Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2509/09.1TBPDL-A.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Deve ser considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas.
A situação de insolvência da ora apelante é evidenciada pela dimensão do passivo reconhecido, sem que tenham ficado demonstrados pagamentos significativos, pela falta de informação em relação aos resultados da sua actividade, sabendo-se que não permitiram fazer face ao pagamento do passivo, e pela ausência de crédito, quer junto da banca, quer dos fornecedores.
E é particularmente evidenciada pela dimensão e antiguidade do crédito da ora apelada, pelo incumprimento quase total dos dois planos de pagamento da dívida que foram acordados entre as partes, sendo que o último já teve como contrapartida a extinção da instância em anterior processo de insolvência, e ainda pela inexistência de qualquer pagamento, ou proposta de pagamento deste crédito, posterior à instauração da presente acção.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Oxford..., SA., sociedade com sede na Rua ..., n.º.... Lisboa, pessoa colectiva n°...., veio requerer a declaração de insolvência de M..., Lda., pessoa colectiva n.º ..., com sede na Rua ..., n°s... Ponta Delgada, ao abrigo do disposto nos art. 3°, 20° e 25° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Alegou, para o efeito, que:
1. No exercício da sua actividade comercial, entre 21-01-2005 e 19-04-2007, vendeu e entregou à requerida, a solicitação desta, que as aceitou, várias mercadorias no valor total de €112.039,50, tendo emitido duas notas de crédito a favor da mesma no valor total de € 263,00;
2. A requerida pagou, por conta desta dívida, o montante de €2.163,10.
3. Em 29-05-2008 as partes acordaram no pagamento da dívida, fixada no montante de €109.628,28, em 44 prestações mensais, de € 2.500,00 cada, de que a requerida apenas pagou as primeiras três.
4. Foi, então, pedida a declaração de insolvência da requerida, acção que findou com um novo acordo de pagamento da dívida, consolidada em € 104.000,00, em 35 prestações, sendo as primeiras 34 de € 3.000,00 cada, e a última de € 2.000,00.
5. Mas só foi paga uma prestação de € 3.000,00, e não lhe foi efectuado qualquer outro pagamento.
6. A requerida não beneficia de crédito, quer dos fornecedores, quer da banca e cessou dos pagamentos à generalidade dos seus credores, não dispondo de activo suficiente que lhe permita proceder ao pagamento de todas as suas dívidas;
7. Contra a requerida foram propostas diversas acções executivas, identificando nove, com pedidos já liquidados no montante global de € 53.371,94.
Citada a requerida respondeu, alegando em suma:
1. Reconhece a sua dívida para com a requerente e pretende pagá-la, não o fazendo antes porque a requerente, que era o principal fornecedor da requerida há mais de trinta anos, deixou de lhe fornecer mercadoria.
3. Tem pago a alguns dos credores e que mantém o seu estabelecimento aberto e em actividade;
4. Tem vindo a proceder à sua reestruturação com eliminação ou redução de custos no que toca ao seu funcionamento, bem como de marketing, publicidade, viaturas, seguros, telecomunicações, etc., bem como na redução de postos de trabalho e do ordenado dos gerentes, estando em negociações para a venda de um dos estabelecimento e, com o montante obtido, efectuar o pagamento aos credores, entre eles a requerente.
Tem um stock de mercadorias no valor de € 195.728,61.
Juntou documentos e uma relação com os seus 5 maiores credores, não incluindo a requerente.

Realizado o julgamento e fixada, sem reclamação, a matéria de facto, foi proferida decisão a declarar a insolvência da requerida.

Inconformada, esta apelou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:
1 – A situação económica/financeira da Ré, embora não seja a melhor, está, porém, longe da insolvência.
2 – Com efeito, a empresa tem vindo mesmo a reduzir despesas e o passivo nos últimos três anos, com a redução de pessoal e os inerentes encargos para a Segurança Social, os quais se traduziram ao longo dos anos no contínuo avolumar da dívida para com este, que só por si representa mais que a soma dos 4 restantes maiores credores da Ré, com exclusão do crédito da A.
3 – A R. tem todo o seu passivo negociado.
4 – O total em dívida das acções e execuções movidas à R., é neste momento de apenas 14.027,18 €.
5 – A R. não tem qualquer penhora sobre o estabelecimento ou qualquer dos elementos que o integram.
6 – Com a redução dos custos com o pessoal, a renovação das colecções, a redução do numero dos fornecedores e a aposta na venda de duas ou três marcas conceituadas, aliadas à excelente e privilegiada localização dos estabelecimentos no coração da cidade permitem legitimamente poder pensar-se na recuperação económica e continuidade da R. no mercado,
7 – Até porque os valores de mercado da eventual cedência dos estabelecimentos da Ré oscilam, um entre os 110.000,00 € e os 135.000,00 € e o outro entre os 300.000,00 € e os 350.000,00 €, o que aliado às existências de 195.718,58 € a que acrescem pelo menos 30% de lucro, no caso mais 58.718,58 €, permitem pensar-se numa situação difícil é certo, mas activa do património da Requerida.
8 – Assim não o tendo entendido, a douta sentença recorrida violou entre outros o disposto nos arts. 1.°, 2.°n.°1 alínea a), 3.° n.° 1, 20 n.°1 alínea. a) e h) e 30.° n.° 5 do CIRE.
A apelada contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, está em causa na presente apelação saber se a ora apelante não se encontra em situação de insolvência.
***
Nas suas alegações a apelante começou por impugnar a decisão sobre matéria de facto, pretendendo que devem ser julgados provados os pagamentos que alegou. E, sem formular, a esse propósito, quaisquer conclusões, incluiu no texto destas factos que não foram considerados na decisão recorrida.
Neste momento considera-se dispensável o convite à formulação de conclusões, pois que redundaria num acto inútil, na medida em que se nos afigura que a matéria de facto impugnada – traduzida em alegados pagamentos a alguns credores com acções intentadas – é insusceptível de alterar a sorte da presente acção, julgando-se incontornável a confirmação da decisão recorrida.
Ainda assim, irá proceder-se à apreciação da impugnação deduzida, substituindo as conclusões que faltam pelo texto das próprias alegações, do seguinte teor:
«Da impugnação da matéria de facto
Dá o Tribunal como provados que contra a Requerida foram instaurados os seguintes processos executivos:
- MARIA ... & C.ª LIMITADA
O pagamento da dívida de 11.031,57 € foi negociado em prestações de 300,00 € mensais.
- DIM ..., LDA
A dívida no valor de 6.832,37 € está extinta.(Doc. 1)
- AL..., LDA
A dívida de 6.209,40 € está paga. (Doc. 2)
- JITS..., LDA.
Da dívida de 3.917,56 € falta pagar 1.509,07 € (Doc.4)
- CONFECÇÕES..., LDA.
A dívida de 3.237,82 € foi paga antes da entrada do processo no Tribunal. (Doc. 3)
- MACEDO.., LDA.
A dívida de Macedo & Salgado, Lda. no valor de 2.757,18 € está negociada tendo sido já pago o valor de 1.100,00 €.
- J. M. ... & C.a LDA.
A dívida no valor de 2.353,32 € está paga. (Doc. 5)
- MC...
A dívida no valor de 13.282.72 € está paga.
- MR
Desconhece a R. este fornecedor e a pretensa dívida de 3.750,00 E.
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De tudo resulta que mesmo considerando que a R. nada houvesse pago, e pagou, a soma dos valores reclamados nas diversas acções e execuções supra referenciadas atinge a quantia de53.371,94 €, ou seja, sensivelmente metade da quantia em dívida à A. Oxford. * * *
Acontece porém que a verdade é que a dívida em processos em contencioso contra a R. está negociada, sendo nesse momento de apenas 14.067,18E.
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Não existe qualquer penhora sobre o estabelecimento ou qualquer dos seus elementos.
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Por isso, entendemos que o Tribunal não podia deixar de dar como provados os pagamentos efectuados pela Ré, a pouca expressão da dívida em contencioso além do grande esforço e preocupação na sua redução.»
Ou seja, a apelante pretende ter feito prova de determinados pagamentos com os documentos que juntou com a respectiva alegação, insistindo agora em vê-los julgados provados, sem discutir quaisquer meios de prova.
Alega ainda a inexistência de qualquer penhora sobre o estabelecimento, ou qualquer dos seus elementos.
Vejamos:
A primeira dúvida que se coloca, respeita à idoneidade da impugnação assim deduzida. Pois que, admitindo-se que se mostrem suficientemente identificados os factos que a apelante assim pretende ver julgados provados, não foi feita qualquer discussão dos meios de prova em que a pretensão da apelante se funda. E, nos termos do art. 685.º-B, n.º 1, al. b) do CPC, a impugnação da decisão sobre matéria de facto não se basta com a indicação dos meios de prova, tornando-se necessária a sua apreciação crítica, no sentido de evidenciar o erro de julgamento.
Sendo que em relação à questão da inexistência de penhora, trata-se mesmo de matéria nova, só invocada nas alegações. Matéria que, nem sequer pode ser considerada relevante, uma vez que o que releva é a dimensão dos valores do activo e do passivo, que não se altera em função de eventuais penhoras.
Independentemente disso, julga-se que não pode ser reconhecida razão à apelante, ao menos na maior parte da matéria assim alegada, uma vez que os documentos juntos para prova da mesma, com excepção de dois recibos, procedem da própria requerida, tratando-se de extractos de conta de fornecedores por ela elaborados. Segundo se julga, aqueles documentos não permitem, por si sós, julgar provado qualquer facto.
Quanto às duas cópias de recibos, admitindo-se que tenham sido extraídas dos respectivos originais, as mesmas permitiriam julgar provada a efectivação do pagamento da quantia de € 1.100,00, no âmbito de um processo executivo.
Mas, sendo este o único facto susceptível de ser dado provado, e não se mostrando juntos os originais dos documentos, julga-se que não se justifica ir mais longe nessa indagação. Pois que o pagamento da quantia de € 1.100,00, efectuado em duas prestações, no âmbito de uma acção executiva, acaba por ser irrelevante quando confrontado com a dimensão e a antiguidade do passivo da requerida. Em vez de evidenciar a inexistência de impossibilidade de a requerida cumprir as suas obrigações vencidas, confirma essa impossibilidade, ou seja, a situação de insolvência.
De resto, e como já acima se observou, nem todos os pagamentos alegados pela requerida, se provados, seriam suficientes para alterar o juízo de insolvência que resulta da restante matéria de facto provada, onde ainda faltou anotar que as facturas de que emerge o crédito da ora apelada se venceram de 26-03-2005 a 18-06-2007, há, portanto, muito tempo.
A matéria de facto é, pois, a fixada na decisão recorrida, para onde agora se remete, nos termos do art. 712.º, n.º 6 do CPC.
O Direito
Como se viu, está em causa na presente apelação saber se a ora apelante não se encontra em situação de insolvência.
Nos termos do art. 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, (CIRE), aprovado pelo DL n.º 53/2004 DE 18-03, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Devendo ser entendido que a caracterização desta situação de insolvência não requer a impossibilidade absoluta, ou definitiva, de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, bastando-se com a impossibilidade do seu cumprimento pontual.
É certo que na definição actual da “situação de insolvência”, constante deste art. 3.º do CIRE, foi suprimida a referência à pontualidade do cumprimento, que constava da anterior redacção do correspondente preceito do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, (CPEREF), aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23-04, mas essa alteração não deve ser entendida como traduzindo uma alteração do conceito de falência/insolvência, há muito consolidado no nosso ordenamento jurídico.
Desde logo, é isso que resulta do art. 20º do CIRE, onde se enunciam os factos que legitimam, em geral, o pedido de declaração de insolvência. Em particular, prevê-se na al. b) do seu n.º 1 que a declaração de insolvência pode ser requerida no caso de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Depois, e em geral, parece seguro que ao conceito de cumprimento é inerente a ideia de pontualidade. Só o cumprimento pontual pode ser considerado cumprimento efectivo da obrigação, consubstanciando a situação de mora uma modalidade de não cumprimento.
Neste sentido podem ver-se Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2005, em anotação ao art. 3.º.
Posto isto, julga-se que da matéria de facto assente nos autos resulta claramente que a ora apelada está impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas.
O que é evidenciado pela dimensão do passivo reconhecido, sem que tenham ficado demonstrados pagamentos significativos, pela falta de informação em relação aos resultados da actividade desenvolvida pela requerida, sabendo-se que não permitiram fazer face ao pagamento do passivo, e pela ausência de crédito, quer junto da banca, quer dos fornecedores.
E é particularmente evidenciada pela dimensão e antiguidade do crédito da ora apelada, pelo incumprimento quase total dos dois planos de pagamento da dívida que foram acordados entre as partes, sendo que o último já teve como contrapartida a extinção da instância em anterior processo de insolvência, e ainda pela inexistência de qualquer pagamento, ou proposta de pagamento deste crédito, posterior à instauração da presente acção.
Sendo que, como já se referiu, a situação de insolvência basta-se com impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
A decisão recorrida não merece, pois, a censura que lhe vem endereçada, devendo ser antes confirmada.
Termos em que se acorda em julgar improcedente a presente apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa, 20-05-2010
(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins)