Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
(A) intentou no Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada a presente acção emergente de contrato individual de trabalho contra (B), alegando, em síntese, ter sido admitido, em 2/1/2003 para trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização do R., como praticante do 1º ano, mediante a retribuição mensal de € 500, tendo sido despedido, verbalmente, sem precedência de processo disciplinar e, portanto, ilicitamente, no dia 16/7/2003. O R. não lhe pagou a retribuição dos 16 dias de trabalho prestado em Julho de 2003, nem as férias subsídio de férias e de Natal proporcionais ao trabalho prestado.
Pede a condenação do R. a pagar-lhe:
a) € 1.500, a título de indemnização por despedimento ilícito;
b) € 270,83, a título de retribuição de férias não gozadas, proporcionais ao tempo de trabalho prestado em 2003;
c) € 270,83, a título de subsídio de férias proporcionais ao tempo de trabalho prestado em 2003;
d) € 270,83 a título de subsídio de natal (proporcional) de 2003
e) € 266,66, a título de retribuição de dezasseis dias de trabalho de Julho de 2003
o que perfaz a quantia total de € 2.579,15.
Após audiência de partes, contestou a R. por impugnação, alegando não ter despedido o A., mas ter sido ele que deixou de comparecer no estabelecimento, reconhecendo dever-lhe as quantias peticionadas nas al. b) a e).
Procedeu-se a audiência de julgamento a que se seguiu a prolação da sentença de fls. 46/48, que julgou a acção procedente por provada e condenou o R. a pagar ao A. a quantia de € 6.629,16 (valor em que, ao abrigo do disposto no art. 74º do CPT, integrou € 4.050 referente às retribuições vencidas entre o despedimento e a data da sentença, correspondentes a 8 meses e três dias).
Inconformado apelou o R. que conclui as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. o A., a título de indemnização por despedimento ilícito, fixou o pedido em €.1.500,00, correspondente a um mês de remuneração base por cada ano de antiguidade ou fracção, não inferior a três anos
2. O A. não peticionou, ainda a título de indemnização por despedimento ilícito, o pagamento das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à sentença,
3. nem alegou quaisquer factos naquele sentido.
4. Não obstante, entendeu o Tribunal "a quo", condenar o R. no pagamento das aludidas retribuições, ao abrigo do artigo 74°. do Cod. Proc. de Trabalho, computando as mesmas em €.4.050,00, referente a 8 meses e 3 dias.
5. Ora, com o devido respeito, a aplicação do artigo 74°. do C. P. Trabalho tem de resultar, antes de mais, da matéria de facto dada como provada, sendo certo que, nos presentes autos, a mesma nada refere àquele título.
7. Por outro lado, a aplicação do artigo 74°. do Cód. Proc. Trabalho exige que estejam em causa preceitos inderrogáveis.
8. Com efeito, um preceito inderrogável é o direito à retribuição, mas apenas na vigência do contrato, dada a situação de subordinação jurídica em que se encontra o trabalhador relativamente à entidade patronal.
9. Já não será preceito inderrogável as retribuições a que o trabalhador tem direito em virtude da cessação do contrato, como sejam, no caso da ilicitude do despedimento, os salário intercalares.
10. Deste modo e nos presentes autos, o direito ao pagamento das retribuições que o A. deixou de auferir desde a data do despedimento até à sentença, não se situa no campo da indisponibilidade absoluta
11. dado que tem subjacente interesses individuais e não de ordem pública, uma vez que a situação de subordinação jurídica do trabalhador desapareceu, o que acarreta a disponibilidade dos direitos emergentes do contrato.
12. Assim, para obter a condenação nas retribuições intercalares, o autor teria sempre de formular este pedido, conforme decidiu, entre outros, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.11.2000 in CJ, 2000, V, 158.
13. Deste modo, e com o devido respeito, não poderia o Tribunal "a quo", ter condenado o R. no pagamento das retribuições que o A. deixou de auferir desde a data do despedimento até à sentença
14. Ao decidir como decidiu, violou a douta sentença o disposto nos artigos 74º do Código do Processo de Trabalho e art. 668º al. b) do Código de Processo Civil.
Termos em que deve a Sentença ser revogada e substituída por douto acórdão que absolva o Réu do pedido, na parte referente à condenação no pagamento ao A. das retribuições entre a data do despedimento e a sentença, por assim ser de Direito e Justiça.
O A. contra-alegou nos termos de fls. 67, concordando com a sentença.
O objecto do recurso consiste apenas em saber se a sentença, ao condenar além do pedido, incorreu na nulidade prevista no art. 668º nº 1 al. b) - falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – e se violou o disposto no art. 74º do CPT, condenando ultra petita partium, sem que se mostrem preenchidos os requisitos que o permitem.
A matéria de facto dada como provada na 1ª instância (expurgada das expressões conceituais e conclusivas) é a seguinte:
1- Em 2 de Janeiro de 2003, mediante acordo verbal, foi o A. admitido ao serviço do R., que se dedica a actividade de comércio de pneumáticos para viaturas automóveis, com estabelecimento em Atalhada - Lagoa, para, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, técnicas e disciplinares, exercer as funções próprias de praticante do 1º ano, mediante a retribuição mensal de € 500,00 que auferia ultimamente.
2- No exercício das suas funções competia ao A. desmontar e montar jantes e pneus das viaturas automóveis que para esse efeito se dirigiam ao estabelecimento do R., cumprindo um horário de trabalho semanal rotativo com mais dois trabalhadores do R., uma semana das 8:00 h às 17:00 h e outra semana das 10:00 h às 19:00, com intervalo de uma hora para almoço, e descanso aos Domingos.
3- O contrato foi cumprido pelo A. que, no seu âmbito, exerceu as funções mencionadas, sem interrupção, até 16 de Julho de 2003.
4- O R. e o A. não chegaram a acordo acerca do horário, pelo que o R., no dia 16 de Julho de 2003, lhe disse que não precisava mais do seu trabalho no horário que estava estipulado.
5- Até à data o R. não pagou ao A. a retribuição dos 16 dias de Julho de 2003 em que vigorou o contrato, no valor de 266,66€.
6- O R. não pagou ao A. o valor correspondente a férias e subsídio de férias, proporcionais ao tempo de trabalho prestado em 2003.
7- Também não foi pago ao A. o subsídio de Natal, de valor proporcional ao tempo de serviço que prestou no ano de 2003 (seis meses e dezasseis dias).
8- O R. sugeriu ao A. que este se informasse junto da Inspecção do Trabalho das quantias a que teria direito para se efectuar o acordo de contas.
Apreciação
Relativamente à arguição da nulidade da sentença prevista no art. 668º nº 1 al. b) – que se verifica quando a sentença não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – constata-se que só teve lugar em sede de alegações, e não, expressa e separadamente no próprio requerimento de interposição do recurso, como, por razões de economia e celeridade[1], é exigido pelo art. 77º nº 1 do CPT, o que, em conformidade com a orientação praticamente uniforme da jurisprudência dos tribunais superiores, tem como consequência que se considere extemporânea a arguição e por isso dela se não conheça.
Sempre se dirá, todavia, que o recorrente não tem razão.
Na linha da jurisprudência dominante sobre a questão, entendemos que só se verifica esta nulidade quando a falta de especificação dos fundamentos, quer de facto, quer de direito, seja total ou absoluta e não quando seja deficiente.
No caso, o Sr. juiz considerou que o facto referenciado sob o nº 4 traduzia um despedimento que, por não ter sido precedido de processo disciplinar, era ilícito, conferindo ao trabalhador despedido os direitos previstos no art. 13º da LCCT, ou seja, a indemnização por antiguidade, em substituição da reintegração, e o pagamento da importância que deixou de receber desde a data do despedimento até à sentença, desde que a acção tenha sido proposta nos trinta dias a seguir àquele momento. Tendo a acção sido proposta em 8/3/2004 computou em € 4.050 as retribuições devidas, relativas a 8 meses e três dias. E por considerar que o direito às retribuições provinha “de regras imperativas (cfr. art. 59º nº 1 do mesmo diploma legal)” entendeu haver lugar à condenação nos termos do art. 74º do CPT.
A decisão está pois minimamente fundamentada, quer de direito quer de facto, pelo que não procede a aludida nulidade.
Vejamos, então, se o Sr. Juiz, ao deitar mão do disposto no art. 74º do CPT para condenar a R. no pagamento ao A. dos salários vencidos desde o 30º dia anterior à propositura da acção até à data da sentença, sem que esse pedido tivesse sido deduzido, aplicou bem o direito.
Relativamente a esta questão afigura-se-nos que o recorrente tem razão.
O art. 74º do CPT (como, anteriormente, o art. 69º, tanto do CPT/81, como do CPT/63) admite, excepcionalmente, um desvio aos limites da condenação estabelecidos no art. 661º nº 1 do CPC, segundo o qual a sentença não pode condenar em quantidade superior nem em objecto diverso do que se pedir.
O art. 661º do CPC, nas palavras de Leite Ferreira[2], traduz “no campo do direito processual civil, o princípio da autonomia da vontade que caracteriza os direitos subjectivos.
Se, de facto, neste domínio, assiste às partes a faculdade de dispor da sua esfera jurídica, compreende-se que, no campo processual, possam circunscrever a actividade do julgador ao conhecimento da pretensão jurídica substantiva, tal como é expressa no pedido formulado. É que, no fundo, a vinculação do julgador aos limites quantitativos e qualitativos do pedido equivale a reconhecer implicitamente a disponibilidade dos direitos subjectivos – o que se harmoniza perfeitamente com o princípio dispositivo que amplamente informa o direito processual comum de natureza civil.”
Nos termos daquele preceito específico do processo laboral, o juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do art. 514º do CPC, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho.
De acordo com o ensinamento do Prof. Castro Mendes[3] “A inderrogabilidade aí referida pode querer significar: a impossibilidade de afastamento da sua aplicação pela vontade das partes no plano jurídico ou a impossibilidade de afastamento da sua aplicação pela vontade das partes no plano prático.
Há preceitos com efeito cuja aplicação não pode ser afastada no plano jurídico, mas pode sê-lo no plano prático.” E o exemplo que dá é precisamente o direito ao salário. Segundo o insigne Professor “O direito ao salário é de existência necessária, mas não de exercício necessário.... Em contraste, temos direitos cuja existência e exercício são necessários, como é o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional. A lei quer que o direito exista e quer que o direito seja exercido; num e noutro plano a vontade das partes é irrelevante e os preceitos legais são inderrogáveis.
A necessidade do exercício do direito não se traduz em sanções ao titular que o não exerça, mas actua de outra forma: através do suprimento dessa omissão pela actividade oficiosa dum órgão do Estado, normalmente o Ministério Público, mas aqui o juiz.
A disposição do art. 69º (actual art. 74º) do CPT só se justifica realmente concebendo a condenação ultra ou extra petita como o suprimento, pelo juiz, dum direito de exercício necessário imperfeitamente exercido pelo seu titular (ou representante).”
No caso vertente os salários intercalares entre o despedimento e a sentença não são um direito de exercício necessário, que, não tendo sido exercido, deva ser suprido pelo juiz.
O não exercício desse direito, cessado que foi o contrato de trabalho, deve ser entendido como a renúncia ao mesmo, dentro da autonomia da vontade e disponibilidade de direitos subjectivos como é o direito a tais retribuições. O juiz deve pois respeitar o princípio dispositivo.
A possibilidade de condenação além do pedido, prevista no processo laboral, sendo uma decorrência natural do princípio da irrenunciabilidade de certos direitos do trabalhador, só é aplicável relativamente a esses direitos irrenunciáveis. E no caso, não estão em causa direitos irrenunciáveis.
Ainda que se entenda que, na vigência da relação laboral, o direito à retribuição é irrenunciável ou indisponível, essa indisponibilidade cessa com a cessação da relação laboral, por cessar então a situação de subordinação jurídica em que o trabalhador se encontrava relativamente ao empregador.
O direito às retribuições vencidas desde os 30 dias anteriores à propositura da acção até à data da sentença não é indisponível nem irrenunciável, não podendo, por isso, ser objecto de condenação, quando não foi peticionado.
Não se verificavam, no caso, os pressupostos para condenar além do pedido, pelo que não andou bem o Mmº Juiz ao socorrer-se do disposto pelo art. 74º do CPT.
A sentença deve pois ser revogada nessa parte.
Decisão
Pelo exposto se acorda em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o R. a pagar ao A. € 4.050 a título de retribuições vencidas até à data da sentença.
Custas pelo apelado.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
José Feteira
___________________________________________-
[1] Com vista a permitir ao juiz recorrido, a quem é dirigido o requerimento de interposição do recurso, mas não as alegações deste, sanar a nulidade, caso ela exista.
[2] Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra Editora, 1989, pag. 294.
[3] Pedido e causa de pedir no processo do trabalho, in “Curso de Direito Processual do Trabalho, Revista da FDUL, 1964, pag. 131 a 133.