posição da Ré, e tornando-se operativa a inscrição a favor de I…, entretanto falecida (alíneas B) e H)), então a pretensão dos AA. procederá, a não conseguir a Ré provar (ónus seu) o contrato de doação com aquela, visando a transferência para si do direito de propriedade referente ao automóvel marca Mercedes matrícula …, sendo que da factualidade provada e não provada, constata-se a frustração da posição da Ré, o direito mantém-se na esfera jurídica dos sucessores da referida Idília, e consequentemente (art. 1311º C. Civil), a eles assiste o direito a exigir a entrega imediata do veículo, com os acessórios necessários, chaves e documentos, á sua posse e circulação.».
Na pretensão dos AA. nos autos a finalidade é a declaração da nulidade ou anulabilidade das  declarações negociais que transferiram, no âmbito do registo automóvel, o direito de propriedade a favor da ré do veículo automóvel matrícula …, marca Mercedes-Benz, e o consequente cancelamento da vigente inscrição registral de aquisição a favor da ré com esse fundamento, passando a declarar-se que o veículo integra a herança de I…. Constitui assim, uma acção cujo fim é constitutivo e de anulação e, logo, a causa de pedir é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido – artº 10º nº 3 alínea c) e 581º nº 4 ambos do CPC. Donde, a integração do veículo na herança de Idília Matos é a consequência da nulidade ou anulabilidade que se pretende ver afirmada pelo tribunal, não estando em causa uma reivindicação propriamente dita, mas sim uma nulidade com a consequente devolução do que tiver sido prestado, ou seja o objecto do negócio inquinado, nos termos constantes do artº 289º do CC.   
Na verdade os AA. não alegam que a herança se mantém proprietária e como tal reivindicam o bem móvel, mas sim que sobre o mesmo existiu um negócio nulo e, nessa medida, tal bem deverá ser restituído à herança, mas como consequência dessa nulidade e não como objecto de uma acção de reivindicação, como conclui a sentença recorrida.
Acresce que em causa está um acto registral, e como se refere no Acórdão do STJ de 21/04/2009 ( in www.dgsi.pt/jstj), plenamente aplicável ao caso dos autos, dado também estar em causa um acto registral sem que exista uma acto negocial coincidente com este, que deve existir uma reflexão “por aqueles que querem ver um primado absoluto do registo sobre a verdadeira realidade. Os registos deviam continuar a ser vistos como limitando-se a reconhecer direitos mas nunca a atribui-los.”
No caso dos autos os AA. pretendem a declaração de nulidade da compra e venda do veículo alegadamente efetuada entre a ré e I…, pois é este o acto que se encontra registado e que determina a subtração de tal bem à herança a partilhar entre AA. e ré. E tal nulidade nos termos alegados pelos AA. advém da inexistência de qualquer vontade em vender e em comprar, negócio este levado ao registo como determinante para a sua efetivação do registo da propriedade do bem a favor da ré. Na verdade, Idília Aguiar de Matos, mãe dos AA. e Ré, adquiriu o veículo automóvel marca Mercedes modelo E 250 CDI, matrícula …, acto que foi levado então ao registo automóvel, que durante anos e até á sua morte foi aquela que utilizou o veículo em seu proveito, como dona, como também constava do registo. Porém, os AA. alegam que a capacidade psíquica da referida I… deteriorou-se, o que justificou a declaração da sua interdição por anomalia psíquica, e que já no período de incapacidade I… assinou impresso de requerimento de registo automóvel, em branco, isto é em que então não estava preenchido nenhum dos outros campos, documento que posteriormente à morte daquela, a Ré fez preencher em termos de aparentar que aquela lhe vendera o dito veículo, o que então fez inscrever no registo automóvel, visando apoderar-se do mesmo.
Como resulta dos factos provados, em 03.12.2009 I… adquiriu, por compra a Mercedes Benz Portugal, S.A., pelo preço de cerca de € 70.000,00, o veículo automóvel marca Mercedes matrícula …, aquisição inscrita registralmente a seu favor na mesma data, e que subsistiu até 15.04.2015.
Em 01.12.2014 foi proferida sentença (processo nº 25999/12.0T2SNT), decretando a interdição de I…, com fundamento, designadamente, em que aquela “(…) apresenta evidentes sinais de demência, manifesta deficiência de entendimento ou discernimento, degradação mental e neurológica (…)”, que “(…) verificam-se pelo menos desde 06.11.2013 e que são incapacitantes para o governo da sua pessoa e bens (…)”, fixando-se esta última data como a do início da incapacidade da ali Requerida, com trânsito em julgado.
Também se provou que no período de 03.12.2009 a 08.01.2015 I… fazia-se deslocar no veículo Mercedes …, conduzido por motorista ao seu serviço, para o que mantinha na sua posse as chaves e os documentos do mesmo. E no período de 24.12.2009 a 08.01.2015, I… agia como dona do veículo Mercedes …, dispondo dele como entendia, e sendo sua responsabilidade as despesas com motorista, consumíveis, conservação, seguros e impostos.
Logo, ainda que pudesse ter existido doação como pretende a ré, nunca existiram por parte de Idília Matos actos de transferência do uso e fruição do veículo para sua filha, ou seja ao contrário do afirmado em sede de recurso nenhum acto evidencia a tradição do bem para a ré, pois a utilização do mesmo era levada a cabo pela proprietária registada e não pela ré. 
Acresce que até 08.01.2015, a Ré nunca guardou consigo as chaves ou documentos da viatura dos autos, e após a morte de I… recebeu os documentos do veículo e uma chave do mesmo, da pessoa que fora o motorista daquela. Ou seja, só após a morte de I… é que pode ser considerado que foi efetuada a traditio do veículo, mas esta já não ocorre pela pretensa donatária, nem pelo cabeça de casal da herança da falecida, mas sim por um terceiro que não tem poderes sobre o bem em termos de posse do mesmo, mas mera detenção como motorista.
Manifestamente não ocorreu o acto translativo da propriedade a favor da ré por negócio de compra e venda entre esta e a sua mãe, o que a ré confessa desde logo na contestação, tendo ficado provado que depois de 06.12.2009, I… e a Ré L… não declararam, respectiva e reciprocamente, vender e comprar, o veículo Mercedes ….
Mas ainda que pudesse ter existido vontade por parte de I… de doar o bem à ré, como pretende a mesma, não é este o acto que foi registado, resultando o registo um acto de venda justificativo da transferência da propriedade a nível registral a favor da ré, teríamos de aferir da validade desse acto, bem como retirar as consequências jurídicas in casu da eventual simulação. Todavia, importará ainda realçar que a acção ficou delimitada pelos pedidos formulados pelos AA., sem que a ré, ao invocar a existência de outro negócio justificativo da propriedade do veículo, tenha formulado pedido reconvencional em conformidade, ou seja de pedido de declaração de validade do acto dissimulado nos termos do artº 241º do CC. Logo, tal apreciação não poderia ser feita nos autos nem em sede de recurso como parece pretender a Recorrente.
Mas caso assim não se entenda, considerando que a alegação da doação constitui um facto impeditivo do direito de anulação do negócio tal como foi apresentado pelos AA., entendemos que tal como resulta dos factos a alegada doação não seria válida.
Senão vejamos.
Conforme a noção dada no n.º 1 do artigo 940.º do CC a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente. E nos termos do artigo 945.º, sob a epígrafe de Aceitação da doação, a proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador. E nos termos do nº 2 a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada ou do seu título representativo, é havida como aceitação. Prevendo-se no nº 3 do mesmo preceito que se a proposta não for aceita no próprio ato ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no artigo 947.º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir os seus efeitos.
Por sua vez, o artigo 947.º do citado diploma, no que respeita à forma da doação, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 116/2008, de 04-07, prescreve que: 1. Sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida de for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado. 2. A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito.
No caso vertente, nenhum documento escrito existe que declare a doação do veículo nos termos pretendidos pela ré, e se cum grano salis se possa considerar tal documento o requerimento para efeitos de registo, mas onde o facto constitutivo é a venda, dada a terminologia utilizada em tal impresso como “vendedor” e “comprador”, sempre estaríamos perante um negócio simulado, e a validade do negócio dissimulado teria de ser pedida, e teria de ser dada oportunidade aos AA. de defesa desse eventual pedido, o que não ocorre nos autos.
Mas na ausência de documento escrito que reflita a doação, estamos, pois, perante uma doação verbal de coisa móvel e cuja validade depende da correspondente tradição da coisa.
Ora, a exigência legal de que a doação verbal de móveis seja acompanhada da tradição da coisa, nas palavras de Vaz Serra (Anotação ao acórdão do STJ, de 18/05/1976, in RLJ Ano 110.º, p. 212): «(…) funda-se na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto.» 
Como se transcreve no Ac. do STJ de 16/06/2016 ( in www.dgsi./jstj), nos termos preconizados por Baptista Lopes ( in das “Doações” pág.44):    «(…) a necessidade de escrito, para a doação de móveis, quando não seja manual, funda-se na conveniência de evitar doações levianas, atitudes imponderadas e precipitadas, pois o escrito chama a atenção do doador para o acto pelo qual, doando móveis sem os entregar ao donatário, desfalca o seu património de uma maneira não visível materialmente. Havendo tradição, esta chama já por si mesma essa atenção.»
Tal tradição ou entrega não terá de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta e podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre, aliás, do disposto nos artigos 945.º, n.º 2, e 1263.º, alínea b), do CC.
No caso dos autos, nenhum acto existiu por parte da mãe da ré que consubstancie a entrega do veículo à ré, pois sempre o mesmo foi utilizado e administrado por I…, passando a ré a ter a posse das chaves e documentos do veículo só após o falecimento da pretensa donatária, mas cuja entrega de tais elementos nem sequer foram efetuados pelo cabeça de casal da herança, mas sim pelo motorista que habitualmente conduzia tal veículo sob as ordens de Idília … .
Nessas circunstâncias, mesmo que pudesse ser considerada a existência de uma doação verbal, nada resulta em termos factuais que evidencie o animus donandi em vida da donatária. E esse animus donandi só seria relevante no sentido de validar o acto desde que tivesse havido a tradição do bem para a posse da ré, o que nunca ocorreu em vida da donatária.
Poderá ainda argumentar-se se o “título representativo” a que alude o artº 945º nº 2 do CC seria o correspondente ao formulário de registo de propriedade assinado por I…. Porém, haverá que ter em conta os factos provados, pois provou-se que em 03.02.15 a R. L… enviou ao A. A… mail com o teor do doc. 12 pi, fls 79, em que disse “(…) Como combinado telefonicamente, junto envio a declaração de venda do mercedes preto datada de 26/12/2009. Tal como te disse, não passei para meu nome porque quis que fosse da mãe enquanto fosse viva. Também te disse e mostraste concordância que gostaria de ficar com ele, pagando à herança o valor que a Mercauto indicar como actual.(…)”, juntando em anexo o denominado “Requerimento de Registo Automóvel”, com o teor do doc. 11 pi, fls 77/78, o original em uma folha com duas páginas, de que então os Autores tomaram conhecimento. E neste último, a assinatura aposta na página dois no lugar do sujeito passivo, foi aposta por I…. No mesmo documento, na página 1, no campo 2 não está assinalado o acto “Declaração para registo de propriedade (Contrato verbal de compra e venda)”, não foi indicada “Outras causas de aquisição de propriedade (contrato escrito, sucessão por morte, venda judicial”, e os demais campos respeitantes a matricula, marca do veículo, identificação do sujeito activo (comprador/adquirente/requerente /exequente/locador),identificação do sujeito passivo (vendedor/transmitente/requerido/ executado), data da celebração do “contrato”, número de identificação, data de emissão e entidade emissora do cartão de cidadão do sujeito passivo, não foram preenchidos por I….
Ora, tal não constitui qualquer título representativo da intenção de doação por I…, mas apenas da eventual aceitação pela ré, mas aí teríamos de considerar  a montante que a falecida teria feito a proposta de doação, inexistindo prova desta nos autos, e não podendo a sua validade ser aferida pela entrega do veículo, pois este nunca foi entregue à ré por quem teria legitimidade – ou a mãe e após o falecimento desta, pelo cabeça de casal.
Na verdade, resultou provado sim que os AA. não autorizaram a compra e venda do automóvel Mercedes …, entre I… e a Ré L…, e o A. L… não reconheceu a Ré como dona legítima do mesmo veículo. Tanto mais que em 07.04.2015 o A. A…, como cabeça de casal da herança de I…, proferiu as declarações para efeitos fiscais (artigo 26º C.I. Selo) com o teor do doc. 1 junto à resposta, fls 204/214, em que relacionou como integrante do acervo hereditário de I…, o veículo automóvel marca Mercedes, matrícula ….
Acresce que apenas em 15.04.2015, a R. L… incumbiu o Solicitador A…, de apresentar na Conservatória do Registo de Automóveis, requerimento de inscrição de aquisição a seu favor, do automóvel Mercedes matrícula …, que instruiu com o original do doc. 11 pi , fls 77/78, sabendo aquele que a dita I… já falecera. Tal registo correspondeu à Apresentação 3703 de 15.04.2015, data desde a qual está inscrita registralmente a favor da R. Luísa, o direito de propriedade do Mercedes matrícula …, aquisição por compra a I….
Donde, ainda que com fundamentação diversa, por manifesta nulidade do acto e do registo nos termos do artº 16º e 17º do Cod. Reg. Predial, aplicável ao registo automóvel ex vide artº 29º do D.L. nº 54/75, de 12/02( sendo a última redação com  a actualização operada pelo DL n.º 85/2006, de 23 de Maio ), o recurso é improcedente na íntegra, mantendo-se a decisão recorrida.
Improcede, portanto, a apelação, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados na sentença a quo.             
                                             *
IV. Decisão:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, ainda que com fundamentos diversos, mantem-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 11 de Dezembro de 2018

Gabriela Fátima Marques

Adeodato Brotas

Gilberto Jorge