Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
272/11.5TTBRR.L1-4
Relator: ISABEL TAPADINHAS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
NEGLIGÊNCIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - Verificada a materialidade da infracção e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo ou, pelo menos, com negligência.
II - No âmbito do recurso contra-ordenacional, o tribunal da Relação posiciona-se como o Supremo Tribunal de Justiça se posiciona no processo penal, ou seja, funciona como tribunal de revista e apenas conhece da matéria de direito, excepção feita para os casos em que para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, oficiosamente, ou seja, por sua iniciativa, decida conhecer dos vícios referidos no art. 410.º, nº 2 do Cód. Proc. Penal.
III – Resultando do texto da decisão recorrida, conjugado com as regras da experiência comum, que o tribunal recorrido cometeu erro notório na apreciação da prova ao não considerar verificado o nexo de imputação subjectiva, pelo menos, a título negligente, dos factos objectivos provados à actuação da arguida há que acrescentar à matéria de facto a verificação desse nexo.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
AA, Lda inconformada com a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), que lhe aplicou a coima de € 3840,00 (três mil oitocentos e quarenta euros), por infracção ao disposto no n° 1 do art. 21.° do Decreto-Lei n° 273/2003 de 29 de Outubro, diploma que estabelece regras gerais de planeamento, organização e coordenação para promover a segurança, higiene e saúde no trabalho em estaleiros da construção e transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de Junho.
Para tal:
- invocou a prescrição do procedimento contra-ordenacional;
- negou a prática da contra-ordenação.
Remetidos os autos à 1.ª instância e não tendo havido oposição a que a questão fosse decidida por despacho, sem audiência, foi proferido o seguinte:
Existe uma questão prévia que cumpre conhecer.
Compulsados os autos, temos que a fls. 50 e seg.s consta a decisão proferida pela autoridade administrativa.
Da análise dessa decisão resulta que foi imputada à recorrente a prática de uma contra-ordenação, por violação das normas de segurança, higiene e saúde no trabalho.
Da análise dessa decisão resulta que na mesma apenas são descritos os elementos objectivos típicos da contra-ordenação imputada à recorrente, não se fazendo qualquer indicação ou descrição dos factos considerados provados ou não e que integram os elementos subjectivos do tipo.
Com efeito, só em sede de aplicação do direito é que a decisão faz referência ao elemento subjectivo do tipo, enquadrando-o na figura da negligência, desconhecendo-se, por falta de factualidade apresentada, se a culpa da recorrente traduz uma conduta negligente ou dolosa.
Dispõe o artigo 25º do RGCOL que:
«1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias contém: (…)
b) a descrição dos factos imputados (...).»
A consequência processual da falta de tal requisitos cons-titui inevitavelmente uma nulidade da decisão administrativa por aplicação do disposto no 374º, nº 2 e 379º, ambos do Código de processo Penal, aplicável ex vi artigo 41º, nº 1 do RGCO e 61º do RGCOL.
Esta nulidade é insanável e de conhecimento oficioso - artigo 119º do Código de Processo Penal.
Não nos podemos ainda esquecer que este Tribunal funciona como instância de recurso face às decisões administrativas.
Em conformidade com o disposto no artigo 380º, nº 1 do Código de Processo Penal a sanação ou correcção de vícios da sentença só pode ocorrer fora dos casos previstos no número anterior, isto é, fora dos casos previstos no artigo 379º do Código de Processo Penal.
Significa isto que, na falta de fundamentação de facto, a sentença administrativa não pode, oficiosamente ou a requerimento, ser objecto de correcção.
Do regime aplicável ao processo de contra-ordenação não emerge qualquer norma que permita ao Tribunal reenviá-lo à entidade administrativa que proferiu a decisão impugnada, ou proferir decisão anulatória. Conforme resulta do artigo 64º do RGCO o Tribunal apenas pode ordenar o arquivamento do processo, ou absolver o recorrente, ou manter ou alterar a condenação, implicando, qualquer uma destas três últimas situações o conhecimento do mérito da causa.
Resta, por isso, ordenar, face à nulidade da decisão administrativa, o arquivamento dos autos.
*
III Decisão:
Pelo exposto, declaro nula a decisão administrativa e, consequentemente, ordeno o oportuno arquivamento dos autos.
Sem custas.
Cumpra oportunamente o disposto no artigo 45º, nº 3 da Lei nº 107/2009 de 14 de Setembro.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal, tendo sintetizado as suas alegações nas seguintes conclusões:
(...)
A arguida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (arts. 412.º, nº 1, e 417.º, nº 3, do Cód. Proc. Penal, e Ac. do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Como resulta da motivação do recurso e das respectivas conclusões, a questão fundamental que aqui se discute consiste em saber se a decisão da autoridade administrativa é nula por não fazer qualquer indicação ou descrição dos factos considerados provados ou não e que integram os elementos subjectivos do tipo.

Fundamentação de facto
Com interesse para a questão que nos ocupa constam da decisão da autoridade da administrativa os seguintes factos:
A. No dia 26 de Fevereiro de 2008, pelas 15:40 horas, no estaleiro sito no Loteamento (...), 0000 ..., encontrava-se em construção um edifício de habitação multifamiliar, verificando-se trabalhos de alvernaria;
B. A arguida era dono de obra e entidade executante;
C. A arguida adjudicou à sociedade BB, Construções, Lda., em 4/2/2008, todos os trabalhos de pedreiro e ladrilhador;
D. A arguida adjudicou à sociedade CC — Construção Civil, Unipessoal, Lda., os trabalhos de cofragem e enchimentos das lajes;
E. A arguida iniciou a actividade em 1991;
F. As sociedades BB, Construções, Lda., e CC - Construção Civil, Unipessoal, Lda., trabalharam no estaleiro durante um período superior a vinte e quatro horas;
G. A Arguida na sua especial qualidade de entidade executante podia e devia ter diligenciado pela organização de um registo dos subempreiteiros por si contratados que trabalhem no estaleiro por um período temporal superior a vinte e quatro horas;
H. A Arguida não organizou um registo dos subempreiteiros;
I. A ausência de registo dos subempreiteiros foi confirmada pelo Sócio gerente da arguida;
J. A arguida apresentou um volume de negócios de 318.935,63 € (trezentos e dezoito mil, novecentos e trinta e cinco euros e sessenta e três cêntimos).
Aí se escreveu também o seguinte:
A nossa convicção quanto à matéria de facto dada como provada baseia-se no especial valor probatório do Auto de Notícia, que é documento autêntico fazendo prova dos factos materiais dele constantes (como decorre do artigo 169° do Código de Processo Penal, conforme remissão feita no artigo 99º nº 4 do Código de Processo Penal, ambos aplicados ex vi artigos 615.° da Lei n° 99/2003 de 27 de Agosto e artigo 41° do Regime Geral das Contra-Ordenações, bem como na própria resposta escrita da arguida, na qual esta se limitou a alegar alguns factos sem apresentar prova bastante dos mesmos.

Fundamentação de direito
Nos termos do art. 8.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, aqui aplicável ex vi art. 2.ºdo Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (RGCOL) aprovado pela Lei nº 116/99, de 4 de Agosto [s]ó é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
O art. 3.º,do RGCOL, diz-nos que em matéria de contra-ordenações laborais a negligência é sempre punível.
Nenhum destes diplomas legais define o dolo ou a negligência nas suas várias modalidades, mas o Código Penal é subsidiariamente aplicável na fixação do regime substantivo das contra-ordenações (art. 32.º do RGCO) e por isso a ele recorreremos, sobretudo quando abordarmos a questão da eventual actuação negligente da arguida.
O dolo é um elemento fundamental na definição do conteúdo material da culpa, mas é também (a par da negligência) uma forma de realização do tipo.
Um dos critérios substanciais avançados para a distinção entre crimes e contra-ordenações reside na neutralidade ética do ilícito de mera ordenação social: as condutas que integram os ilícitos contraordenacionais são axiológico-socialmente neutrais (se bem que, conexionadas com a proibição legal, passem a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social (Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, T. I, Coimbra Editora, pág. 150).
Por isso questiona-se se deverá em rigor falar-se de culpa nas contra-ordenações, respondendo Figueiredo Dias (“O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social” in Jornadas de Direito Criminal, edição CEJ, 328) que aqui não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto a responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima.
Daí que o nº 2 do art. 1.º do RGCO, na sua redacção originária, admitisse a possibilidade de haver contra-ordenações em que a imputação se fizesse independentemente do carácter censurável do facto.
Mas, mesmo nesses casos, ainda se exigia que o facto, para ser punido como contra-ordenação, fosse praticado com dolo ou negligência, tal como dispõe o nº 1 do art. 8.º do RGCO.
A nula ou pouco significativa relevância axiológica das condutas que consubstanciam ilícitos de mera ordenação social reflecte-se na configuração do elemento cognitivo ou intelectual do dolo: à afirmação do dolo do tipo não bastará o conhecimento dos elementos do tipo objectivo (ou, se se preferir, o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento), sendo ainda indispensável o conhecimento da proibição legal respectiva.
Pode, então, dizer-se que pratica uma contra-ordenação a título doloso todo aquele que, no momento em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como infracção contraordenacional, e com consciência da respectiva proibição.
Nas palavras de Figueiredo Dias (“Direito Penal - Parte Geral” T. I, Coimbra Editora, pág. 488) reportando-se ao ilícito penal doloso, mas que são válidas para o ilícito contraordenacional doloso, o “tipo de culpa doloso” verifica-se quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas; se uma tal comprovação se não alcançar ou dever ser negada o facto só poderá eventualmente vir a ser punido a título de negligência.
Tal como sucede em processo penal, é questão de facto a determinação da materialidade relativa ao tipo subjectivo do ilícito contraordenacional.
Na verdade, sendo o dolo - tal como a negligência - uma atitude pessoal do agente perante o dever-ser jurídico-penal, ele está relacionado com realidades psicológicas mas a intenção do agente - seja qual for a modalidade de dolo - mesmo requerendo a prova de um elemento do foro íntimo, e por isso só sendo alcançável por via indirecta, através de dados exteriores e apelando às regras da experiência comum, não deixa de constituir matéria de facto.
Ora, do elenco de factos considerados provados não é possível concluir pela imputação à arguida de uma conduta dolosa no (in)cumprimento das obrigações a que está adstrita no âmbito da sua actividade.
A tal conclusão já havia chegado a autoridade administrativa que por isso lhe imputou a prática de uma contra-ordenação, mas a título negligente.
Importa, então, focar a nossa atenção no “tipo de culpa negligente”.
Do conceito legal de negligência fala-nos o art. 15.º do Cód. Penal, nos termos do qual age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
Temos, assim, que a violação do dever de cuidado objectivamente devido é elemento essencial e característico do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objectivo de ilícito (Figueiredo Dias, “Temas Básicos da Doutrina Penal”, 2001, pág. 3593).
Convém, a propósito, esclarecer que, embora o ilícito negligente comporte um momento omissivo - precisamente o não ter o cuidado, ou de prever um certo resultado ou, tendo-o previsto, de evitá-lo - não se confunde com a omissão, que qualifica um tipo legal em relação à estrutura do comportamento.
A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa acção como numa omissão.
Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento que, no dizer de Figueiredo Dias (“Pressupostos da Punição” in “Jornadas de Direito Criminal”, ed. CEJ, pág. 70), constitui o elemento configurador da censurabili-dade da negligência - o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever ser jurídico-penal.
Está aqui verdadeiramente em causa - acrescenta aquele Professor (loc. cit.) - um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição.
Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, considera-se que esse compor-tamento preenche o tipo de ilícito do facto negligente.
Parece-nos adequado enquadrar aqui a situação concreta cuja tutela se faz através da tipificação como contra-ordenação da violação dos respectivos comandos legais.
Trata-se daquilo que é designado como “obrigações da entidade executante”, previstas no art. 20.º do Decreto-Lei nº 273/2003, de 29 de Outubro, ou seja, o conjunto de regras e procedimentos a observar por aquela tendo em vista promover a segurança, higiene e saúde no trabalho em estaleiros da construção.
Uma dessas obrigações consiste em organizar um registo actualizado dos subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados com actividade no estaleiro, nos termos do art. 21.º - art. 20.º alínea j) – obrigação esta que tem como finalidade o controlo efectivo de todos aqueles que intervêm na execução da obra.
Segundo o nº 1 do referido art. 21.º:
1 — A entidade executante deve organizar um registo que inclua, em relação a cada subempreiteiro ou trabalhador independente por si contratado que trabalhe no estaleiro durante um prazo superior a vinte e quatro horas:
a) A identificação completa, residência ou sede e número fiscal de contribuinte;
b) O número do registo ou da autorização para o exercício da actividade de empreiteiro de obras públicas ou de industrial da construção civil, bem como de certificação exigida por lei para o exercício de outra actividade realizada no estaleiro;
c) A actividade a efectuar no estaleiro e a sua calendarização;
d) A cópia do contrato em execução do qual conste que exerce actividade no estaleiro, quando for celebrado por escrito;
e) O responsável do subempreiteiro no estaleiro.
Foi este procedimento que não foi respeitado tendo a autoridade administrativa considerado haver negligência em neste caso.
A arguida teria, assim, incorrido na prática da contra-ordenação prevista na alínea c) do nº 3 do art. 25.º do citado Decreto-Lei nº 273/2003, de 29 de Outubro.
É quase impossível evitar a conclusão de que foi negligente a acção da arguida.
Apesar das reservas e objecções (sobre as razões destas reservas, veja-se o texto de Euclides Dâmaso Simões “Prova Indiciária - Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente”, publicado na revista “Julgar”, nº 2, 2007, págs. 203 e segs.) que, ainda, lhe são opostas, está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta (Acs. da RP, de 28.01.2009, da RC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal, ao passo que na segunda a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), delas não pode ser excluída a prova por presunções, prevista, como noção geral, no art. 349.º do Cód. Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal em que se parte de um facto conhecido (o facto base, que pode ser um único, mas, desejavelmente, devem ser factos plurais e estar inter-relacionados, que funciona como indício para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade, que deve ser razoável e fundamentado, alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, não havendo confissão, a prova dos elementos subjectivos do tipo (doloso ou negligente) não poderá fazer-se senão por meio de prova indirecta.
Como ensinava Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, pág. 292) existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica
Não se compreendem, pois, os complexos e os pruridos que subsistem quanto à verificação do dolo por meio de presunções.
Aliás, é inteiramente lógico pensar e concluir que a pessoa (por si ou pelos seus representantes), nos comportamentos activos ou omissivos que assume, nas omissões ou actos que pratica, obedece às suas potencialidades volitivas, escolhendo, directa ou indirectamente, os resultados da sua actividade ou mantendo-se, por incúria, indiferente à produção de tais resultados.
Por isso, verificada a materialidade da infracção e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo ou, pelo menos, com negligência.
Pense-se, por exemplo, numa das infracções mais frequentes: a condução de veículo automóvel em estado de embriaguez.
O agente que esteve a confraternizar com os amigos e ingeriu várias bebidas alcoólicas, se, imediatamente a seguir, vai conduzir o seu veículo automóvel na via pública, sabendo que a lei proíbe e pune a condução com uma taxa de alcoolemia acima de determinado valor, e é fiscalizado, sendo-lhe detectada uma taxa de álcool no sangue de 1,5 g/litro, é inteiramente legítimo inferir o dolo ou, no mínimo, a negligência nessa conduta (vide os Acs. da RP de 17.12.2003, desta Relação, de 12.01.2011, da RC, de 09.12.2009, da RE de 05.04.2011 e desta Relação de 10.01.2012, que aqui seguimos de perto, todos disponíveis em www.dgsi.pt)
No sentido de que uma presunção ilidível de dolo ou de negligência não viola a presunção de inocência, pode ver-se a jurisprudência do TEDH citada por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, anotação ao artigo 127.º, pág. 334.
Se é assim no âmbito criminal, pelo menos, por identidade de razão também deve sê-lo em matéria de contra-ordenações.
Assim, a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente.
No caso, estão em causa regras e procedimentos previstos no Decreto-Lei nº 273/2003, de 29 de Outubro, que visam garantir o controlo efectivo de todos aqueles que intervêm na execução da obra.
A arguida na qualidade de dona da obra e entidade executante, tinha, necessariamente, conhecimento e capacidade para levar a cabo esses procedimentos, tal como sabia que a violação dessas regras era punível como contra-ordenação – note-se que ficou provado que a arguida iniciou a sua actividade em 1991 e os factos ocorreram em 2008.
Apesar disso, não obstante a singeleza das obrigações impostas, de fácil adimplemento, a arguida não as cumpriu.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido (e conhecido do agente), como aqui aconteceu, considera-se que esse comportamento configura uma actuação dolosa ou, pelo menos, negligente, pois é esse juízo que se revela em sintonia com a normalidade das coisas e as máximas da experiência.
Face a este quadro, cabia à arguida, a bem da sua defesa, alegar e provar factos que pusessem em crise aquela inferência, invocar circunstâncias que, pelo menos, fizessem surgir uma dúvida razoável sobre a imputação subjectiva daquela conduta - sem que isso signifique aceitação de um ónus de alegação e prova em processo penal ou no contraordenacional, antes decorrendo de um princípio de cooperação e lealdade processual -, e não à ACT apurar as razões do inadimplemento que a lei tipifica como infracção contraordenacional.
Se é claro o art. 75.º do RGCO ao estatuir que o tribunal da Relação só conhece de matéria de direito, nem por isso fica completamente arredada a possibilidade de sindicar a decisão sobre matéria de facto.
O diploma que contém o quadro legal das contra-ordenações sofreu já importantes alterações, concretamente, as que lhe foram introduzidas pelos Decretos-Lei nºs 356/89, de 17 de Outubro, 244/95, de 14 de Setembro, 323/2001, de 17 de Dezembro, e 109/2001, de 24 de Dezembro e se não está em causa a autonomia do direito contra-ordenacional, estas alterações tiveram como efeito aproximá-lo do direito penal e processual penal, maxime no que tange às garantias (de audiência e de defesa) do arguido, que foram sendo adquiridas pelo processo contra-ordenacional, aliás, em cumprimento do comando constitucional - art. 32.º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa.
Determinando o art. 41.º, nº 1, do RGCO, a aplicação subsidiária das normas do processo penal ao processo contra-ordenacional e sendo este estruturado em moldes idênticos ao processo-crime, não existem razões válidas para excluir a aplicação de algumas regras sobre impugnação da decisão, designadamente em matéria de facto.
No âmbito do recurso contra-ordenacional, o tribunal da Relação posiciona-se como o Supremo Tribunal de Justiça se posiciona no processo penal, ou seja, funciona como tribunal de revista e apenas conhece da matéria de direito - art. 434.º do Cód. Proc. Penal e citado art. 75.º, n.º 1, do RGCO..
Ora, como é sabido, antes da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, estava estabelecido um sistema designado de “revista ampliada”: mesmo nos casos em que o conhecimento se restringia a matéria de direito, o STJ podia intrometer-se em matéria de facto, quer por iniciativa própria, quer por invocação do recorrente de algum ou alguns dos vícios previstos no art. 410.º, nº 2, do Cód. Proc. Penal.
Com a aludida reforma, deixou de ser possível recorrer para o STJ com fundamento na existência de qualquer dos referidos vícios.
Constitui orientação sedimentada daquele Supremo Tribunal que a única possibilidade de conhecer dos vícios do art. 410.º, nº 2 ocorrerá quando, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, o STJ, oficiosamente, ou seja, por sua iniciativa, decida fazê-lo.
Dizendo de outro modo, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito, o STJ, excepcionalmente, deles conhecerá oficiosamente.
É essa função que, no processo contra-ordenacional, deve assumir o tribunal da Relação.
Vertendo ao caso sub judice, diremos que do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, resulta que o tribunal recorrido cometeu erro notório na apreciação da prova ao não considerar verificado o nexo de imputação subjectiva, pelo menos, a título negligente, dos factos objectivos provados à actuação da arguida.
Por isso, e porque o processo fornece os elementos necessários e suficientes para tanto, há acrescentar à matéria de facto constante da decisão da autoridade da administrativa o seguinte facto (H1):
“H1. Ao não organizar o registo dos subempreiteiros, a arguida, apesar de bem conhecer as suas obrigações nesse âmbito e de ter consciência de que tal incumprimento era considerado um ilícito punível, não actuou com o cuidado que, objectivamente, era imposto e devido, e de que era capaz, em ordem a evitar a verificada violação daquelas obrigações, conformando-se com esse resultado”.
Na impugnação que dirigiu à 1.ª instância a arguida invocou a prescrição do procedimento, alegando para tal que entre a apresentação da sua defesa e a notificação da decisão administrativa, decorreu mais de um ano.
A recorrente foi condenada na coima de € 3840,00 (três mil oitocentos e quarenta euros), por infracção ao disposto no n° 1 do art. 21.° do Decreto-Lei n° 273/2003 de 29 de Outubro, infracção esta prevista no art. 25.º do mesmo diploma como contra-ordenação muito grave – nº 3 – e que, atento o volume de negócios – € 318.935,63 é punida com coima de 45 UC (€ 4320,00) a 95 UC (€ 9120,00) – art. 620.º, nº 4, alínea a) do Cód. Trab. 2003, vigente à data os factos e 554.º, nº 4, alínea b) do Cód. Trab. 2009, actualmente vigente.
O Regime Geral das Contra-Ordenações contido no Decreto-Lei n° 433/82, de 27 de Fevereiro, na redacção do Decreto-Lei n° 356/89 de 17 de Outubro e do Decreto-Lei n° 244/95 de 14 de Setembro (RGCO) reveste-se de natureza subsidiária, tal como acontecia relativamente ao Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (RGCOL), aprovado pela Lei nº 116/99 de 4 de Agosto por força do disposto no art. 2.º deste regime legal, em relação à parte respectiva do Código do Trabalho - arts. 614.º e segs..
Estabelece o art. 3.º do RGCO:
Aplicação no tempo
1. A punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.
2. Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.
As normas sobre a prescrição do procedimento contra-ordenacional – arts. 27.°, 27.º-A e 28.° do RGCO sofreram uma alteração significativa através da Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro.
No caso sub judice, as infracções consumaram-se no dia 16 de Abril de 2004, ou seja, em data posterior à entrada em vigor deste último diploma legal.
Pela alteração introduzida pela Lei nº 109/2001, os arts. 27.º, 27.º- A, e 28.º do RGCO passaram a ter a seguinte redacção:
Artigo 27.º:
O procedimento por contra ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido os seguintes prazos:
a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igualou superior a € 49.879, 79,
b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a € 2.493,99 e inferior a € 49.879, 79;
c) Um ano, nos restantes casos”
Artigo 27.º-A:
1- A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40º;
c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
2- Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.
De notar a prescrição volta a correr no dia em que cessar a respectiva causa – art. 120.º, nº 3 do Cód. Penal.
Artigo 28.º:
1- A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito.
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
2 - ...
3 – A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição – art. 121.º, nº 2 do Cód. Penal.
Decorre do regime legal que têm efeito interruptivo quaisquer notificações ao arguido nos termos do nº 1 do art. 28.º e, por força do nº 3 do mesmo artigo, a prescrição do procedimento contra-ordenacional tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.
A grande inovação do novo regime de suspensão da prescrição consiste na nova redacção do art. 27.º-A, que, além do seu nº 1, alínea c), atribuir efeito suspensivo à notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até decisão final do recurso, limita no seu nº 2 essa suspensão a um máximo de seis meses.
No que ao caso respeita, estas regras foram mantidas nos arts. 53.º e 54.º da Lei nº 107/2009 de 14 de Setembro que aprovou o regime processual aplicável às contra–ordenações laborais e de segurança social e que só entrou em vigor no dia 1 de Outubro de 2009 – art. 65.º -, ou seja, já depois da prática da infracção e que estabeleceu no art. 52.º que [s]em prejuízo das causas de suspensão e interrupção previstas no regime geral das contra-ordenações, o procedimento extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido cinco anos.
Assim, no caso vertente, atento o valor máximo da coima aplicável (€ 9120,00), o prazo de prescrição é de três anos.
Verifica-se, assim, que o prazo máximo de prescrição, ou seja cinco anos – 3 ano+6meses+1 ano e 6 meses – só se completaria em 21 de Abril de 2013.
Daí que não tenha operado a prescrição.
Na impugnação a recorrente vem também negar a prática da infracção, alegando, em suma, que:
- nunca foi notificada para apresentar o registo de subempreiteiros e trabalhadores independentes;
- o sócio gerente da recorrente, G... ..., nunca negou a existência do referido registo de subempreiteiros;
- o registo de subempreiteiros encontrava-se elaborado à data da visita inspectiva;
- o registo de subempreiteiros teria sido apresentado aquando da visita Inspectiva, se solicitado;
- o registo de subempreiteiros foi apresentado com a resposta escrita ao auto de noticia.
Ora, a convicção formulada pela autoridade administrativa quanto à matéria de facto dada como provada baseou-se no especial valor probatório do Auto de Notícia, que é documento autêntico fazendo prova dos factos materiais dele constantes (como decorre do art. 169.° do Cód. Proc. Penal, conforme remissão feita no art. 99.º nº 4 do Cód. Proc. Penal, ambos aplicados ex vi arts. 615.° da Lei n° 99/2003 de 27 de Agosto e art. 41.° do RGCO, bem como na própria resposta escrita da arguida, na qual esta se limitou a alegar alguns factos sem apresentar prova bastante dos mesmos.
Esta mesma prova não foi abalada na 1.ª instância uma vez que a recorrente não se opôs a que a questão fosse resolvida por despacho, tendo assim, abdicado de fazer prova do que alegou na impugnação.
A ACT aplicou à arguida a coima de € 3840,00 (três mil oitocentos e quarenta euros).
Dispõe o normativo inserto no art. 625.° do Cód. Trab., que na determinação da medida da coima, além do disposto no regime geral das contra-ordenações, são ainda atendíveis a medida do incumprimento das recomendações constantes do auto de advertência, a coacção, falsificação, simulação ou outro meio fradulento usado pelo agente.
Por sua vez, o art. 18.° do RGCO proclama que, a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do beneficio económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
Ora, considerando os critérios legais e os factos dados como assentes, entendemos ser adequada e proporcional, a coima aplicada na decisão administrativa, que confirmamos.


Decisão
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
- acrescentar à matéria de facto constante da decisão da autoridade da administrativa o seguinte facto (H1):
“H1. Ao não organizar o registo dos subempreiteiros, a arguida, apesar de bem conhecer as suas obrigações nesse âmbito e de ter consciência de que tal incumprimento era considerado um ilícito punível, não actuou com o cuidado que, objectivamente, era imposto e devido, e de que era capaz, em ordem a evitar a verificada violação daquelas obrigações, conformando-se com esse resultado”;
- julgar improcedente a prescrição do procedimento contra-ordenacional;
- manter a decisão da autoridade administrativa ficando a arguida condenada na coima de € 3840,00 (três mil oitocentos e quarenta euros), por infracção ao disposto no n° 1 do art. 21.° do Decreto-Lei n° 273/2003 de 29 de Outubro.
Não é devida tributação (art. 513.º, nº 1, do Cód. Proc. Penal).
Comunique, oportunamente, à ACT..

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2012

Isabel Tapadinhas
Natalino Bolas
Decisão Texto Integral: