Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
914/07.7TDLSB.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: GRAVAÇÃO ILÍCITA
DIREITO DE NECESSIDADE
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº Sendo o arguido advogado, no efectivo exercício das suas funções, e estando provada a factualidade objectiva tipificada no art.199, nº1, do Código Penal (gravações ilícitas), ao considerar não provado “que o arguido agiu bem conhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta”, o tribunal incorreu no vício do “erro notório na apreciação da prova”, por ter decidido contra as regras da experiência;
IIº Recebendo o arguido convite para um encontro, logo tendo intuído que o interlocutor visava uma acção de corrupção, aceitando comparecer e indo munido de gravador, com o qual gravou a conversa sem o consentimento daquele, não se verifica o “direito de necessidade”, excludente da ilicitude, pois o perigo foi intencionalmente criado pelo agente;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência (art.º 419.º, n.º 3, al. c), do C.P.P.), os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – No 4.º Juízo Criminal de Lisboa, Processo Comum Singular n.º 910/07.7TDLSB, onde é arguido A..., e assistente/recorrente B..., havendo aquele sido acusado da prática de um crime de “gravações ilícitas”, p. p. nos termos do art.º 199.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, veio do mesmo a ser absolvido, por suposta existência de causa de exclusão da respectiva ilicitude.

Porém, com a referida decisão absolutória não se conformou o assistente, pelo que da mesma interpôs o presente recurso, o qual sustentou na verificação de todos os elementos típicos do crime de “gravações ilícitas”, quer na previsão da al. a), n.º 1, do art.º 199.º do Cód. Penal, quer da al. b), devendo, por isso, ser proferida sentença condenatória.
Da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:
“(…)
1 - Resulta dos factos que o Tribunal a quo considerou provados - grande parte dos quais foi alegada pelo Arguido na sua contestação - que o Recorrido praticou a factualidade típica do crime de gravações ilícitas (artigo 199.º do Código Penal), quer quando (no dia 22 de Janeiro de 2006), sem consentimento, gravou as palavras do Assistente (n.º 1, alínea a); quer quando (no dia 23 de Janeiro de 2006), sem consentimento, entregou a gravação às autoridades, permitindo que estas a utilizassem (alínea b).
2 – O ilícito criminal indiciado pela prática da segunda modalidade de conduta típica entrega às autoridades - não foi afastado pela ocorrência de nenhuma causa de justificação. Nem das causas gerais de justificação presentes na Parte Geral do Código Penal; nem das excludentes da ilicitude dispersas pela unidade da ordem jurídica e particularmente pela lei processual penal.
3 - A gravação e a utilização das gravações para efeitos de processo penal só são legítimas e admissíveis preenchidos que sejam todos os pressupostos - materiais, orgânicos, procedimentais e formais - prescritos nas pertinentes autorizações legais. Que, invariavelmente, fazem depender a validade e a justificação da prévia e insuprível autorização jurisdicional.
4 - A gravação feita pelo Recorrido sem consentimento do Recorrente, no dia 22 de Janeiro de 2006, não está justificada pelo Direito de necessidade, previsto no artigo 34.º do Código Penal. Isto dada a falta, tão patente como insuprível, dos pressupostos nucleares desta causa de exclusão da ilicitude. E, particularmente: “perigo actual”, “sensível superioridade do interesse a salvaguardar” e “necessidade da acção ou do meio”.
5 - Só haveria perigo se o Recorrido decidisse criá-1o, participando na conversa que incorporava o perigo. Se houvesse perigo, ele teria sido voluntariamente criado pelo agente, sendo, como tal, irrelevante para efeitos de Direito de necessidade (alínea a) do artigo 34.º do Código Penal.
6 - A acção típica não era necessária, tendo o Recorrido ao seu dispor o menos gravoso de todos os meios: recusar a conversa. O que lhe permitiria salvaguardar o seu bom nome sem sacrificar o direito à palavra do Assistente.
7 - De acordo com os factos provados, não se pode falar de superioridade do bom nome (do Recorrido) sobre o direito à palavra (do Recorrente). Muito menos se poderia falar da sua “sensível superioridade”.
8 - Deveria e deve, por isso, o Recorrido ser condenado como autor material do crime de gravações ilícitas, p. e p. pelas al. a) e b) do art.º 199.º do Código Penal.
9 - Ao decidir em sentido contrario, absolvendo o Recorrido, a douta sentença violou esse preceito legal e ainda, entre outros, o disposto no art.º 34.º do mesmo diploma.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito não suspensivo.
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Notificado da interposição do mesmo recurso, apresentou o Ministério Público a respectiva “resposta”, onde, a final, formulou as seguintes conclusões:
“(…)
1 - não são de considerar as alegações que versam a conduta tipificada no art.º 199.º, al. b) do CP, por os factos a que o recorrente se reporta não constarem da acusação e porque por eles, que poderiam consubstanciar ilícito autónomo, o assistente não apresentou queixa.
2 - as gravações não autorizadas, admitem causas de justificação para afastamento da ilicitude, cf. defendido pelo Prof. Costa Andrade em comentário ao art.º 199.º in Comentário Conimbricence”, §58, fls 841.
3 - a conduta do arguido não é ilícita porque, como alega o recorrente e consta do Parecer do Prof. Costa Andrade junto aos autos
- só as gravações não autorizadas das conversas que são “expressão fugaz e transitória da vida”, são puníveis , desse modo se protegendo a “confiança na volatilidade da palavra bem como na conexão das palavras entre si e com a respectiva atmosfera” (vd. ponto 4 al. a) a fls. 555 das alegações e ponto 4 al. a) do Parecer a fls. 576).
Entendimento que também tem o Prof Eduardo Correia quando defende que só a gravação de conversas que sejam “uma acção comunicativa inocente e autentica”.
4 - a gravação efectuada pelo arguido, em 22/1/2006 não se reporta a conversa que possa ser considerada “expressão fugaz e transitória da vida”, nem inocente.
Pelo contrário, como se verificou das conversas posteriores (24/1/2006 e 27/1/2006) gravadas com autorização judicial, ocorridas também a pedido do assistente, esta gravação é o primeiro acto de um processo corruptivo.
Veja-se para tanto, certidão extraída dos autos de NUIPC 263/06.8JFLSB e que compõe o Apenso 2 destes autos) no âmbito do qual, o assistente foi acusado e condenado pela prática de um crime de corrupção e em cuja decisão tais conversas se encontram transcritas, nomeadamente a fls. 47 do Apenso 2.
5 - face ao contexto em que o arguido actuou:
- após telefonema do assistente para o seu escritório pedindo-lhe encontro “fora do escritório para assunto não profissional”,
- sendo certo que contra a sociedade representada pelo assistente - a “C...” -, existia acção popular instaurada pelo seu irmão e no qual tinha procuração, o arguido logo desconfiou dos motivos que moviam o assistente,
- tendo-o feito prever que com tal iniciativa o assistente visaria uma acção de corrupção atingindo seu irmão,
- actuou do modo descrito nos autos por recear o que lhe poderia vir a acontecer no futuro em termos de preservação do seu bom nome.
6 - Não sendo exigível ao arguido pelo ordenamento jurídico globalmente considerado, que face a tais receios não deveria corresponder a tal solicitação, antes lhe devendo ser reconhecido o direito a conhecer as verdadeiras intenções do assistente para melhor defender o irmão, o arguido agiu ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.
7 - acresce que, tendo o arguido comunicado às autoridades os factos praticados pelo assistente os quais indiciavam um crime de corrupção, para cuja prática ele tinha solicitado a sua colaboração, e fundamentando tais factos com entrega da gravação, entendemos que com a instauração de processo crime no âmbito do qual foi o arguido autorizado a gravar as conversas posteriores, ocorridas também a pedido do assistente, e nas quais sobre o mesmo assunto este falou dos valores a pagar, do modo e do tempo em que os factos por si pretendidos iriam ocorrer, que deve ter-se como sanado – por via da autorização judicial posterior – qualquer vício de que padecesse a gravação a que se reporta estes autos, considerando-se também por esta via que a conduta do arguido não é ilícita.
8 - ponderados todos os factos na vertente objectiva e subjectiva em que ocorreram, bem andou a Mm.ª juiz “a quo” ao considerar que a conduta do arguido estava abrangida por uma causa de exclusão, concretamente a prevista no art 34.º do CP, cujos pressupostos elencou e fundamentou para a final, absolver o arguido.
9 - pelo exposto, porque a sentença recorrida não violou quaisquer normas legais, nem padece de vício que se imponha conhecer, deve ser mantida. (…)”.
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O arguido, por sua vez, respondendo, também, aos fundamentos do recurso, pugnou pela confirmação da decisão recorrida.
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Neste Tribunal a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu “parecer” no sentido do reenvio do processo para novo julgamento.
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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
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2 - Cumpre apreciar e decidir:

É o objecto do recurso, aferido à luz das conclusões formuladas pelo recorrente, o saber-se se existe, ou não, a causa de exclusão da ilicitude invocada pelo tribunal “a quo” em sustentação da sua decisão absolutória.

No que para o conhecimento do referido objecto releva, foi a seguinte, em termos de matéria de facto, a decisão recorrida:
“(...)
2 – Fundamentação
2.1 – Matéria de facto provada
De relevante para a discussão da causa, resultou o seguinte circunstancialismo fáctico:
A) - No dia 18 de Janeiro de 2006, o arguido foi contactado telefonicamente para o seu escritório por alguém que se identificou à recepcionista como “B...”.
B) - O arguido pensou, num primeiro momento, que seria um jornalista da “TV”, de nome MD…, porque, nessa semana, os meios de comunicação social discutiam, com grande intensidade, a descoberta de um denominado “envelope 9” que, no âmbito do Processo X… (onde o arguido é advogado), registava chamadas telefónicas efectuadas por altas figuras do Estado.
C) - Transferida a chamada para o arguido, o interlocutor esclareceu que se chamava “B...”, após o que adiantou ser cliente de uma colega de escritório do arguido (Dra. R…) e ainda que era de ....
D) - Na posse dessa informação, o arguido percebeu quem seria o seu interlocutor, uma pessoa ligada ao grupo “C...”, o qual mantinha um litígio com o seu irmão, vereador D..., por causa de uma permuta de terrenos do PM… e da FP….
E) - O assistente queria encontrar-se com o arguido, fora do escritório, para um assunto não profissional.
F) - Nesse mesmo instante, o arguido logo intuiu que a abordagem poderia visar uma acção de corrupção, visando, por seu intermédio, o seu irmão.
G) - O arguido anuiu ao encontro para o domingo seguinte, dia 22 de Janeiro, pelas 17h e 30m, a realizar no Hotel M….
H) - O arguido, antes do referido encontro aconselhou-se com amigos chegados: - Prof. AB…, DM…, AR…, licenciado em direito e CA…, advogada e todos lhe aconselharam que deveria ir ao encontro, mas que deveria fazer a gravação da conversa, a fim de, por esse meio, se acautelar contra a hipótese do assistente pretender “virar” a conversa contra si, designadamente referindo que a iniciativa do encontro e da acção de corrupção fora do arguido.
I) - O arguido resolveu então ir ao encontro no Hotel M…, munido de um instrumento que lhe permitisse gravar a conversa.
J) - O arguido pediu a um cliente - o produtor de televisão CC… - se lhe poderia facultar um instrumento de gravação adequado para o efeito em causa, muito embora não lhe tivesse explicado nem referido para que fim é que, em concreto, precisava desse instrumento.
K) - O Sr. CC… disponibilizou-se para lhe emprestar um instrumento, que teria um receptor, que funcionaria numa caneta, a qual transmitiria para um gravador, que teria de ficar nas imediações.
L) - Foi nesse contexto que o ora arguido ficou na posse desse instrumento, tendo, então, pedido ao seu amigo LF… que o acompanhasse ao encontro, munido do gravador, enquanto ele, arguido, levaria a caneta-receptor.
M) - No domingo, dia 22 de Janeiro, o arguido verificou que o instrumento que lhe fora facultado pelo Sr. CC… funcionava muito deficientemente, tendo acabado por optar por se servir de um telemóvel - mais precisamente o telemóvel do seu cunhado, M..., com quem, por acaso, esteve nesse dia, que lho facultou, sem saber o fim a que se destinava.
N) - Ao final da tarde do dia 22 de Janeiro, depois de votar (era dia de eleições presidenciais), o arguido deslocou-se ao Hotel M…, para onde previamente já tinham ido o seu amigo LF… e a sua amiga BM…. (contactada pelo primeiro), aos quais foi pedido que assistissem, à distância, ao encontro.
O) - Assim, pelas 17 h e 30 m, o arguido dirigiu-se ao Bar do Hotel M…, em …, onde se encontrou com o ofendido e munido do telemóvel com a função de gravador, procedeu à gravação pelo menos parcial da conversa que manteve com o ofendido e que se encontra transcrita no Apenso 3 que aqui se dá por reproduzida.
P) - Na referida conversa e quando o telemóvel supra referido já não procedia à gravação o assistente propôs-se a pagar ao irmão do arguido uma quantia, em troca de um declaração pública, enquanto vereador, de apoio à legalidade do negócio PM… /FP…, acompanhada da desistência da acção popular que movera por causa desse assunto.
Q) - O arguido procedeu à gravação da conversa referida em O), contudo, sem o conhecimento e contra a vontade do ofendido.
R) - O arguido sabia que gravava conversa travada com terceiros, não destinada ao público, apesar de lhe ser dirigida.
S) - O arguido agiu livre e conscientemente.
T) - O Arguido é sócio da sociedade L.. & ASSOCIADOS - SOCIEDADE DE ADVOGADOS, que tem sede na Rua …, n.°…, em Lisboa, da qual é também sócia a ora R…, advogada que o Assistente, em representação da sociedade P… IMOBILIÁRIOS, S.A., constituiu mandatária na acção n.º 1…/05.BELSB, da 4.ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa.
U) - Nessa acção, proposta pelos Dr. D... e cuja petição foi por este subscrita como advogado em causa própria, o Arguido foi constituído mandatário pelo Autor, no dia 30 de Novembro de 2005, após ter sido apresentada, em 8 do mesmo mês, a respectiva contestação, subscrita pela ora R….
V) - O Assistente frequentava, com regularidade e desde há vários anos, o escritório daquela sociedade de Advogados, onde se cruzava, por vezes, com o Arguido.
W) - No dia 23 de Janeiro, a título informal, comunicou a ocorrência ao Dr. R…, então bastonário da Ordem dos Advogados, e, nesse dia, ao final da tarde, encontrou-se com o Dr. Ros…, Procurador da República, nas instalações do DCIAP, a quem narrou a factualidade supra exposta.
X) - Nessa sequência, o Dr. Ros… veio a propor ao arguido que colaborasse com o Ministério Público e com a Polícia Judiciária, no sentido de se realizar uma acção encoberta, que pudesse recolher a prova do crime já cometido a 22 de Janeiro, o que imporia a repetição das conversas com o assistente, agora gravadas a coberto de autorização judicial, a fim de poderem ser utilizadas no processo criminal.
Y) - O arguido anuiu a prestar essa colaboração, no estrito cumprimento do dever cívico, o que se concretizou a 24 e 27 de Janeiro de 2006.
Z) - A 23 de Janeiro de 2006, formalizou-se a denúncia, tendo o arguido entregue às autoridades o telemóvel que continha a gravação realizada no domingo, dia 22 de Janeiro.
AA) - Essa gravação ficou incorporada nos autos do processo-crime que foi instaurado contra o assistente, pela prática de um crime de corrupção, crime pelo qual foi acusado, pronunciado e condenado em 1.ª instância e em sede de recurso para a Relação de Lisboa foi absolvido.
BB) - Nesse processo ficou assente a factualidade constante da certidão judicial junta aos autos como apenso 2.
CC) - O arguido vive com a sua mulher, com um filho com 9 anos e duas enteadas com 16 e 13 anos, sendo que todos estudam.
DD) - Despende, mensalmente, a título de mensalidades com o colégio do filho e enteadas a quantia de €1000,00.
EE) - Aufere mensalmente, um rendimento médio de €10.000,00 a 15.000,00.
FF) - Vive em casa própria, sendo que despende a quantia de €1000,00 a título de prestação pelo empréstimo bancário contraído para aquisição da mesma.
GG) - A sua mulher é jornalista e aufere, mensalmente, €2500,00.
HH) - O arguido tem como habilitações literárias o mestrado em direito.
II) - O arguido não tem antecedentes criminais.

2.2 – Matéria de facto não provada
A) - Que o arguido agiu bem conhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta.
B) - Que o arguido conhecia pessoalmente o ofendido antes dos factos referidos em C) dos factos provados.
Tudo o que em contrário tenha sido dado como provado, bem como todos os factos conclusivos e de direito que se mostrem alegados, os quais não podem, por lei, ser considerados.

2.3 – Motivação da matéria de facto provada e não provada
O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido e do assistente, nos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e ainda na prova documental junta aos autos.
Diga-se, desde já, que o tribunal entendeu como credíveis as declarações do arguido não só pela forma estruturada, sem contradições e objectiva com que as prestou, mas igualmente por as mesmas se mostrarem em consonância com o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, com a prova documental junta aos autos e se mostrar de acordo com juízos de experiência comum.
O arguido confirmou que efectuou a gravação da conversa que manteve com o assistente no bar do Hotel M…, no dia 22 de Janeiro de 2006 sem o seu conhecimento ou consentimento. Apenas nesta parte as declarações do arguido e do assistente convergem quanto ao mais o assistente trouxe à audiência de julgamento uma versão dos factos completamente diversa da apresentada pelo arguido e até contrariando factualidade já dada como provada no âmbito do processo n.º 263/06.8JFLSB.L1.S1, em que o assistente permanecia acusado pela prática de um crime de corrupção.
Nenhuma credibilidade foi concedida às declarações do assistente que nesta sede, tentou imputar ao arguido a iniciativa do contacto telefónico, bem como a iniciativa do encontro e ainda o acto de corrupção.
De facto, se não bastasse a forma confusa, comprometida e com sucessivas contradições com que o assistente prestou o seu depoimento, o seu depoimento perde qualquer credibilidade quando confrontado com a transcrição da conversa mantida no dia 22 de Janeiro de 2006 com o arguido, já que não logrou explicar a razão pela qual é o arguido que lhe questiona o que é que o mesmo quer do arguido e não o contrário. Depois o assistente continua dizendo: “Peço desculpa desta conversa”. Ora, face a tal diálogo dúvidas não restam que quem teve a iniciativa de contacto e combinou o encontro foi o assistente e não o arguido.
Acresce que tal factualidade foi confirmada pelo depoimento da testemunha T1…, na data da prática dos factos escriturária do arguido, que de forma descomprometida confirmou a factualidade constante em A).
Face ao supra referido o tribunal deu credibilidade às declarações do arguido e deu como provados os factos constantes em B) a E).
De facto, tentou o assistente demonstrar que o arguido conhecia bem o assistente e que até conversavam quando o mesmo deslocava-se ao escritório do arguido para falar com a Dr.ª R….
O arguido negou tal facto, tendo assumido que pode até ter cumprimentado o assistente quando o mesmo foi ao escritório, mas que nunca foi apresentado ao mesmo e como tal não associou a pessoa em causa ao nome B....
O tribunal deu credibilidade às declarações do arguido, pois até a testemunha T2…, director financeiro da C..., referiu que apenas em 2004 a testemunha quando se encontrava com o assistente trocou impressões com o arguido sobre o IVA das viaturas todo o terreno e que fora essa situação apenas cumprimentavam-se quando se cruzavam no escritório.
Por sua vez as testemunhas T3…, que trabalhou com o assistente e T4…, engenheiro civil na C... referem que nunca viram o assistente a conversar com o arguido, apenas o viram cumprimentar (Bom dia, Boa tarde). Ou seja, nenhuma das testemunhas arroladas pelo assistente logrou demonstrar, para além da dúvida, que o arguido conhecia, efectivamente que o assistente, pessoa que até dizia bom dia, boa tarde, era B....
Na verdade, o escritório onde laborava o arguido é de alguma dimensão, existem imensos clientes a circular, nenhuma testemunha referiu que os mesmos foram formalmente apresentados e por outro lado, o assistente era cliente da Dr.ª R…, não do arguido.
Acresce que a testemunha T5…, advogado no mesmo escritório do que o arguido referiu que na data dos factos apesar de serem uma sociedade de advogados cada um tinha trabalho autónomo, sendo que ele próprio não conhecia o assistente, mesmo apesar de ir ao escritório muito frequentemente.
Assim, entendeu este tribunal conceder credibilidade ao arguido quando este refere que não conhecia o assistente como B... antes de toda esta factualidade e deu como provado o facto constante em V) e como não provado o facto constante em N.Prov. B).
Os factos constantes em F) a I) da matéria de facto dada como provada resultaram do depoimento do arguido conjugado com o depoimento das testemunhas T6…, advogada e amiga do arguido, AB…, DM… e AR…. As referidas testemunhas de forma isenta, sem contradições e como tal credíveis confirmaram tal factualidade, tendo explicado o estado de espírito do arguido, bem como a sua indignação pela actuação do assistente, bem como a sua motivação quando decidiu ir ao encontro no Hotel M…, bem como os conselhos que lhe deram para levar um instrumento para gravar a conversa, já que como o arguido os mesmos também achavam que o bom nome e honra do arguido podia ser posto em causa, pois de duas uma ou o encontro seria para tentar “corromper” o irmão do arguido através deste ou poderia até ser alvo de ameaça.
Os factos constantes em J) a M) resultou provado com base nas próprias declarações do arguido que descreveu toda a sua actuação de preparação para o encontro no Hotel M….
O facto constante em N) resultou provado nas declarações do arguido e dos depoimentos em total consonância das testemunhas T7… e T8….
Os factos constantes em O), Q) a S) resultaram das declarações do arguido e da análise da transcrição da gravação junta aos autos em apenso nestes autos (apenso 3).
Quanto ao facto constante em P) resultou provado com base nas declarações do arguido que mereceram credibilidade, já que o comportamento do assistente nos dois encontros seguintes que teve com o arguido demonstram o que pretendia o assistente. Da análise dos factos provados constantes da certidão judicial apensa a estes autos – apenso 2 – é possível ler-se as transcrições das escutas efectuadas ao assistente onde o mesmo volta a oferecer dinheiro em troca da desistência da acção popular interposta pelo irmão do arguido e de uma declaração pública do mesmo a apregoar a legalidade do negócio da FP… e do PM…, bem como de forma até caricata descreve a forma como obteria o dinheiro.
Os factos constantes em T) a U) resultaram provados com base nas próprias declarações do arguido que explicou a razão pela qual constava como um dos mandatários do seu irmão, sendo que acabou por substabelecer o seu mandato.
Os factos provados constantes em W) a BB) resultaram provados com base no depoimento do arguido e no depoimento das testemunhas Ros.., Procurador da República e no depoimento de CA…, responsável pela coordenação do DCIAP que confirmaram a referida factualidade. Atendeu-se, ainda, à certidão judicial junta aos autos no apenso 2.
Atendeu-se às declarações do arguido quanto às suas condições económicas e pessoais constantes nos factos CC) a HH).
Teve-se em conta o CRC do arguido junto aos autos. (…)”.
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Sendo esta a decisão recorrida em termos de matéria de facto, pese embora se diga não conformado com o julgamento que sobre a mesma foi feito pelo tribunal “a quo”, acaba o recorrente por a reconhecer como assente, firmando o objecto do seu recurso, apenas, na matéria de direito, onde diz que não se verifica, no caso, qualquer causa de exclusão da ilicitude.
Porém, da mesma decisão recorrida começa por sobressair, também, para além da arguição do recorrente, a falta de fundamentação crítica da matéria de facto que foi dada como não provada em A), ferindo aquela, assim, de nulidade, conforme o previsto nos artºs. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P. – diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem –, e cujo oficioso conhecimento sempre a esta instância de recurso se imporia.
Afinal, em que fundamentos se alicerçou o tribunal “a quo” para dar como não provado que o arguido agiu bem conhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta”?
Acaso, não está a conduta do arguido tipificada no art.º 199.º, n.º 1, als. a) e b) do Cód. Penal?
Não é o mesmo arguido advogado, em quem se presumem os necessários conhecimentos de direito para o exercício da respectiva actividade, designadamente que não lhe era permitido gravar as palavras do assistente nas circunstâncias em que o fez, nem, tão pouco, facultar a respectiva gravação às autoridades?
Acaso, não valorou previamente o arguido, necessariamente, como profissional experiente que é, as consequências da sua conduta, criando as condições que lhe permitissem poder ver excluída, supostamente, a respectiva ilicitude? É por demais evidente que sim!
Porém, sem que fundamentos credíveis e bastantes em tal sentido tivesse invocado, o tribunal “a quo” entendeu que não.
Ora, dispõe o art.º 205.º, n.º 1, da C.R.P. que as decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, são fundamentadas na forma prevista na lei.
Do mesmo modo, na materialização do referido preceito constitucional, também o art.º 97.º, n.º 4 (C.P.P.), dispõe que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
Segundo Eduardo Correia, in Revista do Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, “(…) a motivação da decisão é também imprescindível, entre outras razões, para favorecer o auto-controle dos juízes, designadamente, obrigando-os a analisar, à luz da razão, as impressões recolhidas no decurso da produção da prova, bem como para estimular a recolha jurisprudencial de regras objectivas de experiência e o respeito pela lógica e pelas leis da psicologia judiciária na apreciação das mesmas.
(…) Isto é, a fundamentação de facto e de direito da decisão judicial visa, primeiramente, garantir uma mais adequada ponderação da prova produzida, bem como do direito aplicável”.
Aquele justifica, ainda, a necessidade de fundamentação pela garantia assim dada à ponderação dos argumentos da defesa, do mesmo modo que constitui um elemento imprescindível ao exercício efectivo do direito ao recurso.
Por sua vez, Germano Marques da Silva, in Processo Penal”, diz que “é hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas, antes, pela razão que lhes subjaz.
(...) A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite o controle da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrole.
A ratio da exigência de fundamentação é a de submeter a decisão judicial a um maior controle por parte da colectividade e é também consequência da importância que assume no novo processo o direito à prova e à contraprova, nomeadamente o direito de defender-se, provando”.
Depois, reportando-nos ao acto processual porventura mais solene e exigente, que é a sentença, resulta do art.º 374.º, n.º 2, que a fundamentação da mesma se basta com uma exposição concisa, é certo, mas tão completa quanto possível, dos motivos de facto e de direito que a sustentam e que sobre as provas ponderadas na mesma haverá de incidir o respectivo exame crítico.
Sendo assim, o tribunal recorrido haveria de ter explicitado, em sede de fundamentação crítica da decisão, as razões da formação da sua convicção relativamente à matéria em causa, a qual, à luz das simples regras da experiência, haveria de ter sido valorada em sentido contrário. Porém, não o fez, pelo menos com a autonomia e a suficiência que se lhe exigiam, pelo que nula sempre haveria, também, de ser declarada a sentença recorrida.
Por outro lado, haver-se-á, igualmente, de concluir, ante as provas disponíveis, ter o tribunal “a quo” incorrido no vício do “erro notório na apreciação da prova”, quando se sabe que o agente é um “técnico de direito” no efectivo exercício das suas funções.
Efectivamente, sendo o arguido advogado, nunca o mesmo poderia ter agido desconhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta, que o é, inquestionavelmente, como bem o demonstra o Prof. Costa Andrade no “Parecer” com que foi instruído o presente recurso.
Visto aqui o “homem médio” na perspectiva do referido técnico de direito, pois que é nesse patamar que se sedia a discussão do tema em análise, haverá o mesmo de concluir que o tribunal “a quo” decidiu contra as regras da experiência, dando como provado o que não o poderia ter sido. Com os elementos probatórios constantes dos autos, quem é que, possuído dos elementares conhecimentos de direito e da prática judiciária, acredita que o arguido tenha agido desconhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta!?
Impõe-se, pois, concluir, que o tribunal errou, manifestamente, na apreciação que aqui fez da prova, valoração que agora importa corrigir, eliminando-se a al. A) da “Matéria de facto não provada”, cuja respectiva factualidade passa a integrar a al. JJ) da “Matéria de facto provada”, com a seguinte redacção: “O arguido agiu bem conhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta”, decisão esta que se profere à luz do art.º 426.º, n.º 1, “a contrario sensu”.
Porém, pese embora a matéria de facto que foi dada como comprovada pelo tribunal “a quo”, ainda assim, nunca, à luz da mesma, o arguido poderia ter sido absolvido. E, nesta parte, a tarefa mostra-se-nos particularmente facilitada com o “Parecer” do Exm.º Prof. Costa Andrade, com o qual o recorrente instruiu o recurso, e que aqui se sufraga na sua plenitude.
Dir-se-á que este estudo é fruto de uma “encomenda”, porventura até bem paga!
Contudo, ainda que assim seja, o mesmo é de uma autenticidade e evidência irrefutáveis, cujo conteúdo se impõe pela clareza de ideias, profundidade de conhecimentos e simples invocação da lei. Nunca, por certo, foi tão fácil emitir um “parecer”, designadamente com esta credibilidade e grau de aceitação!
É que, sendo inquestionável o preenchimento dos elementos típicos do crime de “gravações ilícitas” previsto no art.º 199.º, n.º 1, als. a) e b) do Cód. Penal, como é por demais evidente, à luz da própria letra da lei, não se verificam os pressupostos do invocado “direito de necessidade”, excludente da respectiva ilicitude.
Desde logo, o arguido não foi confrontado com uma qualquer situação de perigo. Este só existiria (se é que de perigo se poderia mesmo assim falar, nas apuradas circunstâncias) se ele próprio o criasse, indo ao encontro do assistente.
Ora, como está por demais comprovado, o arguido, que “adivinhou” os propósitos do assistente, não recusou o convite que se diz ter-lhe sido feito por este, antes o acolheu, munindo-se, até, do equipamento necessário para registar o acontecimento. Isto é, o arguido criou intencionalmente o suposto “perigo” e foi ao seu encontro, embora devidamente precavido!
Só que, como é entendimento pacífico, “na hipótese de criação de um perigo pré-ordenado à verificação do direito de necessidade não se justifica o facto”.
Por outro lado, o perigo tem que ser actual e iminente, o que, também, não é possível aqui conceber-se, em circunstância alguma. Tudo foi atempadamente criado, programado e prevenido pelo arguido!
Assim, não havendo perigo, ou tendo este sido criado intencionalmente pelo agente, como se entende ter sido o caso, não se pode falar em “conflito entre bens jurídicos”, pressuposto necessário para a verificação e invocação do tipo justificador.
Depois, pese embora os respectivos pressupostos hajam de ser cumulativos, sempre importa dizer que os demais também não se mostram aqui verificados.
Não há, desde logo, superioridade do interesse a salvaguardar, nem, tão pouco, como o exige a lei, sensível ou manifesta superioridade do mesmo. O “direito à palavra” e o “direito ao bom nome”, enquanto bens jurídicos pessoais que, aqui, hipoteticamente conflituariam, não merecem diferente valoração, particularmente nas circunstâncias dadas como comprovadas, onde tudo parece ser por demais duvidoso.
E porque assim se entende, também não se pode dizer que ao lesado (assistente) deva ser imposto suportar o sacrifício do seu “direito à palavra” para se salvaguardar o direito do arguido ao “bom nome”, como se exige, igualmente, no art.º 34.º, al. c).
Por tudo isto e com o demais expendido no douto Parecer do Exm.º Professor Costa Andrade, o qual, no essencial, se sufraga e aqui se dá por reproduzido nos seus termos e para os necessários efeitos, ante os factos também agora dados como comprovados, no reconhecimento do referido erro notório na apreciação da prova, e considerando-se, igualmente, sanado o vício da nulidade da sentença com a apreciação crítica aqui feita das provas e consequente diferente valoração das mesmas, têm-se como preenchidos todos os elementos do respectivo tipo, e, não ocorrendo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, condena-se, desde já, o arguido A..., como autor de um crime de gravações ilícitas, p. p. nos termos do art.º 199.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal, não se fixando a respectiva pena para não ser limitado àquele o direito ao recurso relativamente à mesma, pois que a decisão que nesse sentido fosse aqui proferida já não seria recorrível, violando-se, assim, o disposto no art.º 32.º, n.º 1, da C.R.P.
Deste modo, revogada a decisão recorrida, deverá o processo ser remetido à 1.ª instância para, após reabertura da audiência, nos termos do art.º 371.º, se necessário, se proceder à escolha e medida da pena.

3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em conceder provimento ao recurso, decidindo:
a) – Alterar a matéria de facto nos termos atrás expendidos;
b) – Revogar a decisão recorrida na parte em que absolveu o arguido da prática do crime que lhe havia sido imputado;
c) – Condenar o arguido A... pela prática de um crime de “gravações ilícitas”, p. p. nos termos do art.º 199.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal;
d) – Determinar que os autos sejam remetidos à 1.ª instância a fim de, com base na matéria de facto agora fixada, ser proferida a respectiva decisão condenatória.

Sem custas

Lisboa, 26 de Abril de 2012

Relator: Almeida Cabral;
Adjunto: Rui Rangel;