Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
85/21.6PDAMD.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: OBJECTO DO PROCESSO
VINCULAÇÃO TEMÁTICA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
CRIME DIVERSO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
PENA
REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: –De acordo com o princípio acusatório, a acusação deduzida define e fixa o objecto do processo, exigindo-se uma necessária correlação entre a acusação e a decisão, definindo e delimitando o objecto do processo, fixando o thema decidendum, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal.

–Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade.

–A observância destes princípios constitui uma exigência da salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido.

–O processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos, o que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio.

–A expressão «crime diverso» contida na alínea f) do artigo 1.º não corresponde à de «diferente tipo legal de crime», no sentido substantivo, não existindo, a nosso ver, crime diverso quando os factos novos pertencem ao mesmo “facto histórico unitário” e se mantém o bem jurídico protegido ou o bem jurídico protegido pelo tipo criminal imputado na acusação abranger o protegido pelo tipo criminal resultante dos factos novos.

–O crime de tráfico de menor gravidade, imputado ao arguido na acusação, abrange, na definição do tipo objectivo, um largo espectro de condutas, que vai do cultivo à simples detenção de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas indicadas no respectiva disposição legal pelo que num quadro, em que a detenção para consumo surge no «fundo da escala» de ofensividade dos bens jurídicos, a mera especificação do destino da “droga” detida, configurando uma alteração factual, não tem o alcance de conduzir à imputação de um crime diverso.

–Não pode ser acolhida a posição do Ministério Público que não tem em conta a circunstância de estar em causa um recurso interposto pelo arguido, de sentença com a qual o Ministério Público junto da 1.ª instância se conformou, razão por que jamais a pena aplicada poderá sofrer agravação, ainda que a sentença fosse anulada ou se ordenasse o reenvio, por força da aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.–No processo abreviado n.º 85/21.6PDAMD, procedeu-se ao julgamento de HB, mais completamente identificado nos autos, a quem foi imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela anexa I-C, após o que foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«Em face do exposto, julga-se a acusação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:
a)-absolve-se o arguido HB da prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21°, n° 1, e 25°, alínea a), do Decreto-Lei n° 15/93, de 22/01, por referência à Tabela anexa I-C, que lhe vinha imputado;
b)-condena-se o arguido HB, como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40°, n° 2, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-C anexa, na pena de 6 (seis) meses de prisão, a qual, nos termos do disposto no artigo 50°, n°s 1 e 5, do C. Penal, se suspende na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sujeita a regime de prova, nos termos do artigo 53°, n°s 1 e 2, e 54°, ambos do C. Penal, mediante plano individual de readaptação social, nos termos a definir de acordo com o plano a elaborar pelos Serviços de Reinsercão Social competentes, mas com frequência obrigatória de programa de sensibilização para comportamentos aditivos;
(…).»

2.O arguido recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1.O arguido recorre da sentença proferida nos presentes autos em 20.04.2022, que o condenou na pena de seis meses de prisão suspensa na sua execução pela prática como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40°, n° 2, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-C anexa.
2.Apesar de ter considerado que o estupefaciente apreendido se destinada ao consumo exclusivo do arguido, que o consumia várias vezes ao dia, o que fez com base nas declarações do arguido que considerou credíveis, o Tribunal a quo socorreu-se de forma automática e matematicamente da tabela constante da portaria n° 94/96, de 26 de Março e considerou que a aplicação dos limites inscritos no mapa anexo era automática, sendo irrelevante o apuramento do efetivo consumo médio de cada arguido, já que o limite fixado na Portaria não é derrogável.
3.As quantidades máximas fixadas no mapa anexo ao referido diploma legal não são de aplicação automática, nem vinculativa, podendo ser afastadas através de outros elementos apurados em julgamento e que levem à conclusão sobre as quantidades efetivamente consumidas pela pessoa que se encontra a ser julgada.
4.Os valores determinados nos exames periciais e os limites fixados na Portaria 94/96, de 26-03 de que se socorreu o Tribunal a quo, servem para fixar o valor de referência no caso concreto quando dos autos não resultarem elementos de prova sobre o consumo médio individual do arguido, mas já não para os casos em que existe prova divergente quanto ao consumo médio diário do agente.
5.Em sede de audiência foi até perguntado ao arguido qual o consumo médio individual daquele, tendo aquele respondido e sido produzida prova que afastava os limites resultantes do mapa anexo à mencionada Portaria, prova essa que o Tribunal não podia ignorar, tanto mais que considerou as declarações do arguido genericamente credíveis, não ficando abaladas por qualquer elemento probatório idóneo que as contrariasse e levou mesmo aos factos provados que o arguido consumia várias vezes por dia.
6.O Tribunal a quo, tendo perguntado ao arguido sobre os seus consumos médios, não só ignorou depois em sede de sentença a prova dai resultante, apenas dando como provado que o arguido consumia várias vezes por dia, como, ao fazer aplicação automática dos valores constantes da tabela anexa à portaria, entendeu que nem lhe era lícito levar a cabo tal ponderação no caso concreto.
7.A sentença recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na al. a) do art. 410°, n.° 2 do C.P.P., porquanto a factualidade provada não permitia fundamentar a solução de direito adotada, tendo o tribunal a quo deixado de apurar matéria relevante para a decisão, vício esse que deverá levar ao reenvio parcial, do processo para novo julgamento (art. 426°, n° 1 do C. Processo Penal) quanto a esta concreta questão.
8.Olhando à sentença recorrida constata-se do elenco dos factos provados e bem assim da fundamentação quanto à convicção do Tribunal que, no que concerne à questão do consumo do arguido recorrente este foi perguntado especificamente sobre essa matéria, tendo sido mesmo feita referência à prova resultante das declarações do próprio arguido e ao depoimento dos agentes policiais que o detiveram, prova essa que o Tribunal a quo não desvalorizou, conferindo-lhe mesmo credibilidade.
9.Sendo a questão do consumo médio diário do arguido suscitada em julgamento, e tendo relevo para a decisão da causa, por poder suscitar a divergência quanto aos valores de referência - precisamente por não serem inderrogáveis, automáticos ou imperativos -, o Tribunal a quo, em cumprimento do disposto no art. 368.°, n.° 2, do CPP, tinha de ter elencado entre os factos provados ou entre os não provados o consumo diário alegado pela Defesa do arguido.
10.A decisão recorrida enferma por isso, de vício de lógica na sua elaboração, na modalidade de erro notório na apreciação da prova (art. 410.°, n.° 2, al. c), do CPP), porquanto alguns meios de prova, para efeitos de apuramento do quantitativo do consumo médio individual do recorrente, foram desconsiderados, sem chegarem sequer a ter sido ponderados nessa perspetiva, por o Tribunal a quo ter entendido, incorretamente, que não se lhe impunha realizar essa avaliação.
11.Vício esse que expressamente se argui e determina, de acordo com o disposto no art. 426°, n.° 1 do C.P.P. o reenvio parcial do processo para novo julgamento quanto à questão do consumo médio diário individual do recorrente, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.°-A do C.P.Penal e com intervenção de diferente magistrado judicial.
12.Tendo em atenção as circunstâncias referidas na decisão recorrida e levadas em conta pelo Tribunal a quo para a determinação da medida da pena aplicada, é manifesto que a medida da pena concreta aplicada ao arguido se mostra excessiva, não tendo o Tribunal valorado corretamente os critérios levados ao art.° 71° n.°s 1 e 2 do Código Penal, dispositivos que violou.
13.Termos e fundamentos por que, em respeito por uma correta valoração dos critérios levados aos arts. 71°, n°s 1 e 2, deverá ser alterada a concreta medida da pena aplicada ao arguido, por excessiva, mostrando-se justa e adequada a sua condenação em pena de multa.
Em face do exposto, ponderando toda a argumentação supra, deverão, V. Exas. conceder provimento ao recurso e, consequentemente, REVOGAR a Decisão Recorrida:
a)-Determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento atento o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na al. a) do art. 410°, n.° 2 do C.P.P.,
b)-Considerar verificada a existência de erro notório na apreciação da prova (art. 410.°, n.° 2, al. c), do CPP), determinando o reenvio parcial do processo para novo julgamento quanto à questão do consumo médio diário individual do recorrente
b)-Caso V. Ex.as persistam na condenação do arguido, ainda assim, deverá ser alterada a concreta medida da pena aplicada ao arguido, por excessiva, mostrando-se justo e adequado a aplicação ao arguido de pena de multa
Assim se fazendo
JUSTIÇA.

3.O Ministério Público apresentou resposta em que sustenta que o recurso não merece provimento, concluindo (transcrição das conclusões):
1.Nos presentes autos foi o ora recorrente HB, condenado, como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40°, n° 2, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-C anexa, na pena de 6 (seis) meses de prisão, a qual, nos termos do disposto no artigo 50°, n°s 1 e 5, do C. Penal, se suspende na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sujeita a regime de prova, nos termos do artigo 53°, n°s 1 e 2, e 54°, ambos do C. Penal, mediante plano individual de readaptação social, nos termos a definir de acordo com o plano a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social competentes, mas com frequência obrigatória de programa de sensibilização para comportamentos aditivos;
2.Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso alegando que a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na al. a) do art. 410°, n.° 2 do C.P.P., porquanto a factualidade provada não permitia fundamentar a solução de direito adotada, tendo o tribunal a quo deixado de apurar matéria relevante para a decisão, vício esse que deverá levar ao reenvio parcial, do processo para novo julgamento (art. 426°, n° 1 do C. Processo Penal) quanto a esta concreta questão.
3.E acrescentando que apesar de ter considerado que o estupefaciente apreendido se destinada ao consumo exclusivo do arguido, que o consumia várias vezes ao dia, o que fez com base nas declarações do arguido que considerou credíveis, o Tribunal a quo socorreu-se de forma automática e matematicamente da tabela constante da portaria n° 94/96, de 26 de Março e considerou que a aplicação dos limites inscritos no mapa anexo era automática, sendo irrelevante o apuramento do efetivo consumo médio de cada arguido, já que o limite fixado na Portaria não é derrogável.
4.Mais alegou o recorrente que o Tribunal a quo, tendo perguntado ao arguido sobre os seus consumos médios, não só ignorou depois em sede de sentença a prova dai resultante, apenas dando como provado que o arguido consumia várias vezes por dia, como, ao fazer aplicação automática dos valores constantes da tabela anexa à portaria, entendeu que nem lhe era lícito levar a cabo tal ponderação no caso concreto, pugnando pelo reenvio parcial do processo para novo julgamento quanto à questão do consumo médio diário individual do recorrente, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.°-A do C.P.Penal e com intervenção de diferente magistrado judicial e que a medida da pena concreta aplicada ao arguido se mostra excessiva, não tendo o Tribunal valorado correctamente os critérios levados ao art.° 71° n.°s 1 e 2 do Código Penal, dispositivos que violou.
5.Entende o Ministério Publico que a pretensão do ora recorrente carece de fundamento, não merecendo a douta sentença recorrida qualquer reparo.
6.Independentemente da derrogabilidade da norma, facto é que o arguido, quando interrogado, não foi firme e objectivo quanto à quantidade diária consumida, limitando-se a referir em determinado momento que a quantidade que detinha seria para a semana toda, que acreditava que se tratavam de cinco gramas, e noutro ponto que consumia cerca de duas ou três vezes por dia, sem especificar a quantidade concreta do produto consumido, sendo estas afirmações são de tal forma vagas, que não permitem ao Tribunal considerar provado qualquer destes factos não podendo por isso, a sentença enfermar do vicio que o recorrente diz padecer.
7.Bem considerou o Tribunal que o arguido consumia várias vezes por dia, facto este que foi possível concluir das declarações do arguido, e não outro que permitisse colocar em causa aquela tabela.
8.Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, importa atender à culpa do agente e às exigências de prevenção - art. 71.°, n.° 1, do CP sendo, nomeadamente, as circunstâncias gerais enunciadas no n.° 2, deste inciso, relevantes, quer para a culpa, quer para a prevenção.
9.Ou seja, o Tribunal antes de decidir pela aplicação da pena em concreto a aplicar, ponderou criteriosamente, as possibilidades de substituição por outras como previsto na lei, tendo deliberadamente optado por não aplicar as agora requeridas pela Recorrente, porquanto não se mostravam adequadas às finalidades da punição, tal como demonstrou na fundamentação da sentença recorrida.
10.Assim, da análise da sentença recorrida afigura-se-nos que a pena imposta ao arguido foi criteriosamente escolhida e doseada, não merecendo qualquer reparo por se considerar justa e adequada.
11.Face ao supra exposto, deve a decisão recorrida ser mantida por não ter violado qualquer disposição legal, negando-se assim provimento ao recurso.
                                                                      
4.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que deveria ter sido cumprido o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P., e de que a pena de prisão aplicada deveria ser de prisão efectiva, enfermando a sentença, na parte relativa à pena, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

5.Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação

1.Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, identificamos como questões colocadas no recurso as seguintes:
- dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova;
- da determinação da pena – que o recorrente entende excessiva.
O Ministério Público na Relação coloca as questões do alegado incumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P. e de que a pena de prisão aplicada deveria ser de prisão efectiva, entendendo que enferma a sentença, na parte relativa à pena, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2.Da sentença recorrida

2.1.-O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (com correcção da enumeração sucessiva das alíneas):
a)- No dia 07/02/2021, cerca das 09h20, no Bairro ... ... ....., A_____ o arguido detinha na sua posse um pacote contendo no seu interior produto vegetal, denominado Cannabis com o peso líquido de 6,324 gramas, com um grau de pureza de 23,2% THC, a que correspondiam 29 doses individuais.
b)-O arguido conhecia as características e natureza estupefaciente da substância que detinha e, mesmo assim, decidiu adquiri-la e detê-la na sua posse.
c)-Em tudo o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram criminalmente punidas por lei.
d)-Na data supra referida o arguido era consumidor regular de "haxixe", desde os 16 anos de idade, procedendo a tal consumo várias vezes por dia, o que já não ocorre.
e)-O arguido destinava as quantidades de produtos estupefacientes referidas supra ao seu exclusivo consumo.
f)-O arguido encontra-se detido no Estabelecimento Prisional de Sintra em cumprimento da pena de prisão efectiva de 1 ano e 3 meses, que lhe foi aplicada no âmbito do processo n° 803/20.0PDAMD deste Juízo Local Criminal da Amadora (J2), o que ocorre desde 27/05/2021, estando o respectivo termo previsto para o dia 26/08/2022, tendo sido condenado em tais autos pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, cometido em 30/09/2020, por sentença transitada em julgado em 05/05/2021.
g)-Antes da sua detenção o arguido exercia actividade laboral como armador de ferro, do que auferia cerca de 1 000,00 € mensais.
h)-Residia com colegas de trabalho em quarto arrendado por uma renda mensal de 300,00 €.
i)-O arguido tem uma filha, de 13 anos de idade, a qual reside com respectiva progenitora na Guiné-Bissau.
j)-Possui, como habilitações literárias, o equivalente, na Guiné-Bissau, ao 6° ano de escolaridade.
l)-Além da condenação acima referida, o arguido possui outras condenações criminais registadas:
-foi condenado, por sentença transitada em julgado em 09/02/2015, pela prática, em 19/10/2011, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento;
-foi condenado, por sentença transitada em julgado em 21/10/2016, pela prática, em 05/04/2016, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento;
-foi condenado, por sentença transitada em julgado em 06/07/2017, pela prática, em 29/01/2017, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos de prisão, substituída por 480 horas de trabalho, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento; e
-foi condenado, por sentença transitada em julgado em 03/05/2018, pela prática, em 17/03/2018, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 80 dias de multa, posteriormente declarada extinta pelo cumprimento.

2.2.Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Não se provou que o arguido destinasse o produto estupefaciente que detinha para venda, cedência ou consumo de terceiros, visando com isso obter proveitos económicos.

2.3.O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

O Tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos considerados provados, na ponderação do conjunto da prova, designadamente na conjugação do teor do auto de notícia de fls. 3-4, auto de apreensão de fls. 7, teste rápido de fls. 9 e exame pericial de fls. 49, conjugados e complementados tais elementos com as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento, no âmbito das quais reconheceu, no essencial, a prática dos factos que lhe eram imputados, assim se formando a convicção do Tribunal quanto à factualidade dada como provada.
Por outro lado, as declarações do arguido no que concerne à circunstância de, na data dos factos, ser consumidor habitual de estupefaciente como o encontrado na sua posse mostraram-se genericamente credíveis, não ficando abaladas por qualquer elemento probatório idóneo que as contrariasse, o que sucedeu igualmente no que concerne ao por si alegado quanto ao destino que pretendia dar a tal produto, isto é, verbalizando que o destinava exclusivamente para o seu próprio consumo e não para cedência ou venda a terceiros.
De resto, teve-se ainda em conta os depoimentos de F. P. e R., todos agentes da PSP, os quais, de modo espontâneo, coerente e detalhado, confirmaram ter participado na abordagem e fiscalização do arguido na data dos factos, corroborando o teor dos supra mencionados autos de notícia e de apreensão e restante documentação anexa, sendo que patentearam não terem assistido à prática de qualquer acto daquele tendente a indiciar que tal destino fosse diverso, nomeadamente a cedência ou venda a terceiros.
Por conseguinte, face a tal contexto probatório, além da factualidade dada como provada, patenteou-se ao Tribunal que não resultou provado que o referido destino para os produtos estupefacientes fosse o descrito na acusação, motivo pelo qual tal factualidade resultou como não provada.
No tocante à factualidade atinente à situação pessoal e económica do arguido, o Tribunal fundou-se igualmente nas suas próprias declarações, igualmente credíveis nesta parte.
E quanto aos seus registos criminais do arguido, o Tribunal atendeu ao teor do CRC junto aos autos.

***
3.Apreciando

3.1.Relativamente à questão do alegado incumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P., invocada pelo Ministério Público nesta Relação, entendemos que não se verifica a correspondente nulidade.
O arguido foi acusado da prática de crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01.
De acordo com o princípio acusatório, a acusação deduzida define e fixa o objecto do processo, exigindo-se uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. Essa correlação traduz-se na exigência de que, definido o objecto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua actividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal. Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade.
A observância destes princípios constitui uma exigência da salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido. Compreende-se que, se ao tribunal fosse permitido modificar o objecto do processo e conhecer para além dele, o arguido poderia ser confrontado com novos factos e novas incriminações que não tomara em conta aquando da preparação da sua defesa, não sendo de exigir ao arguido – que se presume inocente – que antecipe e preveja todas as imputações possíveis, independentemente da concreta acusação que contra si foi deduzida.
Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) define e delimita o objecto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objecto, não podendo o tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites, o que constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.
No entanto, como refere Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273).
O processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos. Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem.
O que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio, remetendo-nos para a magna questão da definição do objecto do processo e das condições em que a conformação dos factos constantes da acusação pode ser alterada.
O C.P.P. distingue, no âmbito da alteração dos factos, as situações em que a alteração é substancial daquelas em que não é substancial.
O artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P., define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

As disposições fundamentais a considerar, na fase do julgamento, no tocante a esta matéria, são os artigos 358º e 359.º do C.P.P.

Estatui o artigo 358.º, relativo à alteração não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia:
«1.Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente para a preparação da defesa.
2.Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3.O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.»

O artigo 359.º reporta-se, por seu turno, à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tendo sofrido relevantes alterações com a revisão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estabelecendo a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis.

Salienta o S.T.J., em acórdão de 21 de Março de 2007 (processo 07P024, www.dgsi.pt):
«Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.
É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal para “alteração substancial dos factos”, que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.»

Sobre o alcance do conceito de “alteração substancial dos factos” pronunciou-se também a Relação do Porto, em acórdão de 23 de Maio de 2007 (processo 0513936, www.dgsi.pt).

Disse, então, a Relação:
«Fixemo-nos na imputação de crime diverso.
Como se referiu, o objecto do processo, melhor diríamos, da acusação, que vincula tematicamente o tribunal, é constituído por aquele facto naturalístico que se discute, situado no passado, com a sua identidade, imagem e valoração social, que viola bens jurídicos penalmente tutelados, e por cuja prática o agente é alvo de censura.
No conceito há uma relação dialéctica entre facto e crime.
Por outro lado, nos termos do n.º 4 do art.º 339.º, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação; os factos alegados pela defesa; os factos que resultarem da prova produzida em audiência; as soluções jurídicas pertinentes, em obediência ao princípio da verdade material.
Tendo a discussão da causa esta amplitude, pode acontecer que:
a)- Da discussão da causa resulte adição ou modificação dos factos constantes da acusação, sem intervenção da entidade acusadora;
b)- O arguido não tenha oportunidade de se defender de todos os factos apurados, violando-se o princípio que lhe consagra todas as garantias de defesa.
Ora, conhecido o conceito de facto e a sua relação dialéctica com o tipo legal; conhecido o thema decidendum; conhecido o objecto do processo; e conhecidas ainda as razões porque não pode ser modificado o objecto do processo, cremos estar em condições de encontrar critérios que nos permitam afirmar se há ou não alteração substancial dos factos.
Cremos poder afirmar que se imputa ao arguido um crime diverso quando:
1.- Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo;
2.- Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social;
3.- Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade.
O critério normativo – é disso que se trata – encontrado só fica completo quando se fizer a previsão das situações em que o arguido não teve oportunidade de se defender dos novos factos, com relevância jurídico-penal.
Assim, importa acrescentar que, para efeitos de alteração substancial dos factos, imputa-se ao arguido um crime diverso quando:
4.- O arguido não teve oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos.
Nos termos da 2ª parte da alínea f) do n.º 1 do art.º 1º, estamos ainda perante uma alteração substancial dos factos quando:
5.- Por força da modificação ou aditamento de novos factos, resulte o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao arguido (…)»

Saliente-se que a expressão «crime diverso» contida na alínea f) do artigo 1.º não corresponde à de «diferente tipo legal de crime», no sentido substantivo, não existindo, a nosso ver, crime diverso quando os factos novos pertencem ao mesmo “facto histórico unitário” e se mantém o bem jurídico protegido ou o bem jurídico protegido pelo tipo criminal imputado na acusação abranger o protegido pelo tipo criminal resultante dos factos novos.

O crime de tráfico de menor gravidade imputado ao arguido na acusação abrange, na definição do tipo objectivo, um largo espectro de condutas, que vai do cultivo à simples detenção de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas indicadas no respectiva disposição legal.

A acusação imputa ao arguido a detenção de canabis com o peso líquido de 6,324 gramas, com um grau de pureza de 23,2% THC, a que correspondiam 29 doses individuais.

O único elemento que a sentença aditou foi o da destinação ao consumo exclusivo do arguido.

Mantém-se, assim, o núcleo essencial dos factos – a detenção pelo arguido do produto estupefaciente -, sendo que a especificação da finalidade dessa detenção – o consumo pessoal -, a nosso ver, não é desfiguradora do objecto do processo.

Admitimos que se possa discutir a questão da identidade do bem jurídico protegido, na base da contraposição entre saúde pública e saúde individual, saúde de um número indefinido e indeterminado de pessoas e saúde de uma pessoa determinada.

Tem-se entendido que mediante os ilícitos de tráfico (artigos 21.º, 24.º, 25.º e 26.º do Decreto-Lei n.º 15/93) tutela-se a saúde pública da comunidade, nas suas múltiplas facetas, que vai desde a preservação da vida, da integridade física e psíquica, até à protecção da própria liberdade e autonomia de cada indivíduo, acautelando-se ainda a preservação da vida em sociedade.

Porém, a incriminação do consumo não deixa de afirmar um valor, a saber: o consumo de substâncias estupefacientes não é um puro problema privado, constituindo um perigo para a paz pública e uma actividade socialmente danosa.

Como se disse no Acórdão do S.T.J. n.º8/2008, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 150, de 5 de Agosto de 2008, existe uma «boa razão» para «levar o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com fundamentos vários, decidiu despenalizar: o perigo de a droga adquirida para consumo próprio, quando superior às necessidades pessoais mais urgentes (as dos 10 primeiros dias), vir a ser «oferecida», «posta à venda», «vendida», «distribuída», «cedida», «exportada» ou, por qualquer título, «proporcionada a outrem».

Daí a justificação que o S.T.J. encontra para a criminalização do consumo, no contexto de condutas que, “conquanto originariamente destinadas ao consumo próprio, «fomentem ou possibilitem o consumo (alheio)», como será o caso do cultivo de drogas ilícitas ou a sua aquisição ou detenção em quantidades que manifestamente excedam as «necessidades próprias» quotidianas”, sendo “legítimo identificar como fundamento e âmbito da incriminação (de perigo abstracto) a possibilidade de outras pessoas acederem à droga”.

Assim, afigura-se-nos que os bens jurídicos tutelados pela incriminação do consumo se contêm no âmbito mais vasto dos bens jurídicos tutelados pelo tráfico.

Como se realça no citado acórdão do S.T.J., o tráfico, como é hoje definido, «abrange condutas que exibem um grau diverso de ofensividade» dos bens jurídicos que visa proteger [«o que nele existe de eticamente censurável não é tanto o facto de ele ser um elo de uma cadeia de riscos [...] mas antes o facto de revelar uma específica relação de exploração de outros seres humanos: a utilização da sua saúde física e psíquica para fins económicos»] (LIV) e porque seria «excessiva» a sua «nivelação incriminatória», justificar -se –á que, do tráfico propriamente dito (maior, comum e menor: artigos 24.º, 21.º e 25.º do Decreto -Lei n.º 15/93), se autonomizem, relegando-os — por ordem decrescente de gravidade — para o fundo da escala (LV), o tráfico/consumo (artigo 26.º, n.º 1) (LVI) e a aquisição e detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, de quantidades excessivas (artigo 40.º) (LVII).»

Neste quadro, em que a detenção para consumo surge no «fundo da escala» de ofensividade dos bens jurídicos, afigura-se-nos que a mera especificação do destino da “droga” detida, configurando uma alteração factual, não tem o alcance de conduzir à imputação de um crime diverso.

E quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, n.º1, do C.P.P. (e no n.º3, dada a alteração de qualificação).

Porém, entendemos que a alteração, no plano dos factos, com a consequente alteração da qualificação, resulta, manifestamente, da defesa do arguido.

Realmente, o tribunal acolheu a defesa do arguido no sentido de se tratar de detenção para consumo e, ouvida a gravação das alegações orais, constata-se que o Ministério Público limitou-se a pedir justiça, enquanto a defesa do arguido foi no sentido de que se provou o consumo, apenas questionando se a quantidade detida excedia ou não o consumo médio individual durante o período de 10 dias, do que depende tratar-se de crime ou de contra-ordenação.

Por conseguinte, afigura-se-nos que a alteração dos factos e da sua qualificação de forma alguma surpreendeu o arguido/recorrente, era inteiramente previsível e de forma alguma colocou em causa o pleno exercício do contraditório e dos seus direitos de defesa, constitucionalmente consagrados, razão por que não tinha o tribunal recorrido que proceder à comunicação ao arguido da alteração dos factos e da sua qualificação, nos termos e para efeitos disposto no n.º 3 do artigo 358.º do C.P.P.

3.2.O arguido/recorrente invoca a verificação de dois vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., sem que impugne amplamente a decisão de facto.

Estabelece o artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c)-Erro notório na apreciação da prova.

Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).

Não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento, nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.

Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).

Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).

Os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.

Não se pode dizer que, da conjugação dos pontos de facto provados, com a matéria não provada e com a motivação da decisão de facto se extraia que o tribunal teria de dar como provado que a quantidade de canábis detida pelo arguido não excedia o seu consumo médio individual por dez dias, nem que a factualidade apurada não habilitava, por insuficiente, a prolatar a sentença recorrida.

Não é a circunstância de se dar como provado que o arguido consumia várias vezes por dia a determinar que o tribunal devesse dar também como provado que o arguido, que detinha quantidade correspondente a 29 doses individuais, as consumia dentro do período de 10 dias.

Não vislumbramos, pois, a existência de qualquer dos invocados vícios decisórios.

O crime de consumo de estupefaciente está previsto no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (considera-se a Declaração de Rectificação n.º41/2009, de 22.06, ao texto republicado pela Lei n.º18/2009, de 11.05), punindo-se “Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV” [n.º 1], diferenciando-se a correspondente reacção penal, para uma moldura mais grave, se a respectiva quantidade desses produtos “exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias” [n.º 2].

É sabido que com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, passou a consagrar-se no seu artigo 2.º, n.º 1 que “O consumo, a aquisição e a e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação”.

Mas logo se acrescentou no seu n.º 2: “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Por outro lado, o artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 revogou, expressamente, o mencionado artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, excepto quanto ao cultivo.

O n.º2 do artigo 2.º, conjugado com a norma revogatória constante do artigo 28.º, veio suscitar a questão, largamente debatida, de como punir aquele que detém, para seu consumo, uma quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.

Para solucionar o diferendo, o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu Acórdão n.º8/2008 (publicado no DR I.ª Série, n.º 150, de 25 de Agosto), fixou a seguinte jurisprudência:
“Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só ‘quanto ao cultivo’ como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

Porém, também a questão da quantificação do que seja o consumo médio individual tem suscitado controvérsia. 
 
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que instituiu o ainda vigente regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, estabeleceu, no seu artigo 71.º, n.º 1, al. c):

«Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria:
c)- Os limites quantitativos máximo do princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente».

Mais se acrescentou no seu n.º 3: “O valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no n.º 1 é apreciado nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal”.

Da determinação da dose média individual com referência ao princípio activo do estupefaciente pode depender a prática de um ou outro crime de tráfico ou então de consumo de estupefacientes e agora de uma contra-ordenação.

A Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos artigos 52.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, determinou no seu artigo 9.º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.

Nessa tabela e no que respeita à canabis (resina) é indicado o valor de 0,5 gr, tendo subjacente a “dose média diária com base na variação do conteúdo médio do THC existente nos produtos da Canabis” e como referência “uma concentração média de 10% de A9THC”, conforme encontra-se anotado nessa tabela.

Por sua vez e de acordo com o artigo 10.º, n.º 1 da mesma Portaria, “Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, …, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência”.

E esta tabela passou igualmente a servir para a determinação dos “limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária” no que concerne à delimitação dos tipos legais dos crimes de traficante-consumidor e de consumo (26.º, n.º 3 e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93).

Sem nos determos com maior detalhe sobre as controvérsias que se suscitaram a propósito da referida portaria e sobre a questão, não isenta de dúvidas, da quantificação das substâncias estupefacientes (veja-se, por exemplo, João Conde Correia, “Droga: exame laboratorial às substâncias apreendidas e diagnóstico da toxicodependência e das suas consequências”, Revista do CEJ, 2004, n.º1, pp.77 e segs.), certo é que parte do S.T.J. se posicionou no sentido de recusar a aplicação daquele artigo 9.º da Portaria n.º 94/96, por se entender que o mencionado artigo 71.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, padecia de ilegalidade e de inconstitucionalidade orgânica (cfr. o Acórdão do S.T.J., de 26.03.1996, Revista do Ministério Público 74/167 e ss.), sem que o Tribunal Constitucional lhe tenha dado razão quando chamado a pronunciar-se sobre a questão. Segundo o Ac. n.º 534/98, de 7 de Agosto de 1998, «os limites fixados na portaria, tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e letra do art. 71.º do Dec.-Lei n.º 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado», mas antes a «remissão para valores indicativos», susceptíveis de serem fundadamente afastados pelo tribunal.

Por sua vez, completando este posicionamento, a jurisprudência das Relações tem vindo a sustentar que no caso de o estupefaciente estar destinado ao consumo pessoal e não se conhecendo o grau de pureza da correspondente substância estupefaciente, em virtude de no respectivo exame laboratorial não constarem as suas componentes nem a percentagem do princípio activo, estaria vedado o recurso aos valores constantes do Mapa anexo à Portaria n.º 94/96, não sendo, por isso, tais valores de aplicação automática (entre outros e a título meramente exemplificativo, os Acórdãos da Relação do Porto de 17.02.2010, processo 871/08.2PRPRT.P1 (Desembargador Rel. Vasco de Freitas) e de 18.04.2012, processo 560/10.8TABGC.P1 (Desembargador Rel. Pedro Pato), disponíveis em www.dgsi.pt).

Quer isto dizer que, na ausência dos adequados exames laboratoriais que determinem qual a percentagem do princípio activo contido na substância apreendida, a jurisprudência tem afastado o recurso à tabela constante da citada Portaria, estabelecendo e definindo, em alternativa, quantidades médias para o consumo individual durante um dia que se afastam, com nitidez, dos valores da tabela, sendo-lhe muito superiores, fixando tal quantidade em 1,5 gramas para a cocaína e heroína e em cerca de 2 gramas para o haxixe (cfr. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 1990, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 393, p. 319; de 5 de Fevereiro de 1991, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 404, p. 51; e de 10 de Julho de 1991, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 409, p. 392).

O recurso a esses critérios jurisprudenciais que alegadamente se baseiam nas regras da experiência comum e que têm em conta o normal grau de impureza das substâncias estupefacientes quando chegam ao consumidor final, constitui, assim, uma alternativa a uma tabela tornada inaplicável por força da incompletude dos exames laboratoriais.

Ocorre que, no caso em apreço, o exame laboratorial junto aos autos identifica a substância em causa, o seu peso bruto e o peso líquido, e bem assim a concentração de THC.

Tendo os limites fixados na referida tabela um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, tal significa que o juízo a fazer sobre a suficiência ou insuficiência desses limites se presume subtraído à livre convicção do julgador, devendo este fundamentar qualquer divergência desse juízo.

No caso em apreço, o M.mo Juiz a quo socorreu-se do exame laboratorial realizado pelo L.P.C., que permitiu, com base nos critérios da tabela, fixar em 29 doses diárias o quantitativo apreendido.
O critério da tabela relativamente à canábis consiste em não indicar apenas um limite quantitativo para a dose média individual diária, mas antes que os limites quantitativos apresentados, conforme se trate de folhas e sumidades floridas ou frutificadas, resina ou óleo, referem-se a concentrações médias de THC, que seguramente têm em conta dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usuais nos diversos produtos da canabis.

Esclarece-se, assim, que a quantidade indicada para a canabis-resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC”.

E daqui decorre que se determinada resina de canabis, com o peso líquido de 5 gramas (por hipótese) tiver a concentração de 10% de tetraidrocanabinol, então corresponderá ao limite quantitativo máximo para consumo médio individual durante 10 dias (à tal razão de meia grama diária); porém, se a concentração for de 5%, a mesma quantidade de resina de canabis corresponderá ao consumo médio individual durante 5 dias (como, de outro lado, se a concentração for de 20%, corresponderá ao consumo médio individual durante 20 dias, pois que quanto maior for a concentração da substância activa, menor será a necessidade do consumidor do referido produto, para obter o efeito desejado).
É por isso que, no caso vertente, os 6,324 gramas de peso líquido de canabis (resina) correspondem ao consumo médio individual durante 29 dias (6,324gr x 23,2% : 10% : 0,5 = 29 doses individuais).

Como já se disse, dos autos não se extrai que o tribunal teria de dar como provado, ou ficado em dúvida, razoável e séria, que a quantidade de canábis detida pelo arguido não excedia o seu consumo médio individual por dez dias, não sendo a circunstância de se dar como provado que o arguido consumia várias vezes por dia a determinar que o tribunal devesse dar também como provado que o arguido, que detinha quantidade correspondente a 29 doses individuais da tabela, as consumia dentro do período de 10 dias (uma dose pode ser repartida em mais de um acto de consumo).

Por conseguinte, nesta parte, o recurso não colhe provimento.

3.3.Relativamente à questão da pena, lê-se na sentença recorrida:
«Relativamente ao crime de consumo de estupefacientes praticado pelo arguido, o mesmo é abstractamente punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias - cfr. artigo 40°, n° 2, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro.
Posto isto, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido, atendendo, desde logo, a que as penas criminais visam a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, em caso algum, a pena exceder a medida da culpa do agente, sob pena de se postergar o fundamento último de toda e qualquer punição criminal que é a dignidade humana (cfr. artigo 40°, n°s 1 e 2, do C. Penal).
Por outro lado, e como dispõe o artigo 71°, n° 1, do mesmo diploma legal, a "(...) determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (...)”, nas quais se incluem tanto as vertentes de prevenção especial como as de prevenção geral.
Na determinação da medida concreta da pena, e atento o disposto no artigo 71°, n° 2, do C. Penal, importa considerar:
- o grau de ilicitude do facto, que se mostra baixo, designadamente atendendo à quantidade de produto estupefaciente por si detido;
- o dolo do arguido reveste a modalidade de dolo directo;
- o arguido possui antecedentes criminais registados, todos pela prática de crimes de consumo e de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, circunstância que revela incapacidade do mesmo em interiorizar plenamente a ilicitude das suas condutas e abster-se da prática de ilícitos;
- o arguido demonstrou sempre uma postura colaborante com as autoridades policiais e posteriormente com o Tribunal, designadamente reconhecendo o essencial dos factos que lhe eram imputados;
- sem prejuízo da sua actual situação de detenção, o arguido aparenta inserção social e laboral.
Há que ponderar, ainda, as elevadas exigências de prevenção geral, quer face ao constante aumento do tráfico e consumo de estupefacientes e território nacional, por parte de indivíduos cada vez mais jovens, com todas as consequências e sequelas graves daí decorrentes, designadamente ao nível da saúde pública e do aumento da criminalidade, quer tendo em atenção o generalizado índice de violência que afecta a comunidade e que urge acautelar.
Já no que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas mostram-se de intensidade um pouco mais baixa, considerando a reduzida quantidade de produto estupefaciente detida pelo arguido.
Ainda assim, a pena a aplicar ao arguido deverá consciencializá-lo da gravidade e censurabilidade da sua conduta, motivando-o ao futuro cumprimento das normas socialmente vigentes, sendo certo que se entende não dever optar pela aplicação de pena não privativa da liberdade, já que a mesma se mostra desadequada e insuficiente às finalidades da punição em causa por força do passado criminal do arguido.
Tudo visto e ponderado, entende-se adequado condenar o arguido na pena de 6 (seis) meses de prisão, cuja substituição por pena de multa se entende não justificada nos autos, atentas as anteriores condenações do arguido pela prática de crimes de idêntica natureza.
No entanto, estipula o artigo 50° do C. Penal que, "(...) o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (...)”.
É sabido que as penas devem ser aplicadas com um sentido pedagógico e ressocializador. Assim, quando aplica uma pena de prisão não superior a 5 anos, o Tribunal tem o poder-dever de suspender a sua execução, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável sobre a conduta futura do arguido (cfr. entre outros, Maia Gonçalves, in CP Anotado, 15.ª edição, p. 197 e Acórdãos do STJ de 11 de Maio de 1995 e 27 de Junho de 1996).
Tal juízo, porém, não deverá assentar numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição.
No que diz respeito ao arguido, aparenta modesta condição sócio-económica e estar inserido profissional e socialmente.
E, mais acresce, apesar de se evidenciar que as suas anteriores condenações não terem sido suficientes para lhe impor um comportamento conforme à lei, julga-se que a pena ora aplicada e a ameaça da sua execução será suficiente para demover o arguido do cometimento de futuros ilícitos, maxime considerando que se encontra em contacto com ambiente prisional pela primeira vez e a respectiva pena tem o termo previsto para o próximo mês de Agosto de 2022, julgando-se que na conjugação de tais circunstâncias ainda se mostrará possível formular um juízo de prognose favorável ao arguido.
Ou seja, está o Tribunal em crer que o arguido estará ainda disponível para, em liberdade, adoptar, por fim, um comportamento conforme à lei, caso lhe seja concedida uma oportunidade para o efeito.
Pelo exposto, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido pelo período mínimo legalmente previsto, de 1 (um) ano, de harmonia com o disposto no artigo 50°, n°s 1 e 5, do C. Penal, sujeita a plano individual de readaptação social, com frequência obrigatória de programa de sensibilização para comportamentos aditivos, em termos a definir pelos serviços competentes da DGRSP, de harmonia com o disposto nos artigos 53° e 54° do C. Penal.
E adverte-se o arguido de que o não cumprimento das regras ora descritas, maxime permitindo o acompanhamento das suas situações pelos serviços da DGRSP, bem como a prática de novos crimes, poderá levar à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 56° do C. Penal e ao subsequente cumprimento efectivo da pena de prisão aqui aplicada.»

Pugna o arguido/recorrente por uma pena mais benévola, de multa.

Contrapõe o Ministério Público junto desta Relação que a pena de prisão aplicada deveria ser de prisão efectiva, entendendo que enferma a sentença, na parte relativa à pena, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Com o devido respeito, não pode ser acolhida a posição do Ministério Público, que não tem em conta a circunstância de estar em causa um recurso interposto pelo arguido, de sentença com a qual o Ministério Público junto da 1.ª instância se conformou, razão por que jamais a pena aplicada poderá sofrer agravação, ainda que a sentença fosse anulada ou se ordenasse o reenvio, por força da aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus

Não se ignora que a norma do artigo 409.º, n.º 1, do C.P.P., se dirige, em primeira mão e directamente, ao tribunal superior, ao conhecer do recurso do arguido ou do Ministério Público no interesse deste.

Todavia, a jurisprudência do S.T.J. e da Relações, em consonância com o Tribunal Constitucional, tem entendido ser o mesmo princípio válido e extensivo ao tribunal de 1.ª instância quando tem de ser repetido o julgamento por vício declarado pelo tribunal superior, verificando-se, então, a proibição da reformatio indirecta (cfr. acórdão desta Relação, de 22-05-2012, processo 611/09.9PDOER.L2-5, contendo diversas referências jurisprudenciais).

Por outro lado, ainda que o Ministério Público junto desta Relação discorde da suspensão da execução da pena, entendendo que a pena de prisão deveria ser efectiva, tal discordância situa-se no plano do direito e não no âmbito da decisão de facto.

Ora, como já se disse supra, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto não se confunde com uma eventual errada aplicação do direito – e a questão da determinação da pena é uma questão de direito.

Posto isto, importa apreciar o recurso do arguido na vertente da determinação da pena.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.

Nos termos do disposto no artigo 70.º do Código Penal, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.

De seguida, importará determinar a concreta medida da pena por que se optou, dentro dos limites definidos na lei, tendo em consideração para o efeito, a culpa do agente e as exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este (artigo 71.º do Código Penal).

Determinando-se uma concreta pena principal, haverá que verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida.

No caso em apreço, o tribunal recorrido, perante a moldura penal aplicável – pena compósita de prisão ou multa -, optou por pena de prisão.

O arguido sofreu diversas condenações por crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e uma condenação por consumo – condenações que não o dissuadiram da prática dos factos -, sendo que, aquando da condenação, encontrava-se em cumprimento de pena de prisão.

Justifica-se, pois, que o tribunal recorrido tenha afastado, por falta de adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, a aplicação de pena de multa.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e segs.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

Como refere o S.T.J., em Acórdão de 17 de Abril de 2008, «as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (proc. 08P571, disponível em www.dgsi.pt; também relativamente à questão da determinação da medida da pena, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J. de 9 de Março do 2006, inCJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss., e o Acórdão do S.T.J., de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1145, em www.dgsi.pt).

Volvendo ao caso concreto em apreciação, o tribunal fixou a pena em 6 (seis) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 (um) ano, sujeita a regime de prova.

Pugnando o recorrente pela aplicação de pena de multa, que já se afastou, o recurso não pode deixar de não ser provido, sendo que, como já se explanou, está vedado agravar a pena, seja em sede de recurso, seja em sede de um hipotético reenvio – que não ocorrerá.
***

III–Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto por HB .

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que possa beneficiar (artigos 513.º e 514.º do C.P.P. e respectivo Regulamento das Custas Processuais).



Lisboa, 11.10.2022



(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



(Jorge Gonçalves)
(Maria José Machado)                               
(Carlos Espírito Santo)